A Agência de Viagens Lemming, de José Carlos Fernandes

Queria começar este texto com um fortíssimo faz tanta falta haver mais livros de José Carlos Fernandes para ler. Queria, mas opto antes por iniciar com uma heresia. Vou escrever ainda bem que há poucos livros de José Carlos Fernandes, sabendo que me arrisco a equimoses amavelmente aplicadas por fãs do autor que me apanhem a jeito nalguma viela escura. É uma heresia paradoxal para alguém que, como eu, admira profundamente a obra deste grande autor de banda desenhada português.

Em bom tempo a Devir investiu na reedição de um trabalho que é um marco histórico da BD portuguesa. Os dois volumes que fizeram regressar A Pior Banda do Mundo ao mercado livreiro e ao olhar dos leitores foram um esforço notável, que recuperou uma obra única que corria o risco de cair no esquecimento, neste país onde as idiossincrasias de um mercado editorial em colisão permanente com a tradição dos baixos níveis de literacia dita uma quase invisibilidade e um rápido desaparecimento dos livros de nicho da memória colectiva, e das estantes das livrarias.

A Agência de Viagens Lemming vai mais longe e fixa em livro algo que em português só existia em tiras de jornal. A sua primeira edição aconteceu em Espanha, em 2011. Estamos bem quando um trabalho de um autor português de referência é editado primero lá fora e só muito tempo depois por cá, não estamos? Sei que isto vai soar terrivelmente lambe-botista da minha parte, mas bolas, excelente trabalho, Devir. Com estas três edições fizeram mais pela cultura portuguesa do que muitas iniciativas mais mediatizadas e badaladas que por aí andam. Esta é uma afirmação discutível e rebatível, eu sei, e estejam à vontade para usar os comentários para me provar o contrário. E talvez injusta, tendo em conta a quantidade de pequenos editores, grupos de fãs e outros que se esforçam por manter acesa a chama criativa da BD portuguesa. Terão de me perdoar as hipérboles. Tenho um fraquinho muito acentuado pela obra de José Carlos Fernandes.

Diga-se que foi com a Pior Banda do Mundo que consegui amolecer e conquistar a coordenadora das bibliotecas escolares da escola onde lecciono para a importância de actualizar o acervo de banda desenhada ao dispor dos nossos alunos. Aquelas cópias decrépitas do Astérix e do Lucky Luke já não atraíam nem mostravam o panorama da BD, dizia-lhe, tendo sempre como resposta que havia que dar prioridade aos livros nisto da promoção da literacia. Daqueles com muitas letras e poucos bonecos. A visão alterou-se quando lhe meti à frente as edições originais de A Pior Banda do Mundo e percebeu o quanto a BD tinha evoluído face à imagem preconceituosa e académica que dela tinha. De tal forma que pensou que eu lhe estava a fazer uma doação, e etiquetou-me os livros. Pequena história que ajuda a explicar o porquê de as edições de José Carlos Fernandes nas minhas estantes parecerem ter sido roubadas a uma biblioteca. Até o carimbo têm.

A Agência de Viagens Lemming

As histórias, ou sendo mais rigoroso, vinhetas narrativas, de A Agência de Viagens Lemming seguem o mesmo estilo narrativo e conceptual de A Pior Banda do Mundo. Suspeito até que vi alguns dos músicos nalguma vinheta perdida por entre as páginas. São as habituais histórias contemplativas e eruditas, com o seu quê de sonho feérico, traçadas num estilo gráfico austero que obriga o leitor a preencher as lacunas visuais com pistas textuais, tão características da obra deste autor.

O tema deste livro é o sonho de viajar, e Fernandes leva-nos para os destinos mais implausíveis sem, como no título daquele livro clássico de Xavier De Maistre, sequer se sair das quatro paredes da agência de viagens. Livros destes são o resultado de cruzar as vontades de preencher a sonolência estival de um jornal diário, ansioso por dar umas tirinhas com bonecos para os seus leitores descansarem os neurónios à beira mar, com a erudição poética de José Carlos Fernandes.

A Agência de Viagens Lemming

Diga-se que este é autor que assume com transparência as suas influências. Os colossos literários e gráficos que traçaram os caminhos de A Pior Banda do Mundo regressaram nestas tiras. Voltamos a ter a saborosa mistura de absurdismo kafkiano, onirismo de Jorge Luis Borges, traços estéticos de Ben Katchor e, especialmente pertinente dada a temática, a omnipresença das geografias fantásticas de Italo Calvino. Estou, certamente, a esquecer ou não reparar em mais algumas influências. Se falamos de viagens, diria que Joseph Conrad, Bruce Chatwin e Luís Sepúlveda deixaram resquícios no ADN destas viagens sonhadas pelos catálogos improváveis da Agência Lemming.

Tenho andado a fugir a isto, mas chegou o momento de explicar a heresia com que abri este texto. Se admiro a obra do autor, se aprecio profundamente esta mistura deliciosa das melhores influências literárias que se poderiam ter, porquê observar que não fazem falta mais dos seus livros? Preparem-se, vão ler outra heresia. Ao ler estas tirar coligidas recordei um sentimento com que já tinha aquando das várias leituras que fiz a A Pior Banda do Mundo. Refiro-me a uma forte sensação de monotonia temática que repassa ao longo da leitora. Monotonia não como tédio ou maçador, mas como monocórdica. Sente-se um peso de repetição temática, de regresso à exposição das influências literárias de sempre. As histórias de José Carlos Fernandes são leituras deliciosas, mas lidas em sequência repetem-se na sua forma e estrutura. Sente-se que se leu uma história nova sem que se tenha realmente lido algo de novo. É por isto que penso que por muito que goste da possibilidade de ler mais livros deste autor, ainda bem que tal não acontece, para que a obra não caia em monotonia literária. Heresia, bem sei. Prevejo vir a arder em muitos infernos.

Cada autor tem as suas características, o seu estilo gráfico e literário, aquele algo que o torna único na identidade. Alguns, quando encontram o ponto de equilíbrio entre o seu ideário e os gostos do público, exploram o filão até à exaustão. É o que safa boa parte dos escritores, uma eterna repetitividade, um ruminar de ideias e narrativas. Os livros vão-se vendendo, os editores sorriem, investem em capas apelativas e metem-nos no super-mercado, num expositor catita colocado ao lado do papel higiénico, mesmo ao pé das papaias. Onde, por inacreditável que pareça, já encontrei mesmo uma promoção literária de uma editora conhecida. Tendo em conta o livro que era, uma das variantes das cinquenta sombras de chicotadas prazeirentas para donas de casa entediadas, diria que estava em concorrência directa com os pacotes de papel higiénico.

José Carlos Fernandes tem fugido a isto, publicando com menos regularidade do que os seus fãs desejariam, mas mantendo a qualidade e diversidade da sua obra. A não existência de novas edições terá também muito a ver com as condicionantes do panorama da BD portuguesa. Mantém-se como autor de referência, incontornável, e muito útil para fazer mudar de ideias quem não acredita na elevada qualidade literária da Banda Desenhada. Poderia tornar-se como um dos muitos escritores da nossa praça que editam regularmente novidades que são todas iguais umas às outras. Felizmente não o faz, evitando que a sua obra se disperse em repetições cíclicas. Posto isto, não me importava nada se em breve saísse um original e inédito de José Carlos Fernandes. Nem que fosse um A Pior Banda do Mundo Viaja Para A Metrópole Feérica Pela Agência de Viagens Lemming. Com o Barão Wrangel a pilotar o avião.


 

Agência de Viagens Lemming

Autor: José Carlos Fernandes.
Editora: Devir
Páginas:146, capa dura.
PVP: 22 €[/box]

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1 Comments

  1. Infelizmente, a verdade é que o José Carlos Fernandes desistiu há muito de escrever ou desenhar BD, por motivos vários, e como ele próprio afirmou a dada altura, a um fã (também criador de BD) que lhe perguntava por mais novidades e pela sua obra, “Esse José Carlos Fernandes já morreu…” A Agência de Viagens Lemming é um projecto que foi inicialmente editado no Diário de Notícias, durante um verão (metade do livro, a outra metade deve-se ao facto do JCF ser uma das pessoas mais trabalhadoras e criativas que conheço, e como já ia embalado e tinha ideias, acabou por gerar mais 50 e tal páginas de BD!).

    Existem um ou outro livro mais por editar do JCF, e possivelmente veremos mais um este ano. Mas não creio que haja mais livros dele no futuro. É esperar que estes principais dele se mantenham em distribuição.

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