A recente inauguração, na sede do Clube português de Banda Desenhada, das exposições Eça de Queiroz na banda Desenhada e Alexandre Herculano na Banda Desenhada (“Alexandre, o Herculano”), comissariadas por Luiz Beira e com produção da Câmara Municipal de Moura e do Gicav – Grupo de Intervenção e Criatividade Artística de Viseu, relançaram a discussão sobre a adaptação à banda desenhada de obras literárias.
O professor António Martinó escreveu interessantes textos sobre esta matéria no seu blogue Largo dos Correios, e eu aproveito para recuperar a introdução do texto que fiz para o catálogo do Amadora BD de 2001. Na altura, o texto surgia a propósito do prémio para melhor álbum português atribuído a Eduarda, de Miguel Rocha, adaptação à banda desenhada de Madame Edwarda de George Bataille, a partir da tradução feita por Francisco Oliveira, nessa sua “obsessão de matar a filosofia rompendo com ela a partir de dentro”.
O reconhecimento, sob a forma do prestigiado troféu, à linguagem da banda desenhada como veículo para o discurso filosófico e, no caso, para o discurso filosófico de ficção, levantava diversas questões. Desde a questão da legitimação da banda desenhada, partindo da pista mais abrangente da legitimação da ficção, à técnica da adaptação à banda desenhada de textos literários.
A discussão teórica em torno da argumentação legitimadora da banda desenhada não pode deixar de considerar, pelo menos como ponto de partida, o que se tem dito e escrito a propósito da ficção filosófica e literária. E, dentro deste ponto de partida, não podemos deixar de sublinhar que estamos conscientemente a ignorar (para já) a realidade da banda desenhada que não é ficção. Mas algum método tem de nortear esta investigação, e escolhemos partir da ficção literária. Qual é a função e valor da obra literária de ficção? Será que a mesma função e valor se aplica quanto à banda desenhada?
A defesa da ficção literária tem sido assumida nos últimos vinte anos em trabalhos de grande interesse de investigadores e filósofos renomados. É particularmente elucidativo, para o ponto de partida que tomamos, o trabalho “Love’s Knowledge” de Martha Nussbaum (publicado pela Universidade de Oxford em 1990). Em causa está a contraposição da ficção literária ao discurso filosófico clássico e, em particular, a relevância ou irrelevância da ficção literária no estudo da filosofia e da moral.
As críticas de quem condena a ficção orientam-se sobretudo em dois sentidos: no argumento de que nenhuma informação fiável sobre o mundo em que vivemos resulta da apresentação de acontecimentos e personagens ficcionados, e no pressuposto de que o próprio raciocínio do leitor é prejudicado pelo apelo ao sentimento, próprio da obra de ficção.
Nussbaum contrapõe que a ficção literária possui características únicas que não devem ser ignoradas, permitindo-lhe ser o melhor veículo para determinado tipo de informação. Como Nussbaum explica, a pura abstracção teórica nem sempre é o melhor modo de relatar uma realidade concreta, complexa e cheia de sentimento. Falta-lhe expressão. Acresce que a ficção permite uma atenção ao indivíduo que garante uma enorme eficácia na resposta do leitor. Para Nussbaum, a ficção é um contributo para a formação humana, e a leitura da ficção literária cria hábitos e sensibilidades moralmente relevantes (e edificantes).
À data em que escrevi o texto, tinha sido recentemente publicado “The Simpsons and Philosophy” (da conhecida coleção de filosofia e cultura popular, parcialmente publicada em Portugal), onde Jennifer McMahon acolhe os principais argumentos desta defesa (as características únicas que permitem à ficção ser o melhor veículo para determinado tipo de informação; a atenção ao indivíduo que garante uma enorme eficácia na resposta do leitor; o importante contributo para a formação humana) mas vai mais longe.
A argumentação de McMahon vai mais longe em dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, para lá da importância da representação ficcional, considera-se a extraordinária importância da própria identificação do leitor com as personagens ou acontecimentos ficcionados. Em segundo lugar, considera-se que este discurso legitimador deve aplicar-se a outras formas de expressão artística, e não apenas à literatura clássica.
Tomando em linha de conta a importância da identificação do leitor, vamos procurar determinar se é possível construír um discurso legitimador para a linguagem da banda desenhada.
Embora numa perspectiva filosófica, a análise pudesse resultar fascinante se considerasse Eduarda, vamos procurar um tipo de análise mais generalista e que não seja tão predominantemente filosófico.
Durante muito tempo, o melhor argumento para a dignificação da linguagem da BD foi o de a apresentar como um “aperitivo” para a “verdadeira” leitura. Neste domínio, a adaptação de textos literários em banda desenhada desempenhava um papel importante. Não só na afirmação de novos públicos (familiarizados com a obra adaptada) mas também na própria evolução da banda desenhada, que se mostrava aberta à abordagem de diferentes géneros. Este último factor teve frutos importantes nas últimas décadas do século XX, em que renomados romancistas resolveram experimentar a banda desenhada.
Em Portugal, diversas razões de ordem histórica levaram a que a época de ouro da banda desenhada portuguesa fosse também uma época que favoreceu o trabalho na área da adaptação à banda desenhada. Autores como E. T. Coelho, Fernando Bento, José Ruy ou José Garcês são verdadeiros mestres na adaptação de textos literários em banda desenhada, evidenciando um tão grande conhecimento de áreas como a planificação, que lhes é possível manter toda a integridade do texto original que se adapta.