Poderá o esforçado grupo de sobreviventes alguma vez chegar a porto seguro? É o dilema por detrás de séries de continuidade prolongada como esta. Se toda a história se centra nas adversidades que encontram pelo caminho, a chegada a um destino seguro condená-la-ia. Terminariam os dramas e as colisões com o desconhecido que formam o cerne deste tipo de narrativas. E, claro, deixaríamos de poder ver o extermínio de zombies com extremo prejuízo, que, sejamos honestos, é o maior ponto de interesse de todo o género de terror zombie. O porquê deste gosto pelo extermínio sistemático com requintes sangrentos de hordes ameaçadoras seria tema para uma longa conversa. Sublinha a forma como as histórias de infestações de mortos vivos tocam nos nossos tribalismos inatos. Especialmente na maneira como concebemos o outro e visualizamos aqueles que são diferentes de nós – quer por cultura ou etnia, como hordes infectas de invasores que vão aniquilar o nosso modo de vida. Escrevo estas linhas em dias em que a comunicação social nos mostra continuamente imagens arrepiantes de seres humanos esmagados em exíguos botes, aglomerados nos comboios ou a tentar penetrar em fronteiras, hordes que atravessam o Mediterrâneo fugindo à destruição dos seus lares, recebidos com desconfiança e hostilidade num sonho europeu com requintes de pesadelo. Creio que não preciso de um tristemente melhor exemplo para abordar aquilo que o género zombie sublima dos nossos medos face ao que os outros representam. Os mortos-vivos são apenas outra expressão da visceralidade transmitida pelo Perigo Amarelo, o fardo do homem branco ou os bárbaros aos portões do império.
No entanto, não é sobre os terríveis dilemas dos êxodos contemporâneos que este texto versa, mas sim sobre os dramas imaginários do grupo de sobreviventes que acompanhamos desde o primeiro número de um comic que já conta com cento e quarenta e seis edições. Um sucesso da banda desenhada, para os autores, para a Image Comics, para os canais de televisão que apostaram na versão audiovisual da série, para os criadores de adaptações transmedia. Um sucesso que se traduz numa longevidade inesperada para um título enquandrado numa vertente muito específica do terror. É intrigante ver a forma inaudita como os Zombies tomaram conta da cultura popular, desde vertente obscura do gore dos anos 70 e 80 (e, no caso dos filmes de George Romero, política e socialmente crítica) para revivalismo cinematográfico e moda que não dá sinais de perder o interesse da cultura popular .
Um sucesso que condena o grupo de sobreviventes a uma eternidade cíclica de desventuras, combates, vaguear por um país em ruínas, e enfrentar essa outra grande característica do género zombie que é sublinhar que o maior inimigo da humanidade é ela própria e não as ameaçadoras hordes invasoras que tentam destruir. Esta linha narrativa esteve em forte evidência numa fase anterior do comic, e que aqui volta a ser pertinente.
A impossibilidade de haver portos seguros, quer numa série deste tipo quer no contexto específico da história ficcional de The Walking Dead foi a ideia que mais ressoou na mente enquanto lia este décimo segundo volume dos Trade Paperback da série. Apesar de ser aparente que os personagens vão poder parar, respirar, e reviver um pouco do mundo que perderam com o colapso, por detrás está sempre um sentimento de arrepiante fugacidade. Sabemos que a calma não irá durar, que por detrás da aparência de normalidade se oculta a promessa de tragédia. Nesta edição, que colige os números 67 a 72 do comic, o grupo de sobreviventes chega a Washington depois das duras peripécias que viveu na queda da prisão e no arco narrativo do Governador. Exaustos e endurecidos, são contactados por um outro grupo de sobrevivente que, sob a liderança de um ex-senador, conseguiu recriar um pacato subúrbio num subúrbio próximo das ruínas de Washington. Uma Alexandria Safe Zone que contrapõe o bucolismo suburbano ao pesadelo ballardiano de arquitecturas abandonadas e auto-estradas entupidas com carcaças de automóveis a enferrujar com zombies a deambular pelas linhas axiais do antigo centro de poder global.
As capacidades de combate e sobrevivência do grupo chefiado pelo Xerife Grimes não passam despercebidas aos líderes da zona segura. A sua integração na comunidade revela-se problemática. Destacam-se os óbvios sentimentos de desconfiança entre os dois grupos, apesar do enorme esforço que a comunidade da zona segura faz por mostrar uma cara simpática e um ambiente cheio de bonomia. Não ajuda o líder ter o seu quê de sátiro e se insinuar junto de uma jovem do grupo de Grimes, ou a insistência em deixar as armas num local seguro. Mas o que mais sublinha as dificuldades de integração é o sentimento pervasivo entre os sobreviventes que aquele vislumbre de paraíso é inacreditável e não durará. Algo que Kirkman sublinha em cenas muito fortes, com o filho de Grimes a recusar-se a brincar com as crianças do refúgio porque não quer enfraquecer, ou Michonne, que deixa de lado a sua fiel katana mas perde o controlo ao enfrentar a banalidade de um dia a dia normal. Mais não refiro, já deixei por aqui demasiados spoilers…
Um dos pontos interessantes de Walking Dead é a forma como tem garantido uma forte consistência visual numa série longeva. O realismo áspero do traço de Charlie Adlard combinado com os traços duros dos tons cinzentos de Cliff Rathburn são muito eficazes a transmitir a visceralidade do horror num surto zombie. O estilo visual mantém-se igual a si próprio neste volume.
Medos, traumas de sobreviventes, temor de que os elementos da comunidade apenas estejam à espera que os sobreviventes baixem a guarda, mas também algo mais. Ter uma zona segura bem equipada, defensável, com electricidade, água e uns rudimentos de cuidados médicos é algo de muito precioso e Grimes prepara o seu grupo para tomar conta da zona com um ardil inteligente. Será bem sucedido? Para quem não acompanha a série original nos comics da Image, ou leu os trade paperbacks em inglês, resta esperar que a Devir edite a tradução do próximo volume para satisfazer a curiosidade, e acompanhar o próximo passo do ordálio do grupo liderado por Grimes. Em evidência continua a premissa deste género que mostra como os homens entre si são mais perigosos do que os monstros que os aguardam no exterior. Algo que já o lendário filme Night of the Living Dead sublinhou quando em 1968 despoletou este imparável surto zombie na cultura pop.
[box title=”Ficha técnica” style=”noise” box_color=”#f2ecdd” title_color=”#353535″]The Walking Dead Volume 12: Viver Entre Eles
Autores: Robert Kirkman, Charlie Adlard, Cliff Rathburn.
Editora: Devir
Páginas:136, capa mole
PVP: 14,99 €[/box]