Recordando Books of Magic

Inicio este olhar sob um comic que apesar de ser de referência está hoje um pouco esquecido com um outro tipo de olhar atrás.

Recordam-se dos tempos pré-internet? Quando para combinar um encontro era mesmo preciso combinar uma hora e local específicos, e os atrasos eram problemáticos porque não havia meios de comunicação imediatos? Quando para poder ver um filme, ler um livro ou ouvir um álbum que não fosse do interesse geral e comercial se demorava anos, ou décadas, até ele nos chegar às mãos?

Sim, leram bem, décadas, especialmente se fossem obras de cultura de género. Há uma boa razão, entre outras, para os fãs de uma certa geração serem tão nostálgicos com as colecções Argonauta ou as revistas de banda desenhada da Abril. Na altura não havia outra acessível forma de ler Ficção Científica ou comics, a menos que se tivesse algum acesso ao que se editava lá fora. Hoje é mais fácil, graças ao comércio digital mas também à diversificação de lojas que um pouco por todo o país facilitam aos fãs o acesso aos livros, autores e ilustradores que lhes intrigam a curiosidade, com curadoria de qualidade.

Escrevo isto porque a minha edição de The Books of Magic veio desses tempos inimagináveis antes das redes digtais, em que entrar numa livraria e deparar-me com um livro destes era um acontecimento. Já não me recordo qual, se na então nascente e aparentemente fabulosa Fnac, ou na Valentim de Carvalho do Rossio, na altura uma espécie de protótipo de megastore portuguesa e que hoje é, se nao me engano, uma sapataria. Talvez na Virgin Store do antigo Cinema Éden, conceito que depressa se esgotou e hoje é um espaço abandonado? Provavelmente na Fnac, que quando surgiu me ia provocando palpitações porque, pela primeira vez na vida, tinha escolha em livros importados de Ficção Científica e horror.

Books of Magic pertence a um tipo muito específico de série da DC Vertigo. Elaborado por uma equipa de luxo, com argumento de Neil Gaiman e ilustrações de John Bolton, Charles Vess, Scott Hampton e Paul Johnson, não servia tanto para lançar novas personagens como para reavivar na memória dos fãs personagens esquecidos nas prateleiras empoeiradas das aquisições editoriais e dos velhos comics empoeirados. Talvez para os tentar relançar, apesar de raramente se safarem com isso. Sendo mais plausível, talvez por razões perfeitamente entediantes de legislação de direitos de autor, uma espécie de usa-os senão perde-os dos direitos de autor aplicados a personagens obscuros de banda desenhada.

A mecânica é simples, e baseia-se na que transformou Swamp Thing de Alan Moore num clássico de erudição na história dos comics. Pega-se num personagem de charneira, dá-se-lhe uma história com o seu quê de iniciático, de périplo que aprofunda a sabedoria na escuridão oculta, mistura-se alguns personagens clássicos antigos e esquecidos, e cria-se alguns personagens novos que talvez se fixem no gosto dos leitores. Moore fez isso muito bem com a série American Gothic, a sua perversão do mega-evento DC Crise nas Infinitas Terras. Crossover em que francamente não estava interessado em meter o à altura seu monstro do pântano, e onde conseguiu transformar o banal tie-in de super-heróis numa tenebrosa conspiração oculta. No caminho criou uma nova personagem que se fixou, indelével, no gosto do público: John Constantine.

Books of Magic também irá girar à volta de John Constantine, apesar de aparentemente tal não ser suposto. A história centra-se no périplo do jovem Tim, um rapaz cujo futuro promete ser um de um mago com poder incomensurável, mas é Constantine que será a presença constante. Não surpreende, pois é este o chamariz da série, apesar desta se centrar muito bem num processo iniciático de descoberta quer da magia, quer dos personagens sobrenaturais das bibliotecas de propriedade intelectual da DC.

Apesar de ter gostado muito da leitura original que fiz há alguns anos (ou décadas, acho que o li ainda no século passado…), não me lembraria de voltar a pegar nele, especialmente no contexto do aCalopsia, senão pela leitura de um artigo que saiu na Atlantic Magazine no ano passado. Esta é uma revista curiosa, que leio na sua edição digital, alicerçada em boa escrita e em pontos de vista interessantes que oscilam entre o conservadorismo e o progressismo. Descobri esta leitura graças às imperdíveis reportagens e artigos de Alexis Madrigal sobre tecnologia. Deparei-me com uma publicação que dedica regularmente artigos à cultura popular e ficção científica. Das suas páginas saiu para a Marvel um argumentista inaudito, o escritor Ta-Nehisi Coates, que escreve na Atlantic sobre o duro legado afro-americano e cumpriu o sonho maior de qualquer geek, sendo convidado a escrever Black Panther.


De caminho, publicaram este Harry Potter’s Forgotten Predecessor. Um daqueles raros artigos que faz clique, e nos faz pensar em algo que se calhar até intuímos mas nunca tínhamos ligado os pontos. Sublinha que, em 1993, Neil Gaiman cria uma história sobre um jovem adolescente anónimo com óculos que irá descobrir quer o maravilhoso mundo oculto da magia tendo alguns personagens marcantes como guia, quer o poder que a magia lhe confere, e tem uma coruja como animal mágico de estimação. J. K. Rowling teve mais sorte com a sua história do jovem aprendiz de mago, com o seu passado desconhecido, aprendizagem da magia, promessa de grande poder e uma coruja como animal magico de estimação. Completo com óculos, e um visual que quando o comparamos ao de Tim em Books of Magic nunca mais deixamos de conseguir não interligar. Tirando o ambente anglicista do colégio privado, que Potter herda de Enyd Blyton e outros nomes da ficção de aventuras juvenis inglesa, a premissa de Harry Potter é muito similar ao de Tim em Books of Magic. Sublinhe-se que não no sentido de plágio, mas de polinização cruzada e provável inspiração. O artigo pergunta-se o porquê desta assimetria de sucessos, reflectindo que talvez tenha tido a ver com as diferenças de percepção do grande público sobre a importância dos comics versus a importância da literatura infanto-juvenil.

Ou talvez porque nunca foi suposto que a personagem de Tim descolasse. De facto, tal não aconteceu. A promessa do grande e poderoso mago, com indícios de que iria provocar um cataclismo no universo DC, nunca passou disso. Após Gaiman, passou por algumas séries de curta duração, a mais recente das quais num dos arcos narrativos de Justice League Dark. Normalmente é personagem de fundo naquelas vinhetas épicas dos crossovers da DC que misturam dezenas de personagens em cenas de acção.

A série divide-se em quatro arcos. No primeiro, Phantom Stranger irá guiar Tim até ao início do mundo, na versão DC. Começa na queda dos anjos, a origem de Lucifer Lightbringer, passa pela Atlântida, pelo mito arturiano de Merlin para introduzir Jason Blood, e pela história da magia da pré-história às perseguições nos primórdios do iluminismo. Termina com uma visita aos torturados personagens clássicos da DC, Doctor Fate, Sargon e Zatara. O mote deste arco é o preço da magia, o que ela nos obriga a sofrer, e no que nos transforma.

O segundo arco mergulha nas personagens contemporâneas, de braço dado com um John Constantine que o leva a conhecer The Spectre, Doctor Thirteen e Madame Xanadu. Com Zatanna, descobrirá os vilões do horror da DC Comics. Gaiman faz crescer aqui um elemento conspiratório e ominoso, o da promessa catastrofista do poder manifestado por Tim. Mas, essencialmente, este arco serve para reforçar a imagem de Constantine como elemento de interligação. Algo que se já é prevalente na narrativa, aqui é o grande centro dela.

No terceiro arco seguimos, como um drone obediente, um Tim levado pelas mãos do andrógino Doctor Occult às terras de fantasia. Mais um revisitar de diferentes e esquecidos aspectos dos mundos ficcionais da DC, com um fortíssimo pendor para o fantástico. Evoca o mercado das fadas, que não é um bom sítio para fazer negócios, o mundo tutelado pela rainha Titânia, com a sua beleza e as regras que ocultam a possibilidade de escravidão, os terrores primordiais da floresta encarnados em Baba Yaga. O périplo passa por referências a séries descontinuadas como The Warlord, Amethyst e Nightmaster, ou outras mais presentes na memória com o trabalho de Gaiman em The Sandman e Moore em Swamp Thing, referenciando o Inferno de Etrigan e as Casas do Segredo e Mistério. Este arco lê-se como uma espécie de derivação de The Sandman, algo que diria inevitável. Soberbamente ilustrado por Charles Vess, é no fundo um capitulo altamente metafórico sobre o poder da imaginação no conjugar de infindos mundos ficcionais, nunca estando satisfeita, procurando sempre mais. Também tem, dentro dos conceitos de magia, um curioso desvio para as dualidades com um personagem que se alterna entre masculino e feminino, contendo em si os dois aspectos dominantes da espécie humana. Sublinho que aqui, com o meu pendor mais forte para especulações de base científica e parco conhecimento sobre tradições ocultas, estou a esticar a corda no sentido interpretativo.

A conclusão leva Tim ao tempo profundo, ao fim, literal, dos tempos no futuro longínquo. O seu tutor será Mister E, personagem capaz de viajar pelos infinitos caminhos das possibilidades de futuro. A história aqui torna-se mais negra, com o caminhante do tempo a mostrar a Tim possibilidades de futuro em que o seu poder servirá o mal e será responsável pela aniquilação do universo DC. Segue mais em frente, ao futuro da Legion of Super Heroes, e a aniquilação total às mãos de Darkseid. Continuam em direcção a um futuro entrópico com a humanidade a viver em fusão com super computadores, uma espécie quasi-humana numa Terra sob a luz de um sol sem força, ao colapso dos arquétipos num prelúdio de uma entropia final. A viagem terminará no final dos tempos, onde convergirão todos os caminhos que se bifurcam. Será o momento em que Destino (esse destino, um dos The Endless de Gaiman) lê a última página e encerra o seu livro, e só resta a Morte para, nas suas palavras, put it all in order now, and lock the place up. Um momento final que será antecedido de um último drama, com Mister E a tentar assassinar Tim, revelando a extensão da sua psicose alicerçada na paranóia desperta pela visão de realidades alternativas apocalípticas.

Tim sobreviverá, e Mister E será castigado com o regresso ao presente pelo caminho mais longo, passo a passo do futuro ao passado. No final, no balanço desta tutoria do jovem mago, reflecte-se sobre liberdade de escolha, e como esta pode ser manipulada com subtis maquinações. Tim pensa em rejeitar a magia, mas a escolha real já tinha sido feita ao aceitar participar num percurso iniciático que o transformou irremediavelmente.

Books of Magic tentou introduzir um novo personagem, mas o que conseguiu foi reforçar outro e manter na memória editorial outros em risco de esquecimento e que não tiveram destino melhor do que o jovem aprendiz de feiticeiro. Phantom Stranger continua a ser interessante pelo que se intui e não pela forma como é explorado. Doctor Occult também não tem sido muito explorador, e do cego Mister E, pouco há a registar. Outros personagens passam pelo périplo de Tim, como Lúcifer e os anjos (estes sim, explorados em séries memoráveis), Zatanna e Madame Xanadu, que tiveram direito a interessantes séries próprias e se mantém como membros de super-grupos, tal como The Spectre, Etrigan, até Cain e Abel, junto com o incontornável Sandman, que irá encerrar a série com a presença da sensual Morte como jovem gótica imaginada por Gaiman. De caminho ainda são recuperados personagens mortos como Sargon ou Zatara, assumindo o quanto Gaiman deve a Moore, ou muito de raspão outros mundos ficcionais da DC, com referência a Amethyst e Nightmaster. A primeira foi recentemente recuperada como parte do alinhamento New 52.

O livro sofre do mal da ilustração soberba, com os moldes clássicos subvertidos pelo cunho pessoal dos ilustradores. É um dos pontos altos da aposta num estilo que tornou a Vertigo uma referência no panorama global da banda desenhada considerada estilisticamente séria e ambiciosa. Charles Vess é a referência maior, com Scott Hampton, John Bolton e Paul Johnson numa parceria de luxo a dar corpo ao argumento de Gaiman.

Mais do que uma história sobre a descoberta da magia, Books of Magic é um périplo iniciático pelos personagens e mundos ficcionais da DC ligados ao oculto, que reforça o crescimento da fama de John Constantine enquanto retira alguns das prateleiras poeirentas dos arquivos da editora.

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