O Poema Morre, de David Soares e Sónia Oliveira

Uma incómoda meditação sobre a guerra. É um tema que nos é habitual glorificar ou temer. Louvamos os heróis, ficamos entusiasmados com feitos valorosos em combate, comprazemo-nos com as descrições tácticas dos movimentos das forças no mapa. Ou lamentamos a destruição, choramos as ruínas, ficamos desolados pela mortandade e talvez olhemos, com morbidez deliciada, para as geometrias sangrentas da carne dilacerada pelas balas.

Em O Poema Morre David Soares parece perguntar-nos se a guerra talvez seja uma constante humana, uma reflexão societal da violência inata da alma humana. Uma visão dura, que explora numa dos mais incómodos livros que publicou recentemente. Incómodo em vários níveis, quer pela visão de negativo absoluto sobre o espírito humano, quer pela impiedade liguística com que assalta os leitores. Como já é nele habitual, não nos poupa nas palavras complexas. Faz jeito ter um dicionário por perto ao ler este livro. Algo que faz parte dos encantos de David Soares, nada avesso a um uso quase gongórico da linguagem trabalhada para lá dos limites.

Enquanto ia revelando informações sobre o novo lançamento David Soares afirmou que este livro seria um murro no estômago dos leitores. É, de facto, duro. Não há redenções nem ilusões de bondade. Todas as personagens são naturalmente perversas, perversão que se torna sistémica quando escalada a toda uma sociedade. Um poeta envelhecido, sublimador de atracção erótica mórbida pela morte, marcado pela violência e que usou, inconsciente, as palavras para castigar aqueles cujas sevícias lhe marcaram a juventude. O poeta é amante da sua meia-irmã, mulher estropiada que intuímos ganhar a vida como prostituta para clientes mórbidos. Recordo vagamente ter lido, talvez em Erich Maria Remarque, sobre a atracção que mulheres sem pernas e braços exerciam nos bordéis da I guerra mundial. Ou talvez esteja enganado nesta referência algo difusa.  A cuidadora deste estropiado vaso de inconfessáveis desejos masculinos está apaixonada pelo poeta e conquista-o assassinando a meia-irmã. Livra-se do fardo, recupera as rédeas do seu destino querendo entregá-las ao amado, mas terá um destino ironicamente similar ao da mulher que assassinou.  Mas este não é um livro de ardores. Antes, de desalento. Não há finais felizes, apenas um detalhar amargo de uma paz doentia, breve interlúdio pressagiador de pior violência.

É raro haver inocência na obra de David Soares. Não encontramos nas suas histórias nem bons selvagens nem bons civilizados. Talvez o seu bom selvagem seja o canibal sorridente que lambe os beiços, antevendo o sabor a churrasco de um Rousseau assado em lume brando. Chocado pela violência das guerras napoleónicas em Espanha, Goya sublimou o trauma nas suas mais negras pinturas e gravuras. Legou-nos os monstros que povoam o sono da razão, e são esses os sonhos atormentados em que O Poema Morre chafurda. Não revolve, nem aborda. Chafurda, porque é para o lamaçal das pulsões mais tenebrosas da visceralidade humana que este livro nos atira.

O estilismo gráfico de Sónia Oliveira, que ilustra a difícil narrativa, caminha num equilíbrio decidido entre o realismo e o expressionismo. São as emoções exacerbadas que caracterizam a expressão dada pelo traço solto e pincelada solta. Sente-se nalgumas vinhetas um tunelamento de visão, talvez sintoma da progressiva incapacidade de redenção dos personagens deste murro incómodo.

O Poema Morre é uma edição da Kingpin Books, escrito por David Soares, ilustrado por Sónia Oliveira e letrado por Mário Freitas, lançada a 31 de outubro no Amadora BD.


O Poema Morre

Autores: David Soares, Sónia Oliveira, Mário Freitas.
Editora: Kingpin Books
Páginas:68, capa dura
PVP: 12,99 €

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