Crónicas do Escondidinho: Acção Popular

Em 1999, armei-me em editor de banda desenhada e, com a cumplicidade do José Abrantes, lancei o nº 0 da revista Boa Zona.

Apesar do design do Miguel Rocha, e de histórias de autores como o José Carlos Fernandes, não passou daquele nº 0. Para além de BD, havia espaço para umas histórias curtas escritas por mim e ilustradas (em tom muito negro) pelo José Abrantes, passadas num bairro onde, por uma questão de identidade bairrista, todos eram ladrões. Eram as Crónicas do Escondidinho.

Aqui fica a crónica que estava prevista para o nº 2 da Boa Zona, que não chegou à publicação.

Acção Popular

O café do Godofredo suscitara desde sempre uma grande instabilidade no Escondidinho. O Godofredo era uma das figuras mais antigas da Calçada. Ali tinha nascido e crescido. Mas a decisão de abrir um café na Calçada sempre tinha sido considerado o seu maior erro.

Não ficava bem, para as pessoas do bairro, alguém que tinha um sítio fixo para trabalhar. Era um mau exemplo para a juventude, não estimulava a fuga, e chegava mesmo a criar aparências de negócio legítimo.

Chegou-se a fazer um abaixo-assinado para o fecho do estabelecimento, mas o Paulo Jorge levou-o antes de chegar às mãos do Presidente da Junta, assim iniciando o seu período de “falsificador de assinaturas”, assinando letras e cheques.

O café do Godofredo era assim, e sobretudo, um motivo de inveja por parte daqueles que tinham de se mexer para trabalhar.

No primeiro fim de semana de abertura ao público, o café foi assaltado trinta e nove vezes, o que contribuiu definitivamente para a sua implantação no meio do escondidinho.

Depressa se tornou tão procurado como as zonas mais escondidas da Calçada. O Godofredo sabia bem dirigir o negócio, e compunha a casa com o que tinha conhecimento que ninguém queria levar. Por isso tinha a Rosinha a servir à mesa.

Tudo corria dentro duma certa normalidade, apesar de frequentes comentários, até ao dia em que o Professor Kong fez desaparecer a casa do Ludovico, que se situava em frente ao café do Godofredo, e apareceu com uma licença camarária que o autorizava a construir e explorar um Bar-Restaurante na Calçada.

Transtornados, os habitantes reagiram. O auto-proclamado “Comité para a Defesa dos Valores tradicionais do Escondidinho” foi criado e, sob a chefia do promissor Paulo Jorge que a ele presidia, apresentou-se em força entre os dois cafés.

Levantou-se a questão prévia de determinar se o Bar-Restaurante do Professor Kong, em acelerada construção, era ou não um espaço de comércio. A dúvida levantara-se pois o Ludovico, habituado às constantes alterações no mobiliário da sua casa, ali continuava a dormir, tomar banho, e fazer a sua vida normal.

Ultrapassada esta questão, o Comité tomou as primeiras medidas drásticas. Por forma a diminuir o sucesso do Café do Godofredo, ninguém aí entrava ou saía sem ser devidamente revistado por um membro do Comité. Cedo se alterou esta medida, disponibilizando dois elementos para a revista à porta do Godofredo, pois as constantes saídas e entradas da Rosinha obrigaram à afectação exclusiva de um elemento.

Quanto ao Café do Professor Kong, o Comité não teve meias medidas e, mesmo apesar dos protestos do Ludovico, ocupou o sítio.

Lamentavelmente, a acção teve pouco impacto, pois o Professor Kong, demasiado ocupado a assaltar as casas dos membros do Comité, não apareceu no local. A comunicação social foi efectivamente chamada ao local, mas o Paulo Jorge não resistiu à tentação de acrescentar umas câmaras de filmar e uns microfones à sua colecção de objectos vários, e prejudicou a cobertura mediática.

Desmoralizados, os membros do Comité regressaram às suas casas, a Rosinha deixou de entrar e sair a toda a hora, e o Professor Kong deu o seu dia por terminado.

O Café do Professor Kong acabou por nunca abrir, porque o Ludovico começou a fazer obras em casa, aproveitando os materiais de construção que o Professor disponibilizara.

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