O hiperrealismo virtual foi um hábito que adquirimos. A tecnologia digital legou-nos imagens de síntese tão perfeitas que nos parecem indistinguíveis do real. Algo que é possível graças à combinação de complexos algoritmos que simulam os mais ínfimos detalhes do real, e as minuciosas técnicas elegantes dos artistas digitais. Este hiperrealismo quase parece banal. Sentimos progressivamente menos a diferença entre um virtual que nos parece real a cada nova iteração técnica. Percorreu-se um longo caminho até chegar aos correntes níveis de realismo. A história da evolução dos gráficos digitais acompanha a evolução do computador, desde os primeiros gráficos simples de geometrias primitivas traçadas em ecrãs negros. Curiosamente, data dos anos 60 a primeira digitalização de um objecto, com o trabalho metódico dos alunos de Ivan Sutherland a cobrir de fita adesiva um Volkswagen Carocha e a medir cada intersecção de triângulo. Estas medições foram introduzidas num computador e daí gerado um modelo 3D. Sutherland, que também propôs e construiu o Sketchpad, primeiro sistema integrado de desenho no computador, é o pai do grafismo digital nas suas diferentes vertentes.
Nos primeiros tempos os gráficos por computador eram facilmente identificáveis. Ecrãs de com imagens algo toscas, figuras criadas através da conjugação de formas geométricas (em 3D, o que se denomina por modelação com primitivos). O baixo poder computacional não permitia suavizar ou disfarçar os polígonos geradores de superfícies. Uma estética de cores brilhantes e ausência de sombras porque os algoritmos de simulação de luz reflectida ainda se encontravam em desenvolvimento. Elementos que de forma casual acabam por formar uma estética própria e identificável. São imagens que encantam e atraem, mesmo hoje, por encerrarem a promessa de algo novo, absolutamente novo, futurista. A associação desta iconografia ao cyberpunk é inevitável e nalguns casos inextricável. Também o Cyberpunk se deslumbrou com a promessa de algo de absolutamente novo trazido pelas tecnologias computacionais.
Digital Justice foi uma banda desenhada precursora. Das primeiras graphic novels a utilizar apenas grafismo digital, foi escrita e desenhada pelo ilustrador Pepe Moreno. Editada pela DC em 1990, tem a distinção de ser uma das primeiras bandas desenhadas totalmente desenhada por computador. Partilha-a com os primeiros números de Shatter (1985) e Iron Man: Crash (1998), ambas ilustradas por Mike Saenz. O estilismo mistura 2D e 3D, com a estética de pintura pixelizada que era possível na altura. É-nos difícil imaginar hoje o desafio de criar, utilizando máquinas arcaicas mas lendárias, desenhos utilizando ferramentas à altura rudimentares. Moreno trabalhou com Amigas utilizando ferramentas de desenho e modelação 3D cujo registo não consegui encontrar. Visualmente, o comic está à altura do grafismo dos jogos clássicos de computador de 256 cores. Esses mesmo, aqueles com personagens pixelizados a interagir em cenários repetitivos. Os conhecedores dos arcades, ou os fãs da retro-computação por emulação, percebem o fascínio deste grafismo que pelos padrões actuais é primitivo.
Da história em si há pouco que dizer. É Batman em modo cyberpunk. Visitamos uma Gotham num futuro decaído que é a tenebrosa e decadente cidade de sempre, apesar do aspecto high tech. A pobreza grassa nas ruas, polícias robots patrulham as ruas, os corruptos polícias humanos fecham os olhos aos crimes institucionalizados. Os pontos nevrálgicos da cidade – a lei, os media, o crime, estão sob controlo de uma cabala também ela dominada por entidades obscuras. Nas ruas da cidade emerge uma força cultural encarnada por uma cantora pop carismática, clone da líder da cidade, cuja rebeldia inata a levará a assumir o papel de Catwoman.
Acompanhamos Jim Gordon, neto do clássico comissário amigo do homem morcego. Polícia revoltado, em luto pela morte violenta da parceira de trabalho e perseguido por forças invisíveis no sistema. Cansado de se sentir impotente perante a corrupção, descobre entre os pertences do avô o velho fato do Batman, doado ao avô por Bruce Wayne aquando da sua reforma. A sua chegada às ruas desperta atenções dos media e acorda algo dentro da antiga mansão Wayne, oásis neoclássico no meio do hiperurbanismo futuro. Após retirar-se das ruas, Batman passou o resto da vida em reclusão, intuindo que o futuro do crime era digital e trabalhando numa forma de o combater. O resultado é uma inteligência artificial servida por um Alfred robótico, que coloca equipamentos futuristas nas mãos de humanos corajosos para combater o crime. Aqui revela-se a verdadeira ameaça. Também o Joker sobreviveu em forma de vírus digital, e controla a cidade através dos seus pontos nevrálgicos. Segue-se um perigoso e destrutivo jogo do gato e do rato que mescla o real e o virtual.
Nada de inesperado, aqui. É mais um recontar do mito de origem do personagem, agora com roupagens cyberpunk que hoje nos parecem datadas de forma pitoresca. Não é das melhores nem das piores histórias do clássico personagem. É o grafismo, à época inovador e surpreendente, que dá a este álbum um lugar no panteão da banda desenhada que é bom não deixar que caia no esquecimento. Reler, hoje, Digital Justice é ter nas mãos um artefacto quase arqueológico dos primórdios de uma era digital agora pervasiva mas à época apenas intuída.
Há que analisar Digital Justice pelos valores da época em que foi concebida. Para os padrões de hoje o grafismo é primitivo, mas com o passar dos anos não perdeu um certo lustro cyberpunk. Hoje a produção de comics pode ser feita de forma totalmente digital, algo que as ferramentas disponíveis facilmente tornam oculto simulando materiais tradicionais. Banda desenhada precursora, merece releituras. Visualmente datada, marca um grafismo característico de época e tecnologia, que hoje se mantém como artefacto histórico. Aponta, com a exuberância típica do cyberpunk, para um futuro nas técnicas de ilustração que hoje é normal e invisível para o leitor. De Pepe Moreno pouco há para falar. Artista e ilustrador de outras séries de banda desenhada, depressa se tornou um nome obscuro que ainda hoje vive da fama de ter criado um dos primeiros comics totamente digitais. No seu site ainda podemos encontrar para venda impressões de alta qualidade da cabeça facetada de Batman que criou. O visual colorido berrante, a pose Max Headroom, recordam a nostalgia de um futuro que prometia maravilhas e distopias, futuro esse que talvez seja o nosso cinzento presente.
Existe uma edição em português da Abril-Morumbi, chegada a Portugal nos velhos tempos em que era corriqueiro ver graphic novels da Marvel e DC em qualquer banca de jornal. Se depararem com ela nalgum alfarrabista, folheiem-na com atenção. No nosso caso particular junta à vertente de artefacto dos primeiros tempos da era digital o recordar de uma facilidade na leitura de banda desenhada de massas que hoje parece irrecuperável.
[box title=”Ficha técnica” box_color=”#f2ecdd” title_color=”#353535″]
Autor: Pepe Moreno
Editora: DC Comics / Abril Jovem
Páginas: 113
Edição: 1990
[/box]
Eu tenho essa reliquia zuca.Mas em muito mau estado.
a minha está a acusar o peso da idade. mas não perdeu o brilho.