O Fascínio Do Inferno de Alan Moore e Eddie Campbell

Esta edição da Devir traz aos leitores uma edição em português de um dos grandes marcos do género no final do século XX.

Numa Londres de sombras e nevoeiro, sob a luz bruxuleante dos candeeiros a gás, um misterioso criminoso comete uma horrenda série de assassínios que chocou a sociedade britânica. Os esventramentos de prostitutas no bairro degradado de Whitechapel estão ainda hoje por resolver, alimentando especulações, obras literárias e cinematográficas. Bem-vindos ao inferno de Do Inferno.

O Fascínio Criminal

Do Inferno transmuta o fascínio confesso de Alan Moore pela mitografia dos crimes lendários de Whitechapel, nunca resolvidos, que ainda perduram na memória coletiva e inspiram a cultura popular. O argumentista é adepto da teoria que o assassino foi um membro da alta sociedade britânica, cujos membros conspiraram para proteger o criminoso e manter o crime nunca resolvido. Estas ideias são organizadas numa história arrepiante, onde se mesclam loucura, misticismo e a vida na cidade de Londres no final do século XIX, auge do império britânico.

Na visão de Moore, o infame Jack, o Estripador é William Gull, médico real incumbido de uma tarefa secreta pela rainha Vitória: eliminar os vestígios de uma aventura do seu filho Albert, herdeiro do trono, com uma mulher do povo, com o qual tem uma filha. Esta é entregue a uma família adotiva, e a sua mãe internada num manicómio. Mas há outras mulheres que conhecem a história, e quando tentam chantagear um amigo do príncipe Albert, a rainha is not amused. Gull, profundamente maçónico, cirurgião de sucesso a quem a idade começa a tornar impossível disfarçar a psicopatia, mergulha em visões místicas em que o Grande Arquiteto lhe mostra que irá fazer o parto a uma nova era, ao novo século. Os assassinatos das mulheres que conhecem o segredo real serão para Gull a oportunidade para praticar um ritual sangrento, que o fará transcender a linearidade do tempo. Entretanto, Londres entra em ebulição, com a curiosidade mórbida da população, o espicaçar dos jornalistas em busca de escândalos, a aparente incapacidade da Scotland Yard em apanhar o criminoso, e uma conspiração na sombras de maçónicos que, apesar de chocados com o quão longe Gull levou a sua mitologia, tudo fazem para manter o segredo real e fazer desaparecer o assassino sem que a sociedade suspeite da corrupção que se instalou na alta sociedade britânica.

Magia, Mitologia e Psicogeografia

Nunca consigo decidir qual o meu capítulo favorito de Do Inferno, se o quarto, O que o senhor requer de si, se o décimo, O melhor de todos os alfaiates. São, para mim, os dois polos à volta do qual se desenrola esta obra prima de Alan Moore. Leio-os como, atractores positivos e negativos da carga energética que flui nesta história. Os restantes são uma convencional narrativa de policial e conspirações, explorando a mitografia dos crimes de Jack O Estripador.

O quarto capítulo é um hino à dérive situacionista, misturando a mescla mística que Moore faz com Crowley, mitos maçónicos e quarta dimensão. Gull conduz Nettley, o seu cocheiro, num aparentemente aleatório périplo pelas ruas de Londres, parando nalguns locais com significância arquitetónica. Só no final do capítulo percebemos que o percurso tinha um sentido, os pontos de paragem unem-se num enorme pentáculo centrado na catedral de St. Paul. Pelo caminho Moore, através das palavras de Gull, dá-nos uma lição de pura psicogeografia, entre história, simbolismo iniciático e urbanismo. A influência da obra do escritor Ian Sinclair, que se baseia nas sensações e correntes de pensamento despertas pela deriva no espaço urbano, pesa muito neste capítulo.

Nos dias de hoje, é possível fazer um périplo turístico pelas ruelas onde há mais de cem anos decorreram os violentos assassínios em série. Não sei se nenhum operador turístico se lembrou de adaptar a dérive de Gull como uma excursão pelas ruas de Londres. Da próxima vez que tiver oportunidade de visitar essa fantástica cidade, tenho que experimentar o percurso sinuoso entre Brook Street e St. Paul. Como os nomes de algumas localizações se alteraram, vai obrigar a uma pesquisa prévia.

Se este quarto capítulo é, essencialmente, um longo discurso psicogeográfico, o décimo é quase mudo, por comparação. É macabro e perturbador, o momento em que Gull assassina a sua quinta vítima e a mutila metodicamente. A mutilação é um ritual, na mente ensandecida do assassino, a pedra que lhe falta na sua construção mística mental. A quinta vítima forma o pentáculo na psicologia de Gull, fecha o ritual que lhe permite sentir que transcende a linearidade do tempo e fazer o parto ao século vindouro. Moore não nos poupa, obriga-nos a um olhar dissecante sobre a profanação do cadáver da última vítima de Jack, o Estripador.

Para chegar aqui, Moore dissecou com olhar clínico a literatura criminal sobre Jack, o Estripador. Algo que por si é um mergulho alucinatório em especulações, entre o lógico e o bizarro. Algumas teorias, que o argumentista discute nas suas notas finais, têm uma relação de completa impossibilidade com os factos. Há algo mais do que o mero deslindar do culpado em jogo no fascínio evidenciado por estes crimes centenários, e Moore tenta colocar o dedo nisso. Fundamentalmente, não é importante e até seria contraproducente, revelar-se a verdade sobre os crimes de Whitechapel. A necessidade humana de mitos é primordial, são as especulações e discussões à volta dos factos que garante imortalidade a esta história de morte violenta.

Mitos e mistificações compõem a outra grande vertente de Do Inferno. Moore lida com psicogeografia urbana, simbolismos mágicos e ocultistas contidos na arquitetura, os arquétipos transmitidos pela tradição literária e pictórica, os rumores sobre conhecimento maçónico. Finaliza com uma viagem inquietante à mente de um psicopata, consumido pelas suas próprias mitificações de um real que apenas existe na sua mente.  Na visão do argumentista, o dissecar da teoria da conspiração mistura-se com misticismo iniciático e psicogeografia, numa história estruturada com o seu habitual rígido rigor formal.

O resultado é uma das obras primas de Moore, e um dos livros marcantes da banda desenhada do século XX. A ilustração está a cargo de Eddie Campbell, cujo traço expressionista num puro registo a preto e branco acentua o caráter tenebroso da história. O desenhador não se limita a ilustrar de acordo com as instruções, conhecidas como detalhadas ao ínfimo pormenor, do argumentista. A partir de bibliografia e recolhas fotográficas, faz um trabalho magistral em recriar a Londres dos finais do século XIX, entre os bairros chiques da elite e as zonas degradadas, de pobreza infecta, que são o terreno de caça do assassino em série.

Uma Edição que Fazia Falta

Originalmente editado em 1996, Do Inferno dificilmente será desconhecido dos fãs portugueses com acesso às edições publicadas em Inglaterra, América ou Brasil. Até mesmo Espanha. Faltava uma tradução portuguesa, e diz muito sobre o estado geral da perceção cultural sobre banda desenhada quando uma obra de referência demora mais de vinte anos a chegar à tradução em português europeu. A edição da Devir é boa, e preenche uma lacuna na oferta de Banda Desenhada por cá, mas não resisto a dois reparos. A decisão de manter o estilo gráfico do tipo de letra de aspeto manuscrito respeita o original, mas os balões estão pensados para o texto em inglês e o texto em português não se ajusta bem, ficando bastante difícil de ler. Senti-me deveras pitosga. Sem óculos, ler o texto

DO INFERNO
De Alan Moore e Eddie Campbell
Capa mole, formato 200×280 mm, 576 páginas, p/b
ISBN: 978-989-559-317-0
PREÇO: €39,99
Editora DEVIR

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