Os Doze de Inglaterra, de Eduardo Teixeira Coelho

Sentai-vos, confortáveis, deixai-vos guiar pelo traço de Eduardo Teixeira Coelho, e  desfolhai as páginas deste tomo de empolgar. Não temeis descobrir  a epopeia cavaleiresca das façanhas e aventuras do cavaleiro Álvaro Gonçalves Coutinho, conhecido como o Magriço. Valente e corajoso, é um dos doze nobres cavaleiros escolhidos pelo Duque de Lencastre para defender em Inglaterra as ofensas à honra de damas inglesas. Doze portugueses que irão mostrar aos prepotentes ingleses, que não hesitam em usar a sua força para intimidar outros defensores da honra de damas da corte, o real significado da valentia lusa.

O Magriço irá mais longe. Enquanto os seus onze companheiros se fazem ao mar, desafiando o golfo da Biscaia na barca do Duque, este decide ver algumas das sente partidas do mundo, atravessando Espanha e França até embarcar para Inglaterra no porto de Dunquerque. Viverá ao longo do caminho muitas aventuras, entre bandoleiros de montanha nos ermos castelhanos, donzelas raptadas por amor, e nobres injustos que abusam da sua força e poder. Desafios que o Magriço enfrentará sempre com a coragem dos seus punhos e da sua espada, contando sempre com a ajuda do seu fiel escudeiro. Juntos, travarão muitas lutas, escaramuças nas floresta, e torneios de cavalaria. Uma gesta que culminará no grande torneio londrino que oporá os doze magníficos cavaleiros lusos aos nefandos nobres, ao qual o Magriço conseguirá chegar a tempo, apesar de todas as peripécias com que se atravessa.

Pranchas de um dinamismo explosivo e expressivo.

Esta reedição de um clássico da banda desenhada portuguesa, publicada originalmente no jornal infantil O Mosquito, é uma das boas surpresas editoriais deste início de 2016. Reaviva na memória pública o trabalho do açoriano Eduardo Teixeira Coelho, um dos grandes desenhadores de BD portugueses. Na sua longa carreira ilustrou banda desenhada para publicações em Portugal, Espanha, França e Itália, país onde recebeu o prémio Yellow Kid para melhor desenhador estrangeiro no Salão Internacional de Lucca em 1973. Nome incontornável da BD nacional, mas algo esquecido, excepto talvez pelos mais conhecedores da sua história, ou por aqueles que guardam na sua memória a leitura das revistas juvenis clássicas, que hoje apenas persistem como artefacto cultural disputado nas prateleiras dos alfarrabistas.

Antes de a ler, esta edição pareceu-me ser uma aposta da editora Gradiva no mercado da nostalgia, com requintes de empolamento de importância centrada na redescoberta de um clássico. Felizmente estava muito incorrecto na minha intuição. Após a leitura, o que sobressai é uma história que apesar de ligada à época em que foi escrita, continua empolgante, magnificamente adaptada, com um cunho visual marcante e surpreendente. Esta é uma obra que envelheceu bem e é, de facto, um clássico. Este livro merece destaque, pela sua qualidade e para que a memória da BD portuguesa não se perca. A BD não foi feita para ser pespegada numa parede. Por interessante e importante que seja conhecer as pranchas dos autores clássicos em exposições, o seu real valor percepciona-se pegando nas páginas impressas, levando o livro para o cantinho de leitura de eleição, e lendo. Foi para isso que foi inventada a banda desenhada.

O rigor da recriação histórica.

O carácter didáctico, pervasivo nesta história que mitifica o medievalismo nacional, não deverá surpreender os leitores de hoje. É uma visão que se enquadra perfeitamente na visão ideológica do Estado Novo, que mitificou e recriou a iconografia dos primórdios da história de Portugal para afirmar a sua legitimidade. A iconografia de obras como a estátua de Afonso Henriques em Guimarães e o Padrão dos Descobrimentos em Lisboa não são acasos. Foram escolhas conscientes, de uma estética coerente afinada pelo Secretariado Nacional de Propaganda tutelado por António Ferro, e que transvasou muito logicamente para o cinema. Neste meio privilegiado de comunicação de massas filmes como Camões de Leitão de Barros ou O Cerro dos Enforcados de Fernando Garcia são exemplos da popularização dessa mitificação do passado nacional.

Sabendo, como hoje sabemos, que a consciência da importância da Banda Desenhada enquanto forma de expressão artística de mérito próprio é uma ideia recente e ainda não solidificada em muitas mentes, o didactismo desta obra sublinha outro dos seus aspectos. Pegando na abordagem ao medievalismo, legitima-se como educativa e escapa ao na altura fatal estatuto de escapismo. Não me é difícil imaginar o olhar condescendente de legiões de professores ou mães dedicadas a autorizar aos seus catraios a leitura destas edificantes aventuras publicadas n’O Mosquito, tornadas particularmente pedagógicas pelo rigor de Eduardo Teixeira Coelho. São educativas, ou como dizemos hoje, abordam a pedagogia sob uma perspectiva lúdica alicerçada num bom tratamento do conteúdo. Esta condescendência didactica é algo que ainda hoje não se esbateu.

No prefacio, José Ruy, ele próprio um decano da BD portuguesa, conta um pouco das histórias da edição original desta obra. Baseada num conto do escritor António de Campos Júnior, foi editado no jornal infantil O Mosquito entre 1950 e 1951. De acordo com José Ruy, a edição original desrespeitava o traço de Teixeira Coelho devido a uma má adaptação das palavras, adaptadas por Raul Correia, ao espaço gráfico da vinheta. Esta reedição respeita mais o traço do ilustrador. Mostra-nos um estilo que deslumbra pela sua espectacularidade, expressividade e consistência. Tem ainda uma forte e rigorosa componente de investigação histórica, sublinhada pelo grande cuidado na verossimilhança de trajes, arquitectura, adereços militares e heráldica. Algumas das vinhetas de Eduardo Teixeira Coelho parecem directamente inspiradas na iconografia dos livros de horas e romances cavalheirescos medievais que chegaram até nós.

Confesso que não esperava o que encontrei nesta excelente surpresa bedéfila. Apesar de defender a necessidade de conhecer a história da BD, sei que é normal que as antigas grandes histórias e as aventuras ilustradas que divertiram empolgaram as gerações que nos precederam, geralmente envelhecem mal. Algo observável mais a nível narrativo do que gráfico, e que obviamente não é exclusivo da BD. É uma das características inatas à cultura popular nas suas diferentes vertentes. A larga maioria das historietas de BD que encantaram não aguentam o teste do tempo. Parecem ao nosso olhar contemporâneo como demasiado simplistas, pueris, inocentes ou mesmo ridículas. Note-se que esta característica é um prenúncio do futuro das ficções que hoje nos encantam. Raramente os sucessos de hoje serão os clássicos de amanhã. Sublinhe-se que este mau envelhecimento não deve ditar o seu esquecimento, especialmente para quem está envolvido no meio. Conhecer o seu passo significa ser capaz de avaliar a evolução do género. Como se observa no caso da Ficção Científica, um género literário muito em sintonia com o seu passado, reeditando e preservando na memória pública autores e edições que, mesmo não atingindo os padrões de qualidade contemporâneos, são considerados pertinentes pelo seu papel na evolução dos seus conceitos estruturantes e estilísticos.

Os Doze de Inglaterra

Autor: Eduardo Teixeira Coelho.
Editora: Gradiva
Páginas:122, capa dura.
PVP: 18,25 €[/box]

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