Crónicas do Escondidinho

Em 1999, armei-me em editor de banda desenhada e, com a cumplicidade do José Abrantes, lancei o n.º 0 da revista Boa Zona. Apesar do design do Miguel Rocha, e de histórias de autores como o José Carlos Fernandes, não passou daquele n.º 0.

Para além de BD, havia espaço para umas histórias curtas escritas por mim e ilustradas (em tom muito negro) pelo José Abrantes, passadas num bairro onde, por uma questão de identidade bairrista, todos eram ladrões. Eram as “Crónicas do Escondidinho”. Aqui fica a crónica que estava prevista para o n.º 1 da Boa Zona, que não chegou à publicação, e que incluía muitas referências à possibilidade de o mundo acabar no final desse ano de 1999. Afinal, acabou apenas a revista.

CRIMES DO CORAÇÃO

Ambrósio regressou a casa experimentando um estranho sentimento de alegria e preocupação. Tinha estado no Café do Chico Malveira a assistir a mais uma partida de futebol que um televisor – em tudo semelhante a um aparelho que tinha visto em casa do Paulo Jorge havia dois dias – transmitira aos olhos da freguesia. Tinha havido uma discussão sobre a equipa que iria vencer a Primeira Liga. Havia muita divergência de opiniões, apesar da discussão não ter sido das mais apaixonadas, como provava o facto de o Ambrósio, no calor da mesma, só ter conseguido palmar dois relógios e umas tantas canetas. O Chico Malveira pôs fim à discussão, garantido que, uma vez que a Primeira Liga se prolongava para lá de 31 de Dezembro de 1999 e que o mundo iria terminar pouco tempo depois, ficaria tudo na maior das incertezas, não havendo campeão da Liga. Esta foi a parte que alegrou o Ambrósio pois, vivendo no Escondidinho, há muito que julgava que o mundo já tinha acabado.

[pullquote align=”right”] O Escondidinho era um lugar terrível para abordar fosse quem fosse. [/pullquote]Mas, apesar de ter mais uns tempos de mundo, não escondeu a sua preocupação. Lembrou o percurso da sua vida: o namoro com a Rosinha, o noivado com a Rosinha, o casamento marcado, a gravidez da Rosinha, o roubo das alianças, o rapto do padre, o rapto dos padrinhos, o saque da igreja, o desaparecimento da papelada do registo, a desmarcação do casamento, o nascimento do filho, o desaparecimento do filho, o reaparecimento dos padrinhos, e a carta do filho – que estava na Arábia Saudita – a insultá-lo.

Era evidente o vazio que sentia na sua vida: era, afinal, uma história comum a qualquer outro habitante da Calçada do Escondidinho. E o pior de tudo era que, a uns tempinhos do fim do mundo – e descontada a Rosinha com que ninguém contava – Ambrósio ainda era virgem.

Remediar esta falha antes do fim do mundo não era tarefa fácil para quem se habituara a viver entre a sua casa e o café do Chico Malveira. Mas Ambrósio estava disposto a tudo.

O Escondidinho era um lugar terrível para abordar fosse quem fosse. Os não residentes fugiam com medo dos assaltos, e os residentes entregavam os seus haveres, conformados.

Ao fim de uns dias, Ambrósio desistiu de abordar mulheres estranhas e concebeu um maquiavélico plano de abordagem a mulheres conhecidas: iria pedir um electrodoméstico ultramoderno a uma das suas vizinhas. Estava certo de que ninguém no Escondidinho teria tal aparelho, mas esperava, em vinte segundos de conversa, poder mostrar o melhor que tinha em si: a caneta dourado do Ludovico, a estatueta do Celestino e o porta-chaves do Godofredo.

Muito contente com o plano que concebera, Ambrósio abriu a porta para sair. Deu então de caras com a sua vizinha Rosalinda, que lhe vinha pedir uma máquina de fazer sumo de beterraba. Na mesma altura, passou o Professor Kong a subir as escadas tocando um violino que subtraíra à Banda Filarmónica da Junta.

A paixão ente a Rosalinda e o Ambrósio foi fulminante. Naquela mesma hora teria o Ambrósio ultrapassado a questão da virgindade, não tivesse aparecido o Sebastião, a quem tinham roubado os óculos, e que tomou a Rosalinda pela sua noiva Joaquina. Não gostando do clima de intimidade proporcionado pelo violino do Professor Kong, deu uma valente bofetada na cara da rapariga. Pelo menos assim pensou, pois na realidade deu um soco no baixo ventre do Ambrósio.
Mais tarde, já quase reabilitado, o Ambrósio esclareceu um ponto fundamental com a Rosalinda: ela não tinha noivo, e estava livre não fosse o marido.

A história do Ambrósio tem um fim de mistério, como tanta coisa na Calçada do Escondidinho. Três dias depois, o marido da Rosalinda, apareceu morto, e o Ambrósio e a Rosalinda não mais foram vistos naquelas paragens.

Há quem diga que estão na Arábia Saudita, há quem diga que estão com o padre que ia casar o Ambrósio com a Rosinha. O Chico Malveira diz que no dia do fim do mundo tudo será esclarecido.


José Abrantes voltou a reunir-se com Pedro Mota, para esta Crónica do Escondidinho, com uma ilustração original. Podem acompanhar o trabalho de José Abrantes através da sua página de Facebook.

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