aElipse aBalanço

Ao fim de seis meses de aElipse Pedro Mota leva a rubrica; o aCalopsia e a blogosfera aBalanço, em mais um crónica que não é sobre escondidinhos mas um ponto de partida.

A rubrica aElipse entrou no sexto mês de colaboração regular. Em cinco meses de experimentação, começo por agradecer o contributo de gente interessada e participante como o Pedro Vieira de Moura, o David Soares (cujo longo e interessante comentário a uma destas crónicas dava para vários artigos de resposta), o Geraldes Lino ou o José Abrantes. Só por isso, o balanço é positivo.Cabe-me hoje, para além do balanço, dar conta do que pensei para este espaço, e, já que estamos nisto, para o que poderia ser o aCalopsia.

Esta rubrica aElipse apareceu um bocadinho por acaso e, muito graças à flexibilidade do editor Bruno Campos (a quem também agradeço a confiança), tem poucas regras. Assim, tem a capacidade de ser um bocadinho o que os leitores quiserem.

Foi com alguma surpresa que registei, por exemplo, o bom acolhimento da Crónica do Escondidinho. Tenho mais duas, escritas em 1999, que tentarei encontrar para uma dessas alturas em que não há grande novidade a transmitir, ou em que até há novidade mas não houve tempo para preparar a crónica.

O projeto da cidade da Amadora em torno da banda desenhada continuará a ter lugar de destaque no aElipse, estando prevista uma “História do AmadoraBD” e uma análise muito aprofundada da edição 2014 (a 25ª) do festival. Afinal, a Amadora é a cidade onde vivo.

Tenho algumas outras ideias para este espaço, mas duvido que tenha disponibilidade de tempo para elas. São ideias mais centradas na minha visão do que é a banda desenhada, essa forma de linguagem que considero muito superior (ainda que menos popular) ao cinema, por exemplo, e no que é a leitura da banda desenhada.

No que não depende de mim, e já disse isto ao Bruno Campos, gostava que o aCalopsia apresentasse histórias de BD de autores portugueses, e que acolhesse outro tipo de colaborações. Acredito mesmo que se isso acontecer, o aCalopsia concretiza a capacidade que tem para se tornar na grande referência dos sítios da Internet sobre banda desenhada em Portugal. Convenhamos que o panorama existente neste âmbito não é muito animador. Apesar das honrosas excepções, os blogues que existem sobre BD são realidades muito dispersas e episódicas. Alguns têm manifestamente pouco rigor e qualidade na informação, embora reivindiquem sempre o reconhecimento dos leitores porque, teoricamente, fazem mais do que a sua obrigação. Para mim, este argumento não vale.

Pessoalmente, gostava muito que alguns bons blogues que ainda existem fossem convertidos em rubricas de um site como o aCalopsia (ou algum melhor que apareça, claro). Gostava que o Pedro Moura fizesse um LerBD para o grande público (com artigos mais curtos e centrados em obras mais acessíveis). Gostava que, assim como eu venho reflectindo sobre a aposta da Amadora na BD, alguém escrevesse regularmente sobre o que se vai fazendo em Beja. Gostava que aCalopsia tivesse colaborações pontuais (como o bom artigo de Paulo Costa sobre Michel Vaillant) de gente como Diniz Conefrey ou Teresa Câmara Pestana, que sabem analisar uma BD pela sua essência. Mas isto sou eu a provocar o editor Bruno Campos.

Sobretudo e como já disse, interessa-me o que os leitores gostam. Sendo certo que não vou, por hábito, responder aos comentários (não excluindo a hipótese de um comentário de alguém inspirar uma crónica em jeito de resposta), espero uma participação dos leitores que vá além de fazer “like” na página do Facebook.

Nota do editor: Existem mais algumas colaborações pontuais de outros colaboradores previstas, está mais complicado é assegurar mais umas regulares como as crónicas semanais de aElipse. O aCalopsia está aberto a colaborações, quer sejam dos mencionados por Pedro Mota, quer sejam de outras pessoas. Em  relação aos webcomics, para além do Casulo – que publica BDs curtas escritas por André Oliveira e ilustradas por vários desenhistas –  e que é mensal, não existem planos para outros webcomics regulares.

Os leitores fazerem like na página do Facebook, ou partilharem os artigos nas diversas redes sociais, não era um mau começo. Obviamente que os comentários construtivos são sempre bem vindos, pelo que estejam à vontade de fazer o vosso balanço.

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13 Comments

  1. says: David Soares

    Olá, Pedro.

    Fico satisfeito pela tua apreciação. A Elipse é uma das crónicas que costumo ler na Internet com muito interesse. Cá estarei para comentar, sempre que achar que o meu contributo possa ser um princípio positivo de debate.

    Um abraço,
    David Soares

  2. says: Pedro Moura

    Olá, Pedro,
    Também te deixo aqui um cumprimento e espero que consigas arranjar cada vez mais tempo e os instrumentos que te sirvam para dares a melhor continuidade aos teus textos aqui (ou noutro local). Sobretudo aqueles que têm contribuído para uma história e memória que é extremamente necessária entre nós, país da memória curta (sempre atrás do que chamo “a sapo do dia”, e eclipsando – ha! – nomes incontornáveis simplesmente por não terem um livro há três anos). Eu também penso que o aCalopsia pode – virá a? – tornar-se um espaço de referência geral, tal como começa a esboçar-se o do Nuno Pereira de Sousa. Cada um a seu modo, é verdade, mas o Sousa e o Bruno Campos agregarão contributos diversos que poderão criar espaços alargados.
    Na parte que me toca, agradeço-te a atenção, mas penso que em dez anos de escrita no blog (para não falar de outras esferas mais académicas) já ninguém está à espera que haja esperança de escrever para o grande público. Em primeiro lugar porque há uma ilusão sobre ser “grande”, quando na verdade há tantos leitores do Michel Vaillant como da Alison Bechdel (e até haverá leitores dos dois, decerto que uma minoria), simplesmente os da segunda leva são mais silenciosos na blogosfera, onde impera uma certa continuidade de hábitos, limitações de visão, gostos medíocres e alegrias chãs. Eu gostava de ver precisamente o contrário: mais pessoas capazes de ler os livros que vão saindo, mesmo os comerciais, mesmo os mauzinhos, de uma forma burilada, crítica, verdadeiramente pessoal. Não peço que façam citações ou escrevam a metro para pôr bois a dormir (admito), mas que pensem por si mesmos, e não repitam as frases de circunstância de sempre (“grande mestre do desenho”, “um estilo inconfundível”, “uma história bem contada”, “uma boa aposta da x”, “finalmente em Portugal”, etc.), já para não falar da famigerada técnica do copy-paste dos press releases, que se tem tornado uma praga de capta-mentecaptos.
    Há pouco comecei a colaborar com espaços internacionais, onde se encontram vozes bem distintas e visões particulares, que nem sempre concordam ou convergem, mas se coordenam nos instrumentos mais sérios. Porque é que temos de insistir em abordagens pedagógicas? Comam bife!, é o que digo.
    Por exemplo, levantas a lebre de uma ideia interessante do que dizes entre banda desenhada e cinema, algo com que não posso nem concordar nem discordar, pois não nos dás elementos para a compreender. É isso o que é preciso fazer: começar essas questões, de modo sério e informado, e não apenas saltar de contente porque saiu o último “Capitão América” ou vem aí mais uma versão dos “X-Men” (e, sim, eu também vou ver essas m&*#@$, porque também sou no fundo um “fanboy” disfarçado). ‘Bora lá, homem!
    De facto, para o público em geral, já há muita coisa. Para um público com um interesse vivo e diverso, vai se formando o aCalopsia e outros lugares. Quanto a mim, estou bem obrigado.
    Abraço!
    Pedro M. O Moura.

    1. says: Bruno Campos

      Os conceitos de comercial e alternativo são construções abstractas que no fim não dizem nada, ainda menos num mercado como o Português.

      A ausência de discordantes em projectos convergente é maleita nacional, em muito derivada da falta de respeito pelos gostos alheios – eu não estou a falar sequer de opiniões, mas gostos. Existem aqueles que preferem ficar quietos a colaborar num projecto por “não se reverem na linha editorial”…. gostavam de ver divulgadas outras coisas, mas preferem não o fazer, a menos é claro que seja algo de acordo com o seu ponto de vista pessoal. Não estou sequer a falar de pessoas que tem espaços pessoais onde vão desenvolvendo o seu projecto de divulgação, mas dos treinadores de bancada que (embora tenham capacidade) preferem ficar a ver de fora.

      Existe também aqueles que não só são selectivos com os locais onde colaboram, mas também com os locais para onde enviam informações. Existem que se sinta grande ao ignorar meios que lhes permitiam divulgarem os trabalhos, não estou a falar das “grandes editoras” mas das dos 30 a 500 exemplares…. É a mentalidade provinciana do português que se julga cosmopolita.

      O comercial e o independente são rótulos para a malta se dividir e cortar na casaca do bedófilia alheia que não lhes agrada. No fim do dia o que é importante é menorizar o que os outros dizem e fazem.

      (desculpem lá o desabafo;)

  3. says: Pedro Moura

    Olá, Bruno. Peço desculpa, mas há alguns aspectos que não compreendi: o que é “a ausência de discordantes em projectos convergente”? Penso que haverá aí uma ideia pertinente, mas não a compreendo.
    Se concordo em termos gerais que de um ponto de vista económico (ou Marxista, se preferires) não faz sentido falar de “alternativo” e “comercial”, por outro não é totalmente ridículo, uma vez que há projectos clarissimamente preocupados em construíram material que se encaixa que nem uma luva (e bem, não pretendendo derimir de forma alguma o seu valor intrínseco) em categorias e expectativas genéricas (no sentido preciso de “género literário”), e outras que procuram inquirir formas de investigação mais complexas, menos “naturais”, da narrativa, abordagem visual, estrutural, etc. Há casos de bons trabalhos em ambos os campos, tal como maus: não é por se ser “comercial” que se é mau, nem por se ser “alternativo” que se conquista automaticamente algum grau de qualidade inatacável e inanalisável…
    Tirando isso, concordo que há uma certa inércia na forma como se discutem as coisas, de facto. Espero que este espaço possa vir a ser precisamente uma excepção e leve à esgrima de ideias.
    Abraços,
    Pedro Moura

    1. says: Bruno Campos

      Existirem vozes discordantes em projectos convergentes é pessoas com opiniões; interesses; gostos e abordagens diferentes que colaboram num mesmo projecto por existir um objectivo comum: divulgação, por exemplo. Parece que em Portugal as pessoas só podem colaborar e conviver se tiverem os mesmos gostos; as mesmas abordagens; os mesmos amigos e pertencerem ao mesmo grupo. A riqueza de um diálogo é feita da divergência de opiniões, caso contrário não existe discussão, mas sim uma câmara de eco onde todos dizem o mesmo.

      A concepção de obras seguindo “fórmulas de sucesso” não é um exclusivo da BD “comercial” existe quem o faça também na BD alternativa e o resultado é sempre o mesmo: um produto inócuo e vazio de qualquer substância.

      A utilização de termos como “comercial” ou “alternativo” é um bocado ridícula (no mínimo), em Portugal, porque independentemente de os autores estarem a realizar histórias de super-herois, zombies ou autobiográficas o que os motiva é o mesmo: a necessidade de exprimirem através de uma arte de que gostam; o desenvolverem um trabalho que lhes agrada. O que motiva os autores não é a promessa de uma recompensa monetária, mas o facto de preferirem uma determinado género em detrimento de outro: Acção, Humor, Drama, Ficção-Científica, Auto-Biografia. Independentemente dos géneros que os autores preferem, as expectativas de retorno financeiro que os autores têm é exactamente o mesmo: pouco ou nenhum.

      “Alternativo” e “comercial” não são géneros literários, mas etiquetas que invocam ideais vagas sobre o que poderá ser o conteúdo da obra. Uma das obras de BD mais aclamadas pelo seu valor literário, Sandman, é o produto (e executada de acordo) com a linha de montagem industrial que caracteriza a produção a industria de super-heróis norte-americana, e foi obviamente encomendada pela editora com objectivos comerciais. Ou seja é isto que o Pedro diz: “não é por se ser “comercial” que se é mau, nem por se ser “alternativo” que se conquista automaticamente algum grau de qualidade inatacável e inanalisável…!

      As etiquetas de “comercial” e “alternativo” tornaram-se em sinónimos de bom e mau, dependendo de quem os utiliza: para os alternativos o comercial é mau, para os comerciais o alternativo é mau… É uma discussão sobre sexo dos anjos.

      O ponto de vista Marxista não me interessa muito, preocupa-me mais o ponto de vista pragmático: quando vou às compras tenho de as pagar com dinheiro, e como eu todas as outras pessoas – onde se incluem obviamente os autores. E aqui o comercial é relevante e deve ser discutido, não a nível da forma de produção ou da instauração de uma linha de montagem, mas da comercialização das obras, de as tornar rentáveis para os autores. Mas como isso é falar do vil metal, do “capitalismo selvagem”, aquele que é o principal problema dos autores nacionais – falta de remuneração, que não lhes permite desenvolver a sua arte de modo regular – é deixado de lado, porque o capitalismo; o lucro; o comercial é mau e mal visto nos meios artísticos e alternativos. Os autores que vivam do ar!

      Quem me conhece, quem lê o que escrevo, já deve ter reparar que eu prezo muito a liberdade de expressão e pensamento, mas em qualquer caso deixem-me voltar a frisar: não estou a falar de impor restrições criativas ou de imposição de formulas, mas da comercialização das obras.

  4. says: David Soares

    Olá a todos.

    Bruno, tens de rever o mecanismo de publicação de comentários aqui no blogue. Escrevi um comentário longo agora e perdi-o quando o tentei publicar. Agora não tenho nem tempo nem vontade de reproduzir novamente as ideias que me demoraram cerca de meia-hora a dactilografar. Pode ser que o faça em outra ocasião e acho que eram um bom contributo para esta discussão, mas agora estou passado, porque o texto desapareceu.

    Até mais logo.
    Abraços,
    David Soares

    1. says: Bruno Campos

      Acredito que sim David, e não sei o que aconteceu… mas just in case quando fizeres um texto para o longo – e que tenho a certeza seria bem interessante para esta conversa – copia para o notepad ou word, de modo a que se existir algum problema, que pode ser do sistema de comentários, ou perca de ligação, o texto não se perde.

      Lamento o sucedido, e espero que voltes a escrever as ideias, que tenho curiosidade me conhecer.

      1. says: David Soares

        Olá.

        Prometo regressar mais tarde para expor as ideias perdidas. Na altura em que a noite retinta se inclina para a chispa margarinal da manhã.

        Abraços,
        David Soares

  5. says: David Soares

    Olá a todos.
    O que tinha para dizer há pouco é o seguinte.

    1 – Tem crescido a minha desconfiança sobre alguma gíria associada ao mercado da banda desenhada – portuguesa, em particular –, no que concerne a palavras como “independente”, “alternativo”, etc. Neste contexto, qual é o significado que se assaca de “independente”?
    Que a banda desenhada assim categorizada está livre das grilhetas de uma editora de maiores dimensões, integrante de um qualquer gigante económico?
    Ou, ainda, que ela é criada sem quaisquer apoios financeiros de terceiros – institucionais, por exemplo – que possam, de algum modo, comprometer a idoneidade artística do autor e seu trabalho?
    Sobretudo, suspeito da palavra “independente” quando é aplicada enquanto sinónimo de “pequeno”, no sentido em que é empregue para caracterizar certos tipos de bandas desenhadas editadas por chancelas de pequenas dimensões, porque ser-se pequeno, editorialmente falando, não é análogo de independente. Ser-se pequeno somente significa ser-se pequeno, ponto. Existem editoras pequenas que são tudo menos independentes, na acepção que, aqui, nesta discussão, a palavra angaria. Vale a pena observar esta deslocação de expectativas – expectativas, porque, no fundo, os leitores e os críticos alimentam um determinado grau de expectativas desiguais, consoante a forma como as bandas desenhadas são catalogadas – à luz daquela que poderá ser a raiz do problema: a importação de vocabulário publicitário, imaginado para efeito de marketing, proveniente dos meios de produção cinematográfica norte-americana.
    Nessa amostra, a designação “filme independente” denota (ou denotava) um filme, de baixo ou de alto orçamento, tanto fazia, produzido e distribuído extrinsecamente ao sistema de produção e distribuição dos grandes estúdios. Daí chamar-se “independente”: porque não dependia do sistema para existir e angariar espectadores.
    No entanto, caso o “filme independente” provasse ser um inesperado sucesso de bilheteira – ou, em menor expressão, de crítica – os grandes estúdios tratavam logo de comprá-lo para lucrarem com os direitos de distribuição (entre outros). Neste enunciado, “independente” não tem o significado de “pequeno”, nem de “alternativo”, nem nenhum outro a não ser o de “produzido e distribuído extrinsecamente ao sistema dos grandes estúdios”. Um sistema que, na verdade, está, há várias décadas, totalmente viciado, com todos os grandes estúdios a terem várias chancelas, supostamente “independentes”, pelas quais produzem e distribuem filmes de várias grandezas de qualidade. Sendo assim, a minha pergunta é esta: o que é que isto tem a ver com a BD? Sobretudo, o que é que isto tem a ver com a BD portuguesa?
    Na realidade, até um grande estúdio e uma grande editora não deixam de ser, por mérito próprio, independentes: o capital é deles, eles produzem e distribuem o que querem, sem dar contas a ninguém (excepto à “mão invisível” adamsmithesca), por isso até aqui, se quisermos ser rigorosos, existe independência para se publicar o que bem se quer. Por todos os motivos elencados considero que a questão da banda desenhada “independente” é, no mínimo, um alborque semântico, e, no máximo, um disparate.

    2 – Quanto à questão de que os autores precisam de pôr pão na mesa… Muito certo: os autores, sejam eles de que área forem, precisam de pagar contas. Aos amigos que são visita de minha casa costumo dizer-lhes que esta questão é o lado polar da existência: é distante, é frio e ninguém tem, verdadeiramente, vontade de visitá-lo. Porém, por que é que as contas têm, forçosamente, de ser pagas com rendimentos auferidos da arte? Os artistas serão menos artistas se não estiverem em condições de viver, em exclusivo, da criação artística? Essa obsessão só serve para criar comportamentos desviantes à própria arte. Quantos excelentes criadores foram funcionários públicos, empregados de escritório, professores, fura-vidas sem empregos fixos? São deles os trabalhos de que toda a gente se lembra, por oposição às regularidades soporíferas de tarefeiros que, dando ao público aquilo que o público queria, tiveram a arte de viver da arte.
    Aliás, de um ponto de vista de capacidade artística nem todos os criadores têm aquilo que é preciso para criarem boas obras a um ritmo regular e altamente calendarizado, o que acaba por prejudicá-los e obrigá-los a criar obras menores, a deprimirem-se e, às vezes, a deixarem de criar, de todo, porque, entretanto, o fogo da imaginação, demasiado puxado ao limite – ou prostituído –, extinguiu-se. Existem centenas, até milhares, de escrevinhadores que chamam com orgulho “produtos” aos seus livros (já ouvi alguns), como se estivessem a falar de mais um chouriço que encheram – e, de facto, esses livros são mesmo como chouriços, farinheiras, morcelas e alheiras: criados a martelo, somente para cumprir-se calendário e permitir aos seus criadores viverem da “arte”.
    Isto é arte?
    Há quem se sinta satisfeito com esta situação, assim como há quem se sinta útil a fazer coisas piores: ser tarefeiro não é crime. Contudo, talvez este não seja o caminho mais brilhante, digamos assim, para quem deseja, de facto, ser artista. Fazer arte significa ter algo inadiável e insubstituível para transmitir: se não se tem nada para transmitir num determinado momento, mas é preciso inventar qualquer coisa à pressa só para cumprir calendário e ser-se capaz de pagar a luz e a água com rendimentos daí auferidos, então dificilmente se está a falar de arte. Estaremos, em maior espessura, se se justificar, a falar daquilo a que chamo de “objecto artístico”, mas não estaremos a falar de “objecto de arte”.
    Se esses “produtos” são bons ou maus é outro assunto: não é preciso ser arte para ter qualidade. Há muita arte má, assim como existem muitos produtos bons (na maioria das vezes, pelo lado técnico, apenas). Eu divirto-me à brava com certas coisas que são más, mas eu gosto delas: simplesmente não proclamo que são boas ou que são arte. São aquilo que são. Não tenho é tolerância para ouvir as costumeiras litanias de “sim, eu criei esta porcaria para pagar a prestação do carro, que estava a vencer, mas, atenção, isto é arte!…” ou “sim, eu fiz isto, que é uma porcaria, mas é só porque vende muito e me permite, depois, nas horas livres, fazer o que eu verdadeiramente gosto” (sendo que, depois, nas horas livres, ouve-se a costumeira litania de “ai, estou tão cansadinho de criar “arte” no trabalho que não tenho energia para criar “arte” em casa”). Eu já disse e volto a dizer: a questão da dita “profissionalização” dos criadores é a maior mancomunação que já apareceu. Fragiliza os criadores, debilita a arte.

    Abraços,
    David Soares

    1. says: Bruno Campos

      A profissionalização dos autores, a remuneração dos autores não é uma questão de validação artística, mas de qualidade de vida dos autores.

      As obras terem qualidade ou valor artístico não depende de o autor ser remunerado ou não, contudo a remuneração de um autor permite-lhe dedicar mais tempo à sua arte. Em vez de terem de retirar tempo que poderia passar com a família ou os amigos a dedicar-se em part-time ou só como hobby a uma arte de que gosta.

      Teoricamente, o trabalho de um autor “profissional” deveria ter uma qualidade superior por esse autor se poder dedicar a essa arte 8 horas por dia, e não só algumas horas por dia, após ter passado 8 horas a trabalhar em outra área seja ela criativa ou não. Teoricamente, que da teoria à prática vai uma grande distância, e é por esse motivo que existem bons profissionais e maus profissionais.

      Existem autores que nunca serão mais do que bons artífices, mas qualquer arte também precisa deles.

      A questão da remuneração é questão de subsistências dos autores, e de qualidade de vida dos autores, sejam eles artífices, tarefeiros ou artistas.

      Os problemas que existem a nível das imposições comerciais – prazos e formatos – e como eles podem toldar a criatividade, é uma outra questão, e que deve ser debatida quando existem essas limitações. Eu pessoalmente prefiro resolver um problema de cada vez, e primeiro creio estar a questão da remuneração, não só porque permite trabalhar numa obra, mas permite uma produção regular.

      Existem grandes obras da BD que foram produzidas dentro de sistemas comerciais e com imposições temporais em termos de prazos, não é isso que vai impedir os bons autores de fazerem boas obras. Para além disso um sistema que permita um produção regular, vai sempre permitir um aperfeiçoamento continuo dos autores, na teoria. Seja na BD ou em outra arte e ofício, o aperfeiçoamento dos autores, a sua evolução está sempre dependente de uma produção regular e não esporádica, quando existe tempo, disponibilidade e motivação.

      1. says: David Soares

        Olá.

        Não estamos a chegar à concordância – nem temos de fazê-lo, note-se. Porém, penso que, aqui, analisamos esta problemática por pontos de vista muito parecidos. Vou tentar clarificar o meu.

        O modo como eu entendo a palavra “profissional” tange-se com o seu significado original, que é o de “alguém que se dedica rigorosamente a uma actividade”, leia-se “alguém que encara com seriedade aquilo que faz”. Se esse alguém é remunerado ou não por aquilo que faz, isso pouco importa para este significado, que não foi inventado por mim, acrescento, e pode ser, facilmente, consultado em qualquer bom dicionário etimológico. Posto isto, avanço para o facto desta palavra ter, entretanto, adquirido outro significado que vai numa direcção oposta: a de que apenas quem é remunerado por uma actividade é profissional dessa actividade. Eu concordo, evidententemente, que os indivíduos têm de ser remunerados por aquilo que fazem, nem nunca escrevi o contrário. Acho é que a remuneração não deve ser considerada como o trajecto exclusivo da profissionalização, sobretudo em contextos artísticos e, ainda mais, em contextos como o nosso, no qual não existe a possibilidade de um autor de BD viver de fazer BD.

        Nesse aspecto, gostava de desenvolver aquilo que escreves sobre os autores de BD se dedicarem de um modo “profissional” oito horas por dia à BD e, depois, terem tempo para estar com os amigos e com a família. Isto não é criar arte: isto é ter um emprego fixo – um emprego fixo que, neste caso, por acaso, até é um emprego fixo no qual se passa, digamos, oito horas por dia, a desenhar, a fazer banda desenhada. É trabalho, ponto. Dificilmente será arte.
        A arte não se faz assim, porque a arte não pode ser compartimentada em horários, nem em prazos, nem em nada: a arte cria os seus própiros ritmos, as suas próprias estações. Eu gosto muito de algumas histórias de super-heróis, mas serão arte? São produtos, se for mesmo preciso encontrar um nome para caracterizá-los. Lá aparece uma história ou outra que cai em estado de graça e por ter, de facto, algo relevante para contar alcança um patamar superior e pode ser considerada arte, mas serão arte TODAS as histórias do Homem-Aranha e do Capitão América?
        Serão arte TODAS as historias do Tintim e do Astérix?
        Eu estou a falar de obras que eu gosto de ler e que me preenchem emocionalmente – e intelectualmente, vá lá – mas, ainda assim, não ponho a objectividade na gaveta: serão arte?
        Será que TODOS os romances da Agatha Christie ou TODAS as histórias do Conan Doyle serão arte?
        Será que TODOS os filmes do Hitchcock são arte ou até TODOS os do Godard?
        Estou, confesso, a escrever sem rede, mas espero que me sigam de perto e compreendam que tento fazer perguntas importantes. Quando se coloca um autor numa situação em que ele tem, necessariamente, de criar UMA COISA QUALQUER só para ser capaz de pagar as contas mensais está-se, de facto, à espera que ele crie o quê? Não é?… Que crie o quê? O que é que ele vai criar? É aqui que eu quero chegar: a arte não pode ser forçada, não se pode sentar um autor numa cadeira e ordenar-lhe “agora vais fazer arte”. Ele poderá fazer um excelente trabalho, se for um bom artista, claro, um trabalho que toda a gente irá gostar, relevante, até, de um ponto de vista técnico, evidentemente, mas será arte? Terá AQUELA ESPECIAL CENTELHA DOURADA E IRREPETÍVEL que marca, distintivamente, as obras de arte? Aquele sentimento tremendo de que se está diante de algo precioso, relevante, único? É claro que não, mas nem tudo tem de ser arte, aí é que está: o grande problema é que os autores fazem coisas para pagar contas e QUEREM que ESSAS COISAS sejam vistas como ARTE.
        Não são arte: são coisas boas, são coisas excelentes, mas não são arte.
        As canções que se ouvem na rádio serão arte? Quando eu ouço a Antena 2 (que ouço, no carro) reconheço que a maioria das música que lá passam são arte. Tenho dúvidas quanto às canções que passam na Antena 1 e na Antena 3. Vamos ser precisos: uma música pop comum que esteja na moda, como, sei lá, «California Gurls» da Katy Perry, que foi criada, não pela Katy Perry, que só dá a voz e o corpinho para o palco, mas por três ou quatro produtores musicais que compõem TODAS as músicas pop e rock da maioria dos artistas e das bandas do momento: isto é arte? Existem grandes obras de arte feitas em colaboração – já para não falar nos quadros pintados nos ateliês dos grandes mestres da pintura, quase todos pintados por artistas de sessão, tal como há músicos de sessão. Mas a metodologia da criação de uma música pop, como «California Gurls», está nos antípodas de um trabalho imaginado por um mestre, que é criado pelo mestre com a mão de artistas pagos para o ajudar no seu ateliê. Na música pop de que estou a falar, a visão autoral NÃO EXISTE, porque quem compõe para a Katy Perry, compõe para a Pink, para a Ke$ha, para a Britney Spears, para sei lá quantos mais artistas: é um tarefeiro camaleónico, hábil, competente, “profissional”. mas não é um autor. Até EM PORTUGAL HÁ UM ÚNICO COMPOSITOR que faz QUASE TODA a música popular que se ouve por aí. Isto não é arte, isto é FAZER DINHEIRO. Pode fazer-se dinheiro com a arte, não se pode é transformar em arte aquilo que nunca foi arte. Por isso, arguir que trabalhar oito horas por dia a fazer BD é ser profissional e que isso depois permite fazer outras coisas é totalmente falso: na maioria das vezes, quem trabalha a fazer BD NÃO VAI FAZÊ-LA fora das horas em que é obrigado contratualmente a fazê-la. Isso não acontece. Uma coisa é querer ganhar a vida a fazer BD: outra, muito diferente, é ser (e não digo querer, porque isso não funciona assim) um autor.
        Não sei se fui claro o suficiente, mas, com sinceridade, já não sei o que mais posso fazer para clarificar o meu ponto de vista.

        A verdade é esta: quem é autor, sê-lo-á sempre e não precisa de mercado regular nenhum para se aperfeiçoar, nem para outras coisas do mesmo jaez, porque a a sua motivação e génio (sim, falamos de génio – se não, então, estamos a falar de quê?) são ferramentas suficientes para se aperfeiçoar a si mesmo. Eu também gostaria de ver uma situação diferente em Portugal, até mais alinhada com aquilo que tu defendes do que à partida poderás pensar, apesar de defendê-lo por motivos ligeiramente diferentes dos teus.
        Imagina a figura geométrica da mandorla: no estreito vértice inferior tens os incompetentes (e as fraudes); no meio, muito mais alargado, tens os aceitáveis e os mais competentes; no estreito vértice superior tens os criadores verdadeiramente geniais – ora, tanto os incompententes como os geniais são MINORIAS. A maioria é A MÉDIA. E A MAIORIA SERÁ SEMPRE A MÉDIA, seja qual for a dimensão do mercado. Aumentar o mercado não irá aumentar o número de autores geniais, nem de melhores trabalhos. Apenas irá aumentar o número de trabalhos em circulação. Só isso. Apenas. A prova é que existem criadores verdadeiramente geniais em Portugal, que é um mercado pequeno e pouco atractivo.

        Abraços,
        David Soares

        1. says: Bruno Campos

          A maioria das obras – sejam de BD; literatura; cinema ou de qualquer outra área – são só bom entretenimento, no melhor dos casos. Podem ser tecnicamente bem executadas, mas não nunca tem aquele rasgo de de inspiração que as faz transcender e ser um objecto de Arte, com “A” maiúsculo. Eu também não ponho a objectividade na gaveta 😉 Não considero é que exista uma necessidade de todas a obras serem arte, e existem alturas que basta serem um bom entretenimento.

          Cá neste canto é que parece que fazer bom entretenimento tecnicamente competente nas suas vertentes de criação (e execução) não basta, só é válido se for Arte. O que é uma treta, porque arte, Arte a sério será ser uma minoria, e a aquilo que me irrita na defesa do conceito de arte é que depois têm-se muitas obras com pretensões a Arte, que não são nem boa Arte nem bom entretenimento. São só trabalhos com a pretensão a ser algo que nunca o conseguem ser. Não faz arte quem quer, faz quem é capaz! Algo que também é válido para o “mero” entretenimento, mas muito mais para a Arte, porque no entretenimento é mais uma questão técnica do que de inspiração.

          O génio nunca pode ser desenvolvido sem haver uma produção regular, porque o tempo é sempre uma limitação, e um trabalho de 300 páginas (por exemplo) terá sempre de ficar na gaveta ou um autor terá de se dedicar anos (e não serão poucos) do seu tempo livre para realizar a obra.

          O mercado tem limitações (e impõe limitações) mas não é por existir um mercado que os trabalhos dos génios deixam de surgir, quem tem génio tem capacidade de o ser dentro do mercado, ou pode optar por registos alternativos fora das restrições que o mercado impõe.

          O mercado também tem o condão de alimentar trabalhos mais autorais, foram as Tartarugas Ninja (por exemplo) que permitiram a existência de From Hell e Cages de Dave Mckean. Foram os milhões que o Kevin Eastman ganhou com as Tartarugas Ninja que lhe permitiu investir numa editora (Tundra) que só lhe deu prejuízo, e produziu algumas das obras mais anti-comerciais de sempre.

          E no fim do dia prefiro a ignorância da “maralha”, à ignorância das “elites” que por vezes são mais ignorantes, obtusas e perniciosas do que a “maralha” que desprezam.

          A inexistência de um mercado não permite um desenvolvimento regular dos autores, existem muitos autores com talento em Portugal, mas a maioria das obras falha a nível técnico. São pormenores de execução que são desleixados e passam em claro por ser “arte”, “autoral” e “alternativa”. Não basta só inspiração, génio e talento para produzir boas obras, também é necessário trabalhar questões técnicas. São raros os autores que possuem capacidade de produzir logo um obra genial, sem antes terem realizado outras obras menores (publicadas ou para a gaveta) onde foram afinando questões técnicas.

          A existência de um mercado nunca impediu a existência de artistas, de obras autorais, pelo contrário é nesses mercados que surgem mais obras dessas (com qualidade). A existência de um mercado cria constrangimentos aos autores, mas a sua inexistência cria ainda mais – Portugal é um bom exemplo disso.

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