Jodorowosky, Moebius e a Louca do Sacré-Coeur

Embora tenha nascido no Chile, é no México que o génio criativo de Alejandro Jodorowsky se revela.

“Anibal 5”, um dos seus primeiros trabalhos (surgido em 1966) mostra já, apesar do traço muito tradicional do desenhador Manuel Moro, um universo inovador entre o fantástico e a ficção científica, povoado por estranhas criaturas.O próprio protagonista era um ‘cyborg’ cheio de recursos tecnológicos incorporados.

“Fabulas Panicas”, por outro lado, revela já o carácter mais espiritual e filosófico da obra do autor. Nesse trabalho de 1967, em que Jodorowsky é desenhador (muito ‘underground’), argumentista e colorista (muito psicadélico), o autor caricatura-se como protagonista e desenvolve grandes conversas e trocas de impressões com um “Mestre” quase-divino.

Em 1975, Jodorowsky conhece Moebius, e os dois começam a trabalhar conjuntamente no projecto da adaptação cinematográfica de “Dune” (Alexandro agarrou o projecto antes de Lynch). Apesar de o filme “Dune” de Jodorowsky não se ter concretizado, a cumplicidade entre Moebius e Jodorowsky é enorme, e os dois autores depressa ampliaram a sua colaboração ao domínio da banda desenhada. Essa histórica colaboração começa com “Les Yeux du Chat”, de 1978. Esta soberba “história negra” contada ao ritmo de uma vinheta por prancha é a apresentação oficiosa de Jodorowsky ao mercado franco-belga. Rapidamente se sucede o novo produto da colaboração Moebius e Jodorowsky: a saga de “O Incal” (seis volumes entre 1980 e 1989, que é a resposta à não concretização do projecto “Dune”. “O Incal” revoluciona a abordagem da ficção científica no mercado franco-belga.

Vivendo no Norte de França, Jodorowsky desenvolve trabalhos de colaboração com diversos autores, não abandonando nem a colaboração com Moebius nem o universo ‘John Difool’, popularizado em “O Incal”.

Homem de teatro, cineasta, actor, encenador, realizador, compositor, escritor, filósofo, humorista, especialista em “tarot”, fundador do movimento “(teatro do) Pânico” (com Juan Fernando Arrabal e Roland Topor), “sonhador profissional”, e, mais recentemente, mestre do twitter, Jodorowsky é também na banda desenhada um criador extraordinário e um fabuloso visionário que edifica universos inteiros na criação de cada história. Nas palavras do próprio Alexandro, não podemos mudar o mundo, porque a mudança do mundo é uma criação colectiva. Mas podemos começar a mudança!

Moebius dispensa grandes apresentações. Mesmo a dualidade Giraud / Moebius é bem conhecida dos leitores de BD Enquanto assina Gir ou Giraud, o autor movimenta-se num quadro clássico, notabilizando-se sobretudo pelo western Blueberry (em colaboração com Jean-Michel Charlier até à morte deste em 1989). Enquanto Moebius, o autor movimenta-se sem quaisquer condicionantes, quer gráficas quer narrativas, num percurso não linear permanente e pouco planeado, marcado por paragens tão diversas como o México, a doutrina de Castañeda, o encontro com Jodorowsky, etc., e que já o levou inclusivamente a admitir que não há um, mas vários Moebius. O percurso de Moebius aos limites do seu conhecimento levaram-no a uma inevitável aproximação com Gir.

Foi depois de muitas viagens interiores, e com a maturidade suficiente para conseguirem rir-se delas sem deixarem de apresentar todas as suas valências, que a dupla de autores voltou a reunir-se numa última viagem de colaboração, o extraordinário A Louca do Sacré-Coeur, em que Jodorowsky se encontra no protagonista Mangel, e Giraud se encontra com Moebius.

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1 Comments

  1. says: Diogo Semedo

    Este livro é imensamente bom. Pensava que conhecia tudo de Moebius e ter esta surpresa na semana que marca o aniversário da sua morte fez-me esquecer um pouco que nunca mais poderemos ler nada deste grande mestre. Gostei muito de me dar conta que muitos dos nossos desenhadores nacionais bebem da fonte de inspiração de Moebius. Consigo encontrar nesta obra traços que decididamente foram influentes para gente como Jorge Coelho, André Lima Araújo, Nuno Plati & so on & so on.

    Obrigado Levoir por nos dar a descobrir esta pequena maravilha que já li 3 vezes desde que o adquiri e que fez a minha mulher ralhar comigo por andar a ler BD com meninas nuas.

    P.S.: De cada vez que oiço o ralhete, respondo: Isto não é pornografia, é filosofia. ^_^

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