Deixa-me Entrar de Joana Afonso

Para os leitores de banda desenhada atentos ao panorama nacional, o nome de Joana Afonso dispensa apresentações. Dotada de um estilo gráfico muito pessoal e vincado, a ilustradora do premiado O Baile e Living Will foi justamente destacada na edição deste ano do AmadoraBD. Confesso-me fã do seu estilo visual, ao mesmo tempo elegante, grotesco, e muito vigoroso. Impressiona a forma como nos encanta com figuras disformes. Recordo vê-la apresentar pranchas e esboços de O Baile no Fórum Fantástico de 2012 e ter ficado desde logo hipnotizado com o seu traço. Espero que não se torne como outras promessas da BD portuguesa, desvanecidas e condenadas ao esquecimento, rejeitando a publicação de banda desenhada como José Carlos Fernandes, ou regressadas ao fim de décadas de afastamento para deslumbrar com a mestria gráfica como Penim Loureiro. Sabemos que por cá o mercado não é dos mais favoráveis a esforços sustentados, apesar da evolução positiva dos últimos anos, e talentos como o desta autora não se podem perder.

Deixa-me Entrar é o seu primeiro trabalho completamente a solo, sendo responsável pelo argumento e ilustração. Nota-se essa insipiência, apesar da qualidade da obra. Como já nos habituou, o nível visual é elevadíssimo. Já a história, tecnicamente muito bem estruturada, resvala um pouco na linha de equilíbrio entre o drama e o dramalhão. Acompanhamos um homem solitário, quarentão, tão perdido na vida que nem sequer se qualifica como vencido da vida. Encontra, finalmente, o amor nos braços da simpática senhoria do quarto que aluga. atraída pelo taciturno noctívago cujo quarto está cheio de caixas por abrir. O sentimentalismo é levada a alguns extremos. Sentimos logo pena por estar a olhar para a vida de um humilde técnico camarário dos serviços de limpeza urbana, vulgo homem do lixo. Sentimos-lhe, e aqui a autora é muito eficaz, a sua intensa solidão e incredulidade perante os poucos contactos mais pessoais que lhe vão sendo estendidos. O resvalar para o dramalhão é atingido com um acidente laboral que o deixará estropiado, afélio de tudo o que pode correr mal na vida de um homem. Por entre os dilemas do reconhecimento de sentimentos e as vicissitudes encontra-se um recorrente regresso nostálgico à simplicidade da infância. Aprender a viver obriga-nos a seguir em frente, não se ficando prisioneiro das memórias dos mais ingénuos tempos passados.

Talvez esteja a ser injusto, estando como estou mais à vontade nos campos da ficção científica e ficção transreal. Este Deixa-me Entrar obedece a toda uma outra sensibilidade mais humanista, próxima do romance, e fundamentalmente enternecedora. O livro é romântico, quase neo-realista, apesar de alguns toques muito bem conseguidos de humor. Alguns elementos estruturantes surgem uma concessão ao lado mais féerico da narrativa, como a propensão do personagem para viver rodeado de caixas vazias, altamente simbólico de uma vida apagada que a estranha chama do amor vem reacender. Apesar da soma destes ingredientes parecer exagerada, a linha narrativa é muito eficaz a levar-nos a sentir uma grande empatia com as personagens. Não resisto a uma nota muito pessoal para a forma extraordinária como o olhar da autora representa animais, neste livro os gatos, transformados com poucos traços muito bem aplicados em seres quase míticos, vulpinos despertadores de sonhos.

Deixa-me Entrar é um livro marcante. Mostra que sendo já uma referência no grafismo da banda desenhada, Joana Afonso tem a clara capacidade de contar boas histórias. Promete continuar a surpreender-nos com uma obra que amadurece a cada novo livro.

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DEIXA-ME ENTRAR

Autora: Joana Afonso
Editora: Polvo
Páginas: 64
PVP: 12€
Edição: 2014

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