Há Piores III – Até ao Âmago de Geral et Derradé

Até ao Âmago, o terceiro volume da trilogia Há Piores de Geral et Derradé, pode não ser marco na BD nacional mas é para os autores.

O título do álbum é uma piada meta linguística e resposta aos críticos, sejam eles amadores ou profissionais, e uma declaração de intenções um assumir de uma posição: o Geral et Derradé podem não ser dos melhores, mas Há Piores, e por vezes bem piores, e a dupla demonstra neste álbum os atributos que possuí.

Falta de Humor

Geral et Derradé são representantes de um género de BD independente e alternativa que  – em  Portugal – algumas pessoas têm a tendência para esquecer, embora seja uma parte essencial da história da banda desenhada: o humor.

Seja nos EUA, Inglaterra ou França o humor sempre foi uma arma de contestação e um dos elementos que definiu os movimentos que foram surgindo, no seio da BD, em busca de caminhos e alternativas para os estilos vigentes.

Em Portugal o humor tem sido um patinho feio, existindo pouca produção,  com a excepção de algumas tiras de crítica politica ou desportiva que encontram espaço em algum jornal, mas que quase sempre acabam por não ter uma vida e preservação posterior em formato livro.

A publicação exclusiva de humor para as bancas ela desapareceu quando o Vilhena se reformou, tendo a tentativa realizada pelo Derradé no início do século tido um  fim prematuro sem encontrar o público que manteve a Gaiola Aberta e outras publicações que Vilhena consegui auto-publicar ao longo da sua vasta carreira.

A publicação e produção de Humor a nível da BD neste país é algo realmente paradoxal. É que quer a nível de obras “politicamente correctas e institucionais” quer a nível de obras de “ruptura e contestação” a produção nacional é parca. Isto apesar de o humor ser um dos géneros mais populares de BD, sendo as tiras humorísticas são um dos géneros que mais facilmente atrai leitores fora do público tradicional da BD.

As Bodas de Prata dos Gordos

É de salientar que este Há Piores 3 foi editado em 2015 quando a dupla celebrou 25 anos de carreira, um facto digno de registo, em particular num mercado que não remunera os autores de modo a que possam manter uma produção regular. Só por esse facto seria assinalar um álbum uma dupla que até tem uma obra extensa, para os padrões nacionais.

Geral et Derradé começaram a sua carreira a publicar em fanzines em fotocópias debotadas e no Notícias de Alverca, na década de 90 do século transacto, tendo estado entre os primeiros autores em quem a Polvo apostou quando surgiu no mercado livreiro como um opção para os autores nacionais, sendo na época a única editora a apostar maioritariamente neles.

No início a dupla alverquense publicou alguns livrinhos de 16 páginas na colecção Primata Comix,  tendo posteriormente passado a fazer alguns trabalhos mais longos. Quando Rui Brito, um dos fundadores da editora, regressou à edição de BD após alguns anos de inactividade, a dupla voltou a ser aposta da Polvo. Para além disso também foram das primeiras apostas da Escorpião Azul, editora fundada em 2014 por outro dos sócios fundadores da Polvo: Jorge Deodato.

O Paradoxo dos Alternativos Não Comerciais

No final da década de 90 e início deste século criou-se em Portugal o hábito de considerar que ser independente ou alternativo é um questão de estética e não uma questão formal: métodos de edição e distribuição.

É uma opção discutível e que serviu sobretudo para deixar num vácuo todos os autores que não encaixavam dentro daquilo que as iluminárias consideram que é “verdadeiramente alternativo”. Uma opção que deixa de fora muitos autores e géneros, como quem se dedica ao humor.

Afinal, o Derradé não desenha suficientemente mal para ter presunção de artista de belas-artes que borra as páginas incapaz de retratar eventos discerníveis sem um explicação metafísica. Sendo que as histórias são compreensíveis e, embora na maioria dos casos, se limitem a fazer humor inócuo, não existem pretensões de fazer dissertações sobre o padrão migratório das andorinhas e como isso afecta o desenvolvimento sócio-económico da Patagónia.

São histórias cujo objectivo é fazer rir e que, por vezes, são rascas mas nem por isso se abstém de em alguns casos fazer críticas mordazes à sociedade e costumes.

Esta dupla pode não ter pretensões artísticas, mas tem um voz única e inconfundível.  E fazem parte da história da BD independente nacional.

Quando eu mencionei que eles tinham começado a fazer BD em fotocópias desbotadas não os estava a criticar estava a constatar um facto. Hoje pode parece absurdo, mas a verdade é que na década de 90 encontrar um casa fotocópias que com um preto sólido era uma tarefa complicada. Em parte foi por isso que a Correia Gomes se tornou a gráfica oficiosa dos fanzines da zona de Lisboa, é que era dos poucos sítios em que era possível ter fotocópias de qualidade, e olhem que tinham mesmo qualidade que ainda tenho muitos fanzines aí impressos, e o preto ainda continua sólida. Aquilo era mesmo fotocópias de qualidade!

Hoje em dia com a evolução dos meios gráficos, isto só histórias do passado, mas o Geral et Derradé, fazem parte desse pedaço de história, de uma época em que existia uma diversidade de autores e géneros no “circuito” independente que depois se perdeu e demorou mais de uma década para se recuperar.

O absurdo de se considerar que só é independente quem obedece a um determinado critério artístico ou pessoal é que só serve para se limitar o suposto circuito independente e deixar num vácuo autores que são demasiado “comerciais” para os independentes e demasiado “alternativos” para o circuito comercial, onde não têm vendas suficientes para poderem ser remunerados condignamente e são também ignorados pela comunicação social.

Contudo apesar deste paradoxo de ausência de alternativa comercial, existem autores que tem vindo a desenvolver carreira, em parte graças ao seu trabalho e graças ao trabalho desenvolvido pelos seus editores e pelo público que os apoia.

Da Velha Guarda ou, se preferirem, Old School

Este Há Piores 3 – Até ao Âmago é um bom Exemplo da produção humorística dos criadores do Badsummerboys Band no seu melhor e pior.

Geral et Derradé são representantes de uma escola de humor que teve como expoente máximo a Chiclete com Banana de Angeli e os Piratas do Tietê de Laerte. Influências reconhecidas, incluindo nos agradecimentos deste álbum, e que se reflectem na forma como o livro está estruturado.

Até ao Âmago não é uma história mas um colectânea de histórias, de tiras e cartoons soltos, por vezes sem um fio condutor a ligar as piadas, com a excepção de algumas personagens que são recorrentes.

Este facto faz com que por vezes os álbuns sejam um pouco “esquizofrénicos” e com material com qualidade variável. Tomemos por exemplo este Há Piores 3.

Grande Bubas

Bubas é a história que abre o álbum é a mais bem conseguida. Porque existe uma narrativa subjacente a todas as tiras, o que permite que mesmo quando existe uma piada mais seca se torna menos evidente porque está englobado num história mais longa e contribui para a evolução dessa narrativa. É que apesar de ter um esquema que é geralmente de quatro vinhetas por tira e quatro tiras por páginas, cada tira é uma unidade autónoma que pode ser lida individualmente separada da narrativa global e ser compreendida, mas que também também um papel a desempenhar dentro da história mais longa em que está englobada.

Por entre piadas mais ou menos brejeiras sobre o Bubas, a estrangeira tarada e a namorada que só quer sexo depois do casamento é construída uma história sobre o desejo emocional e sexual e o conceito de fidelidade. É uma história leve, na abordagem, que aborda questões que são profundas, nunca se levando muito a sério mas sem ter medo de contar algo que vai para além de uma piada rasca.

Cães Capados é um absurdo datado devido ao facto de ter por base um referência cinematográfica que já não dirá muito a uma geração com menos de 40 e até aos que têm mais já é datado. É daquelas criações que faziam sentido num determinado tempo e que chegaram ao fim da sua validade.

Depois existem as habituais canções dos Badsummerboys Band, histórias ligeiras que conseguem sempre meter umas farpas bem afiadas. De um ponto de vista criativo já é um modelo datado, é Geral et Derradé vintage, afinal os gajos ando a fazer isto à mais 25 anos! Contudo continua a ter a sua piada.

A entrevista do Alvinho à Tracy era capaz de ter mais piada se eu me tivesse paciência para ouvir o Fernando Alvim na rádio ou na TV, este é daqueles casos onde a existência de uma caricatura de um personalidade resulta (melhor ou pior) consoante o conhecimento que se têm da pessoa que está a ser caricaturada. Mas, apesar desse facto, existem algumas piadas com muita piada, com comentários acutilantes sobre sexo, por vezes de modo brejeiro mas que no fim torna em algo mais sério, mas por pouco tempo.

A presença dos autores enquanto personagens é outro dos aspectos já tradicionais, no trabalho de Geral et Derradé. Neste caso perde-se mais uma vez a oportunidade de explicar o mistério de o Derradé não engordar enquanto personagem de BD, apesar de na vida real o aumento de peso ser evidente! E agora que já lhe mandei a boca do costume vamos lá à história que na realidade não é uma história.

Under Pressure, o capítulo do livro protagonizado por Geral e Derradé é sobretudo uma colecção de tiras e cartoons soltos ligados ténuamente pela mesma temática: as sessões de autógrafos que fizeram ao longo de 25 anos e, em alguns casos, existem pranchas de seis vinhetas que são seis cartoons independentes. Isto faz com que se note mais quando a piadas são menos conseguidas.

No fundo o objectivo dessa secção do livro nem é ter piada e ser universal, é uma dedicatória aos leitores, aqueles que compram os livros, aparecem nas sessões de autógrafos e incentivam os autores a produzir mais. Existem muitas piadas privadas que requerem um conhecimento dos autores ou dos visados para as perceber. Mas este é mesmo um capítulos para os fieís, e ainda existem alguns, ou pensam que se não existisse malta a comprar os gajos ainda andavam nisto!

É que reconhecimento “crítico” é coisa que nunca conheceram, fama e dinheiro também não, os gajos só ainda fazem estas coisas graças à malta que compra, vai às sessões de autógrafos e demonstra que existe malta que grama aquilo que eles fazem.

O capítulo final do livro, A paixão segundo Derradé, é um misto de ensaio filosófico e piadas brejeiras, onde mais uma vez voltamos a ter uma série de piadas soltas com um ténue fio narrativo. Este modelo é algo cansativo, porque  é um debitar de umas seis piadas por página, devido à estrutura que se aproxima mais a um colecção de cartoons do que a uma colectânea de tiras ou a uma narrativa coerente. É uma questão que tem mais a ver com estrutura narrativa do que com a piada dos autores, embora se possa questionar o facto de optarem por essa estrutura.

É por isso que a história inicial acaba por ser a melhor, em Bubas existe um narrativa que abrange todo a história e permite que os personagens e situações sejam desenvolvidos, sendo que essa narrativa acaba também por evitar que piadas menos conseguidas sobressaiam muito porque servem para o desenvolvimento da história e criam a base para a piada seguinte.

O Pior da BD Nacional

No fundo o pior do trabalho do Geral et Derradé é o mesmo que afecta a maioria da produção nacional: a ausência de remuneração que torna quase impossível que um editor impor qualquer tipo de mudança significativa ao autor, mesmo quando isso iria melhorar o trabalho. A ausência de remuneração e andar a correr por gosto, também leva a que na maioria dos casos os autores se deixem prender a um modelo que lhes permite contar as histórias que querem, mesmo quando existiam modelos alternativos que seriam mais eficazes.

Há Piores 3 – Até ao Âmago é um colectânea de história que tem a estrutura de uma revista como a Chiclete com Banana, mas aplicada ao longo de 64 páginas, sofrendo as vicissitudes desse facto. Não é um álbum para quem gosta de ler um narrativa coerente, é mesmo para quem gosta de ler histórias soltas de humor, sem um elo unificador que não seja a autoria das história pertencer à mesma dupla.

Um Fim Adiado

Até ao Âmago era para ser o canto do cisne do Geral et Derradé, tendo sido apresentado como tal e tendo um “editorial” onde é realizada a despedida e agradecimentos a quem permitiu uma carreira de 25 anos. Os agradecimentos têm toda a justificação que era necessário para quem tivesse dificuldade em perceber o motivo porque os autores iam pendurar as botas:  “Por último, muito Obrigado à minha família que tem aturado as minhas crises criativas, desmotivações várias e falta de tempo para ela. A partir de agora prometo que será diferente. Certo?”

Errado. Apesar do fim do anunciando o Derradé lá voltou (com ou sem ajuda do Geral) com mais um álbum pouco tempo depois. Contudo a saturação e desejo de ganhar juízo e deixar de correr por gosto é mais do que compreensível. Mas é a malta que insiste e persiste que tem vindo a criar os rudimentos de um mercado e feito que existam autores com 25 anos de carreira, possuindo um corpo de trabalho que à algumas décadas atrás se julgaria impossível de construir.

Pode ser pouco comparado com a produção existente em mercados adultos e que remuneram os autores, mas é o que tem permitido o desenvolvimento da BD nacional.

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