Um belo dia, Simon um empregado de escritório parisiense, abandona a mulher, o filho, a casa, o emprego e a sua cidade, para partir numa viagem pela França, à procura de si próprio.
Uma viagem poética, contada pelo traço sensual de Edmond Baudoin, e galardoada em 1997 com o prémio para o Melhor Argumento no Festival de Angoulême.
Virtuoso do desenho, senhor de um traço espontâneo e elegante, Edmond Baudoin foi dos primeiros desenhadores europeus a entrar no poderoso mercado japonês, onde este livro foi originalmente publicado. Autor diversas vezes premiado, presença assídua nos mais prestigiados festivais de BD – como por exemplo, no Amadora BD 2014 – Baudoin é um dos maiores representantes da banda desenhada francesa mais alternativa. Com A Viagem, os leitores portugueses poderão, pela primeira vez, descobrir a sua obra.
Nascido em 1942, Baudoin abandona em 1971 o seu emprego como contabilista num hotel de Nice para se dedicar à sua grande paixão: a banda desenhada e o desenho. Tendo publicado nas principais revistas francesas como Circus, Pilote, Echo des Savanes e (A Suivre), Baudoin estreou-se em álbum em 1981, com Les Sentiers Cimentés, título publicado pela Futuropolis, editora que irá lançar mais de uma dúzia de livros seus em 10 anos.
É um dos grandes representantes do romance gráfico autobiográfico, de que A Viagem é um exemplo poético, que mistura elementos da vida real com outros ficcionais. Autor de uma obra sequencial mais difícil que o normal, mais exigente para com o leitor, que por vezes parece situar-se a meio-caminho entre a BD e a pintura – ou por vezes a caligrafia, o que terá sido um a das razões pelas quais os editores japoneses se interessaram pelo seu trabalho – e que nunca enveredou pela facilidade, Edmond Baudoin viu esse seu percurso ser recompensado em 1992 ao receber o Alph’Art para Melhor Álbum no Festival de Angoulême.
“Quando comecei o meu trabalho, percebia muito bem que estava a fazer algo que poderia ser de facto qualificado como difícil, na banda desenhada. Para mim, o prémio de Angoulême que recebi [pelo álbum Couma Aco] virou-me a vida do avesso. Naquele momento, interpretei aquele prémio como se me dissessem “Seguimos-te até aqui, mas podes ir muito mais longe, por isso, tens de te tornar um pouco mais tu próprio”. Então, muito bem. Vou mostrar-vos que posso ir um pouco mais longe”.
A Viagem é um livro que ocupa um lugar singular na obra de Edmond Baudoin, por ter sido uma banda desenhada encomendada pela editora japonesa Kodansha, alguns meses depois de Baudoin ter sido premiado em Angoulême, num ano em que o Japão era país convidado do Festival. O pedido era específico, fazer uma espécie de remake de um seu anterior livro, também chamado A Viagem, para a revista Morning, uma revista de manga seinen (para leitores adultos). Por esse motivo, e porque a história era desenhada directamente no papel fornecido pela editora, e por ter sido publicada no sentido de leitura japonês, a sua composição e planeamentos são algo distintos do trabalho normal de Baudoin. O próprio autor explica algumas das diferenças fundamentais de códigos visuais entre a BD francesa, ou Ocidental, e o manga japonês (em entrevista dada no ano 2000 a João Miguel Lameiras):
Nas minhas histórias, muitas vezes há quadrados em que a imagem diz uma determinada coisa, o texto diz outra e há ainda um bocado de texto em voz off, que simboliza o narrador da história. Isto é, três diferentes níveis de leitura na mesma imagem. No Japão isso é impossível, tal como não é aconselhável utilizar balões de pensamento, ou aqueles pequenos textos a dizer “entretanto”, “enquanto isso”, ou “no dia seguinte”. Em contrapartida, temos um espaço muito maior para desenvolver o jogo corporal das personagens. E, mais do que pelos diálogos, a caracterização das personagens faz-se através desse jogo corporal, dos olhares, dos sorrisos. É uma forma mais visual de contar uma história, mas tão ou mais eficaz do que a nossa!
Premiada em 1997 com o Prémio do Festival de Angoulême para o Melhor Argumento, distinção a que não terá sido estranha o traço mais solto e livre, menos denso, que adoptou para este “quase-manga”, e que criou um ritmo de narração muito próprio, A Viagem tornou-se num dos marcos relevantes da sua obra. Depois de Le Voyage, e ao longo dos anos seguintes, Edmond Baudoin tem vindo a alcançar um estatuto que lhe tem permitido explorar a sua própria maneira de fazer banda-desenhada. É, portanto, justo que seja esta a primeira obra sua apresentada aos leitores portugueses, e que inaugura na colecção Novela Gráfica o género da banda-desenhada semi-biográfica.
Eu não sou músico, mas utilizo muito a palavra música para expressar a noção de ritmo. Às vezes até falo, por exemplo, da música de Fellini ou da música de Pasolini. Para mim é muito importante que os seres andem na sua música. Para alguns, essa música poderá ser olhar para árvores vivas, pássaros a voar… e porque não? Mas o que quer que seja, cada um deve encontrar a sua música, e estar na sua música. Para mim isso é o essencial.