Alain Mangel, professor de filosofia na Sorbonne, é seduzido por uma das suas alunas, Elisabeth. Possuída por verdadeiros delírios místicos, ela arrastará o professor para um furacão de acontecimentos inesperados e delirantes que irão pôr à prova a racionalidade de Mangel. Paródia mística, farsa sagrada, caminho iniciático, exorcismo, o percurso do protagonista vai levá-lo a abrir os seus olhos para outra realidade.
Alejandro Jodorowsky é um dos nomes mais importantes do teatro e cinema dos finais do século 20, um escritor e artista ligado ao surrealismo e a muitos vanguardismos. Criador, com Topor e Arrabal, do grupo de performance surreal Mouvement Panique, autor de filmes tão marcantes como El Topo ou Santa Sangre, Jodorowsky viria a enveredar por caminhos mais místicos, como o “psico-xamanismo” que criou, mas sem nunca cair na loucura, como o seu herói Antonin Artaud, a quem foi buscar muita da sua inspiração. Com um currículo deste calibre, pode parecer surpreendente que ele seja também conhecido como um dos maiores autores de banda-desenhada de sempre, uma carreira que iniciou nos anos 1980 depois do seu encontro com Jean Giraud, mais conhecido como Moebius, o outro criador que assina este álbum, A Louca do Sacré-Coeur.
Esse encontro deu-se por causa dos filmes de Jodorowsky. Depois de ter feito El Topo – geralmente descrito como um “western on acid” – Jodo (como é muitas vezes chamado) mudou-se para os EUA, onde realizou Holy Mountain, outro filme complexo e esotérico que lhe granjeou enorme fama na cena underground de Nova Iorque. Jodorowsky foi então convidado para realizar aquela que ele queria que fosse a sua obra-prima, a versão cinematográfica da saga de ficção-científica de Frank Herbert, Dune. E foi durante a pré-produção deste filme que conheceu Moebius, na altura em plena fase da revista Métal Hurlant… e, como se costuma dizer, o resto é história. A produção de Dune falhou completamente – Salvador Dalí tinha aceitado aparecer no filme no papel do Imperador Corrino, e pedia 100,00$ por minuto que aparecesse no ecrã, a música tinha sido encomendada aos Pink Floyd e a Stockhausen, Orson Welles ia fazer de Barão Harkonnen e muitas outras loucuras em que Jodorowsky gastou mais de 2 milhões de dólares, só em pré-produção – mas a amizade de Jodo com Moebius continuou, e resultou na publicação em 1981 do primeiro álbum daquela que seria uma das mais aclamadas e mais vendidas séries de banda-desenhada de sempre, O Incal.
[quote cite=”Jodorowsky”]Um dia, uma jovem que assistia a um dos meus cursos de tarot veio falar comigo depois da aula, ela e mais duas amigas, todas atacadas por algum tipo de loucura colectiva. Pediu-me que eu lhe fizesse um filho! Dizia que eu era Zacarias e queria gerar comigo um novo João Baptista.
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Mais de uma década depois, Jodorowsky e Moebius voltariam a colaborar neste fantástico A Louca do Sacré-Coeur, em que Moebius volta a um registo de desenho mais próximo da linha clara franco-belga, mas em que aparecem sempre que necessário os momentos surreais e futuristas que fizeram a sua fama em O Incal. Depois de anos em que enalteceu a via mística e da loucura sagrada, Jodorowsky assinou este argumento que é crítica da religião dominante, revisitação da Imaculada Concepção em versão comédia louca, e ao mesmo tempo busca que a sua personagem central vai fazer por uma verdade mais profunda. Jodorowsky ri-se simultaneamente da filosofia ocidental e séria, da universidade, do misticismo selvagem, da religião, do New Age e faz uma paródia de Carlos Castañeda, num livro que é um marco na carreira destes grandes autores, e ao mesmo tempo uma das suas obras mais singulares.
Drama, religião, sexo, você goza com tudo neste livro, no fundo?
[quote cite=”Jodorowsky”]Claro, mas a história acaba numa nota muito positiva. Vemos como é que um homem, saído da tradição do intelectualismo europeu e roubado das suas emoções e dos seus instintos, vai encontrar circunstâncias que o atiram para um mundo mágico – que também é o mundo da loucura – e como esse homem, que não tem meios para se defender nessa dimensão, e que se torna rapidamente numa vítima, vai finalmente descobrir quem é, e com essa descoberta vai recuperar os valores mais profundos que tinha perdido. E, no fim, o milagre acontece. E é uma conclusão lógica: a trilogia é toda ela uma apologia do milagre. Quando o amor existe, o milagre acontece…
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Originalmente publicada em três volumes – La Folle du Sacré-Coeur (1992), Le Piège de l’Irrationnel (1993), Le Fou de la Sorbonne (1998) – a trilogia viria a ser mais tarde baptizada com o nome de Le Coeur Couronné, O Coração Coroado.
A versão editada pela Levoir/PÚBLICO segue a recente edição integral francesa no formato (mais próximo do americano) e no nome, mantendo o título do primeiro álbum, pelo qual a história é mais conhecida.
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Quanto a Jodorowsky, recomendamos a todos os seus fãs que vejam o fabuloso documentário que Frank Pavich lhe dedicou, Jodorowsky’s Dune: The Greatest Science-Fiction never made, cujos trailers são fáceis de encontrar no YouTube, bem como uma genial entrevista chamada Alejandro Jodorowsky on “The Dance of Reality” and the healing power of art.