Pode parece estranho trazer José Carlos Fernandes a um espaço dedicado a livros e autores esquecidos. Este Olhar Atrás quer perscrutar os recantos mais esquecidos da biblioteca, voltar a pegar naquele livro que há tanto tempo nos deslumbrou e que, apesar do passar do tempo, continua a despertar boas memórias de leitura. Afinal, estamos a falar de um dos mais justamente celebrados autores da BD portuguesa, cuja indiscutível obra maior – A Pior Banda do Mundo – foi recentemente reeditada. Mas se esta continua na consciência dos leitores de BD, há outras obras deste autor que caíram no esquecimento. Algumas de forma forma surpreende, como a que vos trago hoje, que me tocou de forma irresistível num Amadora BD de antanho. De 2009, tendo inclusive sido distinguido como melhor álbum português desse ano. Já passou algum tempo, mas não assim tanto quanto isso.
A Metrópole Féerica despertou-me a atenção logo no espaço de exposição. As pranchas altamente pictóricas, mais quadro artístico do que grafismo de BD, agarraram e a aquisição do livro foi imediata. Prometia ser o primeiro de muitos volumes, mas ficou-se apenas por este primeiro e foi depressa e injustamente esquecido pela memória colectiva. O primeiro ponto notável do álbum é José Carlos Fernandes assumir o argumento mas deixar o grafismo a outro criador, Luís Henriques, o que dá toda uma outra dimensão ao livro, uma vez que Fernandes é dono de um traço pessoal e identificável. O livro equilibra-se entre as palavras e a imagem, pensado estrategicamente para nos surpreender a cada virar de página.
A inspiração, ou melhor, a vénia que este livro faz é muito óbvia. Falar de metrópoles feéricas em BD remete logo para a clássica série das Cidades Obscuras, onde o surrealismo dos argumentos de Peeters colidiu genialmente com as metódicas arquitecturas fantásticas saídas do lápis de Schuiten. Isto do lado da BD, porque do mundo da literatura a presença das Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino é quase opressiva. Correndo o risco de ser pedante, dado o lado episódico do livro, diria que há por aqui algum daquele borgesianismo onde o mapa se torna o território de Tlön, Uqbar e Orbis Tertius. Mas talvez já esteja a ler coisas a mais nas entrelinhas do texto.
A Metrópole Feérica divide-se em curtas vinhetas literárias que nos transportam, num registo narrativo claramente decalcado de Calvino, a cidades oníricas cujo normal anda longe da nossa noção de normalidade. Daí o encanto da imaginação desperta pelo urbanismo. Começamos em Fílon, a cidade teatral, onde os habitantes vivem de acordo com guiões precisos sussurrados por um exército de pontos teatrais. A referência a fílon não é acidental, remetendo quer para a raiz teatral na Grécia antiga quer para o logos da filosofia gnóstica de Fílon de Alexandria. Nunca nenhum habitante ficou a balbuciar, incapaz de dizer a coisa certa a qualquer momento, até ao momento em que os pontos desapareceram e a cidade colapsa. O classicismo teatral do conto é sublinhado pelo traço, que vai buscar a arquitectura neoclássica e ainda faz uma brilhante piscadela de olhos a Hogarth, quase replicando a gravura que satiriza a má representação em perspectiva. Há uma continuidade de ilusão inspirada em Escher na forma como o olhar é levado através desta cidade, até ao final inevitável.
Seguimos para Khamsin, a cidade do vento do deserto, dominada pela ominpresença de um vento que ao trocar os chapéus dos seus habitantes também lhes troca as ideias e formas de estar na vida. Este é talvez o momento em que José Carlos Fernandes está mais próximo de si próprio, do delicioso absurdismo do banal a que nos habituou em A Pior Banda do Mundo. O grafismo aqui altera-se, roçando a abstração de pincelada solta. Daqui entramos em Manata, um hino aos sonhos de urbanismo iconográfico. É um dos momentos mais deslumbrantes de um livro em si deslumbrante, capta o estilismo grafismo das cidades de utopia arquitectónica num intrigante registo gráfico de colagem Pop Art. Encerra em si uma crítica muito óbvia e batida à sociedde de consumo nesta história de uma cidade de espanto que se arruína no desperdício gerado para produzir a sua prosperidade.
O cinzentismo pontilhado de vermelho de Trabântia brinca com as reais distopias do totalitarismo soviético. Remete para um qualquer país cinzento, numa cidade cinzenta, para lá da cortina de ferro dominada por uma oligarquia política, a qual controla todos os aspectos da vida dos seus cidadãos sob constante bombardeamento de propaganda. O traço aqui altera-se para um registo soturno, sufocante, de um expressionismo negro. O referencial de devaneio a pensar em Melville, Jack London, e talvez Pratt colide no fascínio tropical da distante Tangaroa, cidade sempre coberta por uma etérea neblina. Cidade situada nos confins dos oceanos, para lá derivam os detritos da memória. O cinzentismo da névoa e do crepúsculo são os tons dominantes. José Carlos Fernandes termina com Deus a enfurecer-se com os exigente humanos, cujas línguas confunde numa algaraviada, reduzidos a silhuetas que refilam. Luís Henriques desconstrói com mestria a representação clássica de Brueghel o Velho da torre de Babel ao longo destas pranchas finais.
Se este é um livro visualmente esplendoroso, parece um pouco atípico na obra do argumentista. O referenciar demasiado óbvio das influências literárias e a queda em lugares-comuns, numa narrativa afastada do seu olhar peculiar, não o deixam ir além do que o que realmente é, uma inspiração no urbanismo fabulista de Calvino, Schuiten e Peeters. Sobressai o estilismo mutante da obra que nos lega momentos de espanto visual. Ficou-se por um único volume, e talvez ainda bem. Este corpo estranho fica para a memória como um livro de BD onde a imagem se sobrepõe largamente às palavras. São os traços e as cores que nos cativam, sendo o resto um quase adereço. Um livro que se lê como uma exposição de pintura.
A Metrópole Feérica: Terra Incógnita Vol. 1
Argumento: José Carlos Fernandes
Desenho: Luís Henriques
Editora: Tinta da China
Páginas: 88, capa cartonada.
Tive muita pena que não fosse editado o livro seguinte.
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Abraço