Algo de muito pessoal impressionou-me nesta notável banda desenhada de fantasia urbana para jovens, saída da imaginação de Joe Kelly com um traço muito marcante de JM Ken Niimura. É que tenho uma aluna demasiado parecida com a heroína do livro. Só difere nos monstros que tem para enfrentar e na sua falta de propensão para jogos de role-play. De resto, é tal e qual. Altamente inteligente. Não perde muito tempo a prestar atenção aos adultos, porque sabe que as suas mentes não correm à mesma velocidade de processamento da sua. Senhora do seu nariz, sempre mergulhada nos seus pensamentos. O que a estimula não são os desafios que a escola, os colegas e os professores lhe querem impor. Os outros vêem-na como inadaptada. Professores e psicólogos alternam entre o comentário exasperado e a preocupção em chegar a alguém que não quer mão estendida de ninguém. E os colegas lá a vão aturando. Esta minha aluna também tem os seus gigantes para matar. Que, tal como os da heroína deste livro, são muito duros de roer.
Perdoem-me a ligação directa a um mundo longe do da BD. Mas os bons livros tocam-nos, e interligam-se com outras dimensões para lá da ficção. Ler a história desta rapariga jovem e inteligente capaz de derrotar os piores gigantes ficou, desde a primeira vinheta em que aparece, irremediavelmente ligada à imagem que tenho de alguém com que diariamente me cruzo. Nota-se que Kelly conhece bem sobre o que está a escrever, e a sua Barbara é um retrato fiel de uma criança determinada, inteligente, mas problemática.
Eu Mato Gigantes vive de uma deliciosa ambiguidade que é comum ao melhor da ficção fantástica. Será o irreal que nos é apresentado dentro do mundo ficcional realmente um irreal, ou será uma projecção psicológica de medos e ansiedades dos personagens? O argumento vai mantendo a pergunta em aberto, tocando até ao fim nestes dois campos. Cabe ao leitor fazer a sua escolha. Serão os gigantes que a jovem combate projecções dos seus medos e do iminente horror da morte prematura da mãe, terrores que Barbara se recusa a enfrentar? Ou serão realmente as crituras míticas, capazes de com um sopro devorar humanos incautos e arrasar cidades inteiras? Seres gargantuescos que somente a esperteza, resiliência e o martelo mágico de Barabara podem travar? Seria fácil seguir um caminho. Kelly dá-nos os dois, em paralelo, sem que em momento algum um se sobreponha ao outro.
Barbara é uma rapariga inadaptada, altamente inteligente e que gosta de passar as aulas a ler manuais de jogos de role-play. Não se esforça muito por manter amizades, enfrenta sem medos os rufiões da escola mesmo que estes sejam maiores e mais fortes que ela. É presença assídua no gabinete do director para castigos motivados pelo tipo de indisciplina que tem mais a ver com equívocos do que com comportamento disruptivo. Cai no radar da psicóloga escolar, cujas boas intenções e técnicas de intervenção vão ter um desafio à altura para abrir brechas no muro erguido à sua volta jovem que, apesar de todos os indícios em contrário, acaba por fazer uma amiga.
Não tem uma vida idílica. Vive com uma irmã, sobrecarregada entre empregos, cuidar da jovem e o problema da mãe, que apenas no final nos é revelado e que funciona muito bem como o elemento de ligação entre o real e o imaginário. O escape de Barbara está na sua mestria como dungeon master, implacável e imparável. Nas cartas dá cartas, e o seu estilo corajoso de combate arrepia os companheiros de jogo, apavorados e invejosos da capacidade de uma pirralha que aprenderam a respeitar.
Até porque a pirralha tem um segredo. Ela sabe. Ela conhece aquilo que todos ignoram. Sabe que os gigantes existem, que não são o resultado da imaginação hiperactiva ou um mito esquecido pelos tempos. Sabe, e mantém-se vigilante, com os sentidos apurados por um treino constantes. Presta atenção aos mínimos sinais, porque sabe que a qualquer momento uma qualquer criatura gargantuesca pode arrasar tudo à sua volta. Sabe que mais ninguém acredita, mas isso não a impede de se treinar e preparar para o confronto que sabe que um dia há de vir. Não os teme. Sabe como os derrotar e apenas tem medo dos titãs, cujo poder descomensurado talvez seja superior à enorme força que o corpinho pequeno da nossa heroína encerra. O confronto final chegará, a culminar uma história de sobrevivência no espaço escolar em que os aparentes piores monstros que terá de enfrentar são a bonomia da psicóloga, os percursos traiçoeiros das relações de amizade e as atenções indesejadas da rufia de serviço. Mas um titã chegará às costas que banham a cidade e provocará a desvastação, sendo quase travado pela coragem indomável da jovem.
Talvez tenha sido assim. Ou talvez tenha sido apenas a manifestação do pior medo da rapariga, a sua incapacidade em lidar com a morte iminente da mãe. É esse o grande monstro que terá de vencer, e fa-lo-á de forma quase catastrófica. Mas desenganem-se se pensam que o livro se rende à estrutura clássica do “foi tudo um sonho” ou “afinal os monstros só existem na imaginação”. Nisso o livro mantém, a ambiguidade até ao fim com muita coerência, o que lhe assegura lugar na categoria de boas histórias do fantástico.
É incontornável reparar na estética deste livro, que se afasta muito do esperado no género. O traço expressivo do hispano-nipónico Niimura equilibra-se entre o formalismo do manga e a estética expressionista. Foge muito aos limites gráficos da banda desenhada mais comercial. Recorda-nos que se neste género a maior importância é conferida ao visual, este muitas vezes caracteriza-se por um certo formalismo gráfico cujas fronteiras alargadas se centram numa estética puramente realista. Disto Nimura afasta-se com os seus traços soltos e contornos difusos, num registo quase pictórico. Aliás, num momento da história em que o titã se agiganta sobre a frágil rapariga percebe-se uma força visual que vem de Goya. É curioso. Sem querer parecer pretencioso, reparei agora que o estilo de Niimura me faz recordar Velazquez, este também um artista ao mesmo tempo realista mas percursos dos expressionismos modernistas.
Eu Mato Gigantes é uma história de fantástico juvenil mais profunda do que aparenta ser. Reflecte sobre desafios, dilemas do crescimento e a força que temos de encontrar para os superar. Não esquece que sempre que o sonharmos, haverá magia no mundo. Visualmente inquientante e atraente, recorda-nos também o valor da estética expressiva sobre formalismos estéreis.
[box title=”Ficha técnica” style=”noise” box_color=”#f2ecdd” title_color=”#353535″]Eu Mato Gigantes (I Kill Giants)
Autor: Joe Kelly, Jm Ken Niimura
Editora: Kingpin Books
Páginas: 192, capa mole
PVP: 14,99 €[/box]