Os fãs de comics com uma certa idade recordam-se de algumas idiossincrasias textuais. Daquela certa idade dos que aprenderam a gostar de BD e se apaixonaram pela Marvel e DC com as revistas da Abril importadas importadas do Brasil. Publicações que, nos anos 80 e 90, traziam a todas as bancas de jornais as aventuras dos super-heróis das duas grandes editoras americanas. Tempos que não me atrevo a chamar-lhes áureos. Isso seria analisá-los sob o olhar da nostalgia, mesmo observando que hoje os comics são publicações que rareiam nas bancas, e que nessa época havia publicação regular, sendo fácil encontrar até as séries especiais. Como, por exemplo, a minha edição de Watchmen, que ainda é desses tempos (e não lhe toco, não se vá desfazer em páginas soltas) ou outras mais experimentais. Havia as revistas em papel de jornal, algumas cuidadosamente sobreviventes nas minhas prateleiras, e chegavam cá colecções com melhor qualidade de edição. Tudo traduzido num português vernacular vindo dos trópicos. Traduções com muitas bizarrias, construções frásicas e expressões que soavam estranhas. Isso, e o formato de edição que distinguia estes comics, provavelmente terá formado toda uma geração de leitores.
Uma sensação literária de leve nostalgia que foi revivida ao pegar nestes Dias da Meia Noite de Neil Gaiman. Edição de luxo em capa dura e papel sedoso, trazida até nós pela Panini Brasil, que edita Midnight Days da Vertigo naquelas traduções que hoje, com o olho destreinado, ainda soam mais estranhas. Esta poderia ser uma boa desculpa para entrar em considerações sobre as utopias de acordos ortográficos e a realidade vernacular da linguagem viva.
Um outro Neil Gaiman
Dias da Meia Noite colige o trabalho de Neil Gaiman para a DC que não passou pelo mítico e longo arco de Sandman. O nome deste argumentista e romancista britânico ficará para sempre associado a essa longa e espantosa série, recentemente recuperada em Sandman: Ouverture, prequela ilustrada pelo não menos mítico J. H. Williams III. Uma série influente e marcante, mas que não foi o seu único trabalho para a Vertigo. São essas histórias, saídas da revistas Swamp Thing, John Constantine: Hellblazer e das mini-séries de The Sandman Midnight Theatre, que estão coligidas nesta edição.
O universo do Monstro do Pântano é explorado em três histórias onde Gaiman navega à vontade dentro das linhas traçadas por Alan Moore para o personagem. Com Jack in the Green, aprofunda um Monstro do passado cuja réstia de humanidade e limites de poder são postos à prova com a peste.
Em Irmão, recupera Brother Power, personagem esquecido da DC, um boneco de trapos consciente, revisto aqui como outra força elemental literalmente caída do espaço, quando o satélite que o aprisiona se despenha. Um Jason Woodrue de personalidade fragmentada é a personagem principal de Contos de Deuses Peludos, com uma visita ao inflexível parlamento das árvores.
Abraço é uma das mais marcantes histórias de John Constantine, sobre assombrações e isolamento extremo nas fímbrias do espaço urbano. O Teatro da Meia Noite passa-se dentro do universo ficcional de Sandman, escrito em parceria com Matt Wagner numa aventura que cruza os dois Sandman da Vertigo: o infinito metafórico senhor dos sonhos e Wesley Dodds, combatente pulp do crime nos anos 20, numa história de conspirações, crime e personagens que não são o que aparentam ser. Encerra com uma homenagem ao horror cómico dos anos 70, com Caim e Abel da Casa dos Mistérios a recordar as introduções aos comics antológicos de terror, numa história cheia de humor negro ilustrada pelo lendário Sergio Aragonés.
Um grafismo que marcou a época
Retrato da Vertigo no seu auge, esta antologia distingue-se, como não podia deixar de ser, pelo esplendor gráfico da ilustração. Grandes nomes dos comics trabalharam com Gaiman nestas histórias. Para além de Aragonés, o traço influenciado pelo expressionismo alemão de Teddy Kristiansen ilustra os Sandmen de Gaiman e Wagner. Dave McKean, cujo grafismo marcou de forma indelével a DC Vertigo, é o responsável pelo deslumbre gráfico da aventura de John Constantine. O mergulho nas selvas amazónicas onde reside o parlamento das árvores está a cargo do traço único de Mike Mignola. E Jack in the Green marcou o regresso de Steve Bissete, que com John Totleben foi o responsável pelo visual expressivo e surreal de Monstro do Pântano, tão marcante quanto os argumentos de Alan Moore, ao personagem.
Esta edição de luxo da Panini Books é uma boa adição às estantes de leitores que sejam fãs do trabalho de Neil Gaiman nos diferentes media, bem como aos conhecedores do trabalho inovador para a época de edição da Vertigo. Ler as traduções para o vernacular brasileiro tem o seu quê de doloroso, mas é o preço a pagar para ter esta obra em português.
Dias da Meia Noite
Autores: Neil Gaiman, et al.
Editora: Paninni Books
Páginas:175, capa dura
PVP: 12,50 €