André Lima Araújo: “Um profissional tem de entregar os trabalhos a tempo”

André Lima Araújo é um dos desenhistas portugueses que se encontra a trabalhar para a Marvel. Desde Julho que está a ser publicada a série Avengers A.I., cujo 4º número foi publicado no passado dia 09 de Outubro, o que se revelou uma boa desculpa para falar um pouco com este autor, sobre os projectos em que está a trabalhar e a carreira que tem vindo a desenvolver.

Bruno Campos: Como surgiu o teu interesse pela banda desenhada?

André Lima Araújo: Desde sempre me interessei por banda desenhada, mesmo antes de saber ler, portanto podemos dizer que surgiu naturalmente. Os livros Disney foram os primeiros, depois vieram o Astérix e o Lucky Luke e os comics americanos (principalmente o Homem-Aranha e o Batman) e rapidamente cheguei aos livros de ficção científica europeus e ao manga.

Quais são as tuas grandes influências a nível de BD?

Os dois autores a que me refiro mais vezes são Jean Giraud/Moebius and Katsuhiro Otomo. Masamune Shirow também é uma grande influência. Digo estes em particular porque me interessam todas as características das suas obras: temas, estilos, enredos, design de personagens, cenários, tudo. Existem depois dezenas de nomes mais, dos quais deixo apenas alguns como exemplo, sem ordem específica: Naoki Urasawa, Sergio Toppi, Jack Kirby, Don Lawrence, Frank Quitely, Sean Gordon Murphy, Kya Asamiya, Kim Jung Gi, Brian K. Vaughn, Leinil Yu, Akira Toriyama etc.

E fora da BD, que outras artes e autores te influenciam?

Qualquer meio capaz de transportar uma narrativa tem influência. O cinema é óbvio, mas tenho de referir. Stanley Kubrick e 2001: Odisseia No Espaço; Riddley Scott com Alien e Blade Runner, entre outros. Mais uma vez, a lista é longa: Quentin Tarantino, Mamoru Oshii,Neil Bloomkamp, Francis Ford Coppola (ficávamos aqui o dia todo)… Mas também videojogos podem ser experiências interessantes a nível de presonagens e histórias (quem jogou qualquer Elder’s Scroll, Mass Effect, Deus Ex ou Metal Gear Solid percebe isso) e a televisão obviamente (há muitas séries e documentários – de ficção ou não – que inspiram). Depois há coisas menos óbvias, mas que são para mim importantes no processo criativo, como, por exemplo, a música ou fotografia que, mesmo, não tendo uma analogia directa com a banda desenhada em termos de veículo narrativo são, por vezes, grandes influências.

A tua formação como arquitecto tem influência na tua arte?

Tem, e bastante. Directamente há vários pontos que se tocam. Qualquer processo criativo passa por uma série de passos que são idênticos indepentemente do tipo de arte em que se trabalha. Tanto na banda desenhada com na arquitectura existem fases mais criativas, de concepção (notas, desenhos de personagens ou de estudo, maquetes conceptuais etc.), de procura de referências, de maior liberdade como existem momentos mais técnicos, de concretização dos elementos (o argumento ou as páginas, ou as plantas, cortes, maquetes finais etc.). Ainda que os elementos com se lide sejam distintos, o processo é semelhante.

Perceber quando terminam as diferentes fases também é algo que aprendi enquanto arquitecto e que considero das mais importantes: um profissional tem de entregar os trabalhos a tempo, e para isso é preciso decidir quando acabar a fase criativa a passar à concretização dos elementos finais, perceber quanto tempo demorará a fazer um trabalho e cumprir prazos.

Além de tudo isto, pelo simples facto de fazer o curso fui exposto a uma série de coisas que nunca teria sido se não o fizesse. Nem todas tem utilidade directa, mas não trocaria a experiência por nada.

Quais são as tuas preocupação ao conceberes o layout de uma página?

No layout ou em qualquer fase, a minha preocupação é sempre com a história. Garantir uma fácil leitura e que os vários momentos são mostrados de forma coerente com a emoção, conceito, lugar ou personagem que é pedido (seja escrito por mim ou por outro autor).

Onde começaste a publicar BD em Portugal?

As minhas publicações em Portugal são escassas e não existem a título individual. Foram feitas em algumas edições da Zona e de outros fanzines (Venham +5, Heróis da BD).

Porque motivo é que sempre foi tua intenção desenhar para a Marvel?

Sempre foi minha intenção desenhar, ponto final. Acima de tudo as minhas histórias, mas não sendo possível isso desde início, a Marvel sempre me pareceu um lugar interessante, com um universo que acompanhei de forma esporádica e com que estava minimamente familiarizado. Depois foi muito uma questão de oportunidade e contactos. Tinha poucos contactos para além da Marvel e foi lá que surgiu a primeira oportunidade.

Como surgiu a oportunidade de trabalhar na Marvel?

Conheci o C.B. Cebulski quando ele esteve no Amadora BD (creio que em 2009), logo após me ter formado, e mostrei-lhe o portefólio. Na altura, o meu trabalho era pouco e fraco, porque a arquitectura roubava a maioria do tempo e fazia pouca BD, mas foi o suficiente para ele me dar o contacto.

A partir daquele momento tudo mudou para mim. O mercado de trabalho em Portugal afunilava-se rapidamente, principalmente o da construção, pelo aquela janelinha minúscula que ele abriu pareceu-me ser a melhor hipótese para o futuro. Enviei umas amostras pouco depois, mas não consegui o trabalho desde logo. Percebi rapidamente que a qualidade não era suficiente por isso passei a desenhar todos os dias, sem excepção. Criei histórias, estudei anatomia, perspectiva, narrativa e acima de tudo desenhei muitas páginas. A escassez de trabalho acabou por ajudar porque me deu tempo para crescer, já que passava os dias a desenhar enquanto esperava por respostas a entrevistas de emprego.

E desenhavas histórias “creator-owned” ou páginas com base no material que a Marvel disponibiliza para fazer submissões?

Fiz os dois. Desenhei algumas amostras baseadas em argumentos que eles disponibilizam e sempre que concretizava algum do meu material em páginas, enviava também.

Desse material qual foi o mais relevante para conseguires o teu primeiro trabalho na Marvel?

Excelente questão. Hoje não tenho dúvida que o mais importante foram as minhas histórias. Isto pelo simples motivo que ao criarmos as nossas histórias somos obrigados a criar também todas as ferramentas de raiz. Ao desenhar super-heróis da Marvel existem uma série de poses, layouts, etc que são tão comuns que todos acabam por usar. E mesmo quando se tenta evitar, muitas vez são pedidos no argumento. Já nas nossas criações, ainda que utilizemos sempre referências estas serão mais ecléticas, escolhidas por nós e permitirão o nosso estilo respirar e surgir de forma mais natural. E, ao fim e ao cabo, é isso mesmo que os editores querem ver: o nosso estilo, a nossa personalidade, a nossa criatividade. Foram duas amostras de séries minhas que me deram o primeiro trabalho: uma curta do universo Crux Et Gladius e a primeira versão do Man Plus (ambas disponíveis nas várias plataformas online onde tenho o meu trabalho).

Só tinhas realizado meia dúzia de trabalhos para a Marvel antes de eles te convidarem a desenhar Avenger AI. Qual foi a tua reacção ao receber um convite para ser o desenhista regular de uma série?

Fiquei radiante, obviamente. O primeiro trabalho correu bem, entreguei tudo a tempo e com qualidade, o que foi importante para receber mais alguns. Fui sempre pedindo mais trabalho e, em particular, algo mais regular. Falámos em alguma coisa de maior duração na Comic Con em Nova Iorque, pelo que não foi uma surpresa total, mas não sabia se seria uma mini-série, novela gráfica ou série regular. O que lhes garanti foi que, fosse o que fosse, estaria preparado.

 

 

avengers_a_i_characters_iii_by_erdna1-d6f1etjPara Avengers AI tiveste de fazer o design de diversas personagens. Quais foi a liberdade criativa que os editores te conceberam?

Para as pre-existentes, como Vision, havia coisas que era importante manter (cores, símbolos, cara etc.), para os outros era apenas requerido que se inserissem minimamente no Universo Marvel, mas de resto deixaram-me bastante à vontade. Havia uma descrição base feita pelo Sam Humphries, mas era bastante abstracta, o visual foi todo criado por mim.

Quais foram as tuas preocupações principais ao conceber o design das personagens? Deste preferência à funcionalidade ou ao estilo?

A funcionalidade vem sempre em primeiro, não só a nível prático ao desenhar o uniforme das personagens relacionado com o que fazem mas também a nível de imagem, de forma a transmitir a personalidade e conceitos de cada um. Claro que depois há espaço para pormenores que não são essenciais. Um desses pormenores é a capa do Vision, por exemplo. Quando re-desenhei a ideia era deixar a capa de fora, mas quando acordámos num visual enviei também uma versão com capa. Todos preferimos essa, ainda que não houvesse justificação funcional. Por vezes, a intuição basta.

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Qual foi o maior desafio a nível de design que tiveste de enfrentar ao conceber as personagens para Avengers AI?

Desenhar personagens ao meu estilo mas que se enquadrassem no Universo Marvel. Porque esse equilíbrio era difícil de conseguir logo de início, desenhei as primeiras versões sem grandes preocupações, confiando que se estivesse a fugir demasiado as notas dos editores iriam guiar-me na direcção certa. Não foram muitas e rapidamente atingiu-se um visual que todos concordaram.

Tu não tinhas trabalhado anteriormente com o Sam Humphries, o argumentista de Avengers AI, como como tem corrido a vossa colaboração?

Muito bem, tem sido uma colaboração interessante e encaixa-mos bem desde logo. Falámos de início sobre o tipo de narrativa que queríamos utilizar e procurámos algo onde ambos nos sentíssemos confortáveis. Depois de receber o argumento tenho sempre espaço para fazer sugestões e modificar algumas coisas que eu ache que resultam melhor. Falamos com frequência para ajustar pormenores e conversar sobre o enredo, ainda que aí as decisões sejam suas.

A cor de Avengers AI é da responsabilidade de Frank D’Armata, tens alguma intervenção no processo de colorização e na escolha da palete de cores?

Sim. Também no inicio conversámos sobre o tipo de cor que pretendíamos com o Frank, incluindo o estilo e a palete. Depois vou deixando notas específicas nas páginas quando é necessário e ele envia-nos sempre as páginas conforme vai fazendo para que possamos dar alguma sugestão ou pedir alguma modificação.

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Qual tem sido o maior desafio que tens tido ao desenhar Avengers AI?

Nenhum em específico. O livro no geral é exigente porque eu sempre incentivo o Sam a escrever tudo o que quiser que eu arranjarei maneira de desenhar. As coisas mais malucas geralmente discutimos mas acaba sempre comigo a incentivar à maluqueira. Depois certas sequências ou páginas são sem dúvida um desafio, mas eu também não quereria de outra maneira.

Existem alturas em que Avenger AI envereda por temáticas e estética que são mais usuais em histórias de manga e ficção científica do que de super-heróis. Não temem que essas opções possam alienar o público tradicional de super-heróis?

Não especialmente. Por várias razões: em primeiro lugar, os livros não tem de ser todos iguais, seria aborrecido se assim fosse; em segundo, existe material próprio de super-heróis em todos os números; em terceiro, acredito que também interesse conquistar novos leitores e para isso é necessário apostar em material diferente, mesmo que por vezes não resulte a cem por cento, e onde podem explorar de forma mais completa a criatividade dos diferentes autores. A Marvel tem apostado em alguns livros cujas vendas não são extraordinárias mas abrem o leque da companhia, mesmo sendo todos dentro do mesmo universo de super-heróis (por exemplo, Hawkeye e FF, além do nosso). Ao ter variedade, será sempre mais fácil aumentar os leitores.

Os números 5 e 6 de Avengers AI não são ilustrados por ti, qual é motivo?

Porque a Marvel usa uma técnica de mercado para aumentar as vendas que consiste em, de vez em quando, lançar dois números por mês de uma revista mensal. Como me seria impossível desenhar dois números em apenas quatro semanas (é o tempo que necessito para desenhar um número) foi usado o Valerio Schiti no 5 e 6. Agora, pelo menos até ao 12, serei sempre eu.

Tu tens um projecto “creator-owned” chamado Man Plus que vai ser editado no próximo ano nos Estados Unidos. O que podes revelar sobre esse projecto?

Para já não posso ainda revelar muito. O título Man Plus refere-se ao homem mais as suas extensões, isto é, o homem e a tecnologia e a maneira como o nosso corpo e consciência se expandem nas ferramentas que usámos diariamente, sejam físicas ou virtuais e à dificuldade que existe entre estabelecer limites entre homem e máquina. Com isso como tema central, desenvolve-se então um thriller policial na tradição cyberpunk, passado na cidade ficcional Olissipo, em 2042.

Quais são os teus projectos para o futuro?

Para já Man Plus e Avengers A.I. tem ocupado completamente o meu tempo e assim irá continuar no futuro próximo. A médio prazo, espero ir mantendo este equilíbrio entre Marvel e trabalho de autor.

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