É que a divulgação da capa alternativa de Manara, gerou uma onda de contestação que se estendeu para além dos sites e blogs da especialidade, tendo chegado a meios de informação mais generalistas, como The Guardian, BBC,ou Telegraph.
Após várias reacções que incluíram uma autora dar lições de anatomia gratuitas e não solicitadas ao autor Italiano, por entre acusações de “objectificação das mulheres”, o site Italiano Fumettologica, especializado em BD, entrevistou Milo Manara.
A entrevista foi também disponibilizada numa versão em inglês, que foi posteriormente publicada no site The Beat. Apresentameos aqui a versão portuguesa dessa entrevista, publicada com autorização do Fumettologia.
Fumettologica: Como interpreta o debate que a divulgação da sua capa suscitou?
MANARA: Pelo que li na internet, as críticas têm duas motivações diferentes. Um é o lado sedutor e erótico, o outro é o erro anatómico. Agora, sobre a incompetência no desenho eu não sei o que dizer. Vamos dizer que eu tentei fazer o meu melhor por 40 anos. Ninguém é perfeito e eu posso estar errado; Pode-se dizer de um modo simples: eu sou um profissional, faço o melhor que consigo.
Acerca do lado erótico, no entanto, eu achei um pouco ‘incrível’. Apesar de existir um facto que considero obrigatório dizer primeiro: parece-me que tanto nos Estados Unidos como no resto do mundo existem coisas muito mais importantes e sérias com que nos devemos preocupar, como os eventos em Ferguson, ou o drama do ébola. E existem pessoas que ficam revoltadas por coisas assim [como a capa] … A menos que haja, actualmente, uma hipersensibilidade às imagens mais ou menos eróticas, devido a esse confronto permanente que é suposto termos com o Islão. É do conhecimento geral que a censura das formas femininas não devia ser uma característica da nossa própria civilização, a ocidental.Isto é o que eu também acho muito surpreendente.
Fumettologica: A principal crítica à sua imagem – embora não seja nova, nem nas discussões sobre banda desenhada, nem no seu trabalho – é que ele representa uma mulher que é “objecto” de desejo sexual, através de uma forma e uma pose que é provocadora, não muito ‘natural’.
MANARA: O que eu queria fazer era uma rapariga que, depois de subir a parede de um arranha-céus, rasteja sobre o telhado. Ela está nabeira e a sua perna direita ainda está fora do telhado. Portanto, considero erradas as críticas que foram feitas sobre as questões anatómicas: não é para ela ter os dois joelhos no telhado. Uma perna ainda está em baixo e a outra está a subir. Precisamente por esta razão, também as suas costas estão arqueadas. Isto é o que eu tentei fazer
Dito isto, não é minha culpa se as mulheres são assim. Eu só estou a desenhá-las. Não fui eu quem fez as mulheres desta maneira: foi um autor muito mais “importante”, para aqueles que acreditam… Por outro lado, para os evolucionistas – incluindo eu – na realidade, os corpos das mulheres tomaram esta forma ao longo dos milénios, a fim de evitar a ‘extinção da espécie. Se as mulheres fossem feitas exactamente como os homens, com a mesma forma, eu acho que já estaríamos extintos há muito tempo.
Para além disso, eu não considero que seja uma das capas mais eróticas que eu já fiz. Eu creio que escolhi, de todas as poses que se possa imaginar – e a prova existe, se forem procurar na Internet, onde me documentei, para ver todas as imagens da Mulher-Aranha – a que é, em termos de enquadramento, menos problemática. Quando é desenhada deste ângulo não vê quase nada. Vemos apenas que ela tem um rabo. E é, realmente, uma mulher com um belo rabo, pelo menos do meu ponto de vista.
É desse modo que os super-heróis são: estão nus, cobertos com uma cor de tinta qualquer. O Super-Homem está nu pintado de azul, o Homem-Aranha está nu pintado de vermelho e azul e a Mulher-Aranha é pintada de vermelho. Mas isso é parte do “truque”, por assim dizer, que os editores usam para criar essas formas de super-heróis nus – na qual eu não encontro nada de errado – mas sem nudez real. Quando os vemos mais tarde nas histórias, indo além da capa, estas são personagens cujos corpos estão “à vista”.
Fumettologica: No entanto, para além da forma a questão é também a posição. Não a considera como algo provocador ou até problemático em si mesmo?
MANARA: Na realidade, é uma rapariga que está gatinhando, ou melhor, avançando no ritmo do jaguar. Depois de subir a parede do prédio, ela está puxando-se para o telhado do edifício. É assim que eu vejo. Claro, com certeza, já que as mulheres são construídas de uma certa maneira, qualquer movimento que elas fazem, se estão nuas … e até certo ponto, mais ou menos, todos as super-heroínas estão nuas. Esta capa não é diferente. E a Mulher-Aranha não vai estar sentada numa cadeira, certo? Mas se formos para a internet para ver todas as outras imagens da personagem, existem muitas que são muito mais eróticas, e se os personagens estivessem nus, elas seriam mais ordinárias do que a que eu fiz. Em vez disso, como sabemos, esta malha, esta – digamos – ”película de plástico colorido”, é o que salva todas as aparências.
Fumettologica: Contudo, e em boa altura, o debate continua em aberto. Para adicionar um item à discussão, há também a intervenção do vice-presidente de ”publishing” da Marvel, Tom Brevoort, que disse: “É, para uma trabalho de Manara, um dos menos sexualizados, pelo menos aos meus olhos. Talvez os outros sintam de forma diferente.
Mas como a personagem está coberta da cabeça aos pés e agachada numa pose de aranha, parece muito menos “exploradora” para mim do que outras peças Manara, que nós publicámos em meses e anos anteriores. (…) Eu acho que uma conversa sobre como as mulheres são retratadas na banda desenhada é relevante neste momento, e definitivamente parece estar a emergir zeitgeist”.
Parece que esta capa veio num momento em que, até mesmo no campo dos comics, existe (de alguma forma) uma nova sensibilidade: já não é aceitável ver alguns excessos na representação “provocadora” das mulheres.
MANARA: Eu consigo entender, é claro. Como eu também entendo as pessoas que se sentiram ofendidas. Mas eu percebo no sentido de que, de repente, abre-me os olhos e eu tenho de reconhecer que o que para mim é uma bela imagem, agradável, atraente, sedutora – que é exactamente o meu objectivo, ou o que eu quero alcançar – e que para outros é perturbadora. Mas isso é algo que eu tenho que enfrentar sempre. E, já agora, é algo que continua a surpreender-me, cada vez mais e mais.
Se for para as praias agora, irá ver raparigas cujos fatos de banho minúsculos deixam ver completamente as formas dos seus corpos. Claro que, para alguns pode ser uma imagem que é perturbadora, mas não o é para mim. Desculpem a minha objectividade, mas na realidade, quando me pedem para desenhar vou tentar comunicar serenidade mais do que sedução.
Fumettologica: O que tem tocado alguns comentadores e escritores – Dan Slott, por exemplo – é ter ter causado tanto assombro um trabalho perfeitamente em sintonia com a sua extensa carreira, que é conhecido por todos. Outros, pelo contrário, perguntam por que tudo isso aconteceu com um de seus desenhos e não outros, sugerindo como no seu toque há uma carga gráfica que, para o melhor ou pior, faz com que os corpos desenhados por si tenham um impacto erótico mais forte.
MANARA: Se assim fosse, seria um grande elogio. Eu tendo a acreditar que talvez eu já estivesse na mira de alguns comentadores ou bloggers que aproveitaram a oportunidade, embora não fosse a mais convincente, para levantar este problema. Eu entendo a controvérsia de que o uso do corpo das mulheres é uma questão sensível. E eu não poderia concordar mais com o facto de que o corpo feminino não deve ser usado em publicidade, por exemplo, para vender … “selante de silicone”. A única coisa que eu não concordo não é tanto o facto de que essas imagens sejam eróticas, mas o facto de são banais. Qualquer pessoa é capaz de ligar uma bela imagem a qualquer produto: é claro que quer transferir para o produto a beleza dessa imagem. Um truque tão trivial que eu considero enjoativo. Mas quando se trata de desenhar uma personagem de collants vermelhos, cuja linha de trabalho é escalar arranha-céus, não vejo escândalo no facto de a desenhar de uma forma sedutora. Porque é assim que eu imagino que ela é.
Eu não sei se esta personagem também vai ser adaptada para cinema, mas se for, eu creio que eles vão ter uns probleminhas para a colocar a fazer o que o Homem-Aranha faz (enquadrá-la nas mesmas vicissitudes e desempenho atlético e assim por diante), sem ela se tornar sedutora. Se ela for representada por uma actriz dotada de rabo, é claro que o seu rabo vai ser visto. Eu lembro que os seus collants são “pintados”… Eu também notei que alguns sites dizem que mais de um fato, o que se vê no meu desenho é a pintura corporal. É verdade. Claro que é. Mas porque é assim em todas as bandas desenhadas de super-heróis: Estas roupas são pintadas sobre eles. Não se vê um vinco, uma ruga. Vêem-se os músculos perfeitamente.
Eu não estou muito convencido, porém, com a última parte da controvérsia. Ou seja, aqueles que acusam a Marvel de tentar alcançar uma fatia do público feminino, ao me encomendarem uma capa. Um artista que, como sabe, tem um público masculino. Eu rejeito completamente isso. O meu público é, pelo menos, 50% do sexo feminino. Eu sei que isso é um facto, porque quando vou a festivais e vejo a fila para conseguir um livro autografado por mim, existem mais mulheres do que homens. Portanto, eu também rejeito a noção de que a celebração dos interesses do corpo feminino é só para homens: Eu não penso assim.
Ah, existem também aqueles que insinuam que toda a controvérsia foi fabricada de propósito. Eu só posso dizer que não sabia de nada até ser informado. Quanto muito, do meu ponto de vista, eu tenho que dar os parabéns à Marvel por ter mostrado respeito por um desenho que, por horrível que possa ser, ninguém me pediu para fazer qualquer tipo de alteração. Eu não acho que foi pior do que os outros, ou mais escandaloso do que os outros. E em frente a uma imagem de sedução eu sinto alegria e não repulsa.
Fumettologica: Foi salientado que o autor da capa regular, Greg Land, é conhecido por usar, algumas vezes, fotos de actrizes de filmes porno para desenhar as poses nas suas BDs.
MANARA: Eu não sabia disso. Eu respeito muito Land como desenhista. Eu vejo que ele é um dos mais realistas, e eu assumi que ele usava modelos, mas que se ele decalcou imagens desse tipo, isso eu não sabia. A menos que se sejam só boatos não confirmados? [Não é!] Eu gosto da sua arte, porque tem um certo poder evocativo, por vezes forte, impressionante, então ele está entre os que eu gosto. Tenho visto, de certo modo, que alguém também lhe tem dado aulas de anatomia. Nunca pára de aprender.
E de qualquer maneira, eu tenho que dizer o seguinte: a última coisa que eu quero é “épater les burguesois” (chocar a burguesia), ou ofender alguém. Eu só quero fazer algo sedutor que oferece cinco minutos de descontracção. É tudo o que há. A razão pela qual eu concordei em fazer algumas capas para a Marvel, quando eles me convidaram, é porque eu creio que em alguma quinta remota no Maine ou Oregon existe quem vá ler estas revistas, talvez dizendo “ah, que rapariga bonita”. É tudo o que há. Eu ficaria mais do que satisfeito se tal coisa acontecesse. Mas eu não creio que um desenho como este na capa de Spider-Woman possa ter consequências masturbatórias. Eu não creio; deve ser sedutora, e eu vou fazer o meu melhor para que seja assim. Como eu disse, a perspectiva que eu escolhi – eu não a enquadrei por trás, por baixo, etc – é de cima. E a partir da altura vêem-se as costas sinuosas e vê-se as duas nádegas. Mas não é o que se vê, é o que se sabe.
Estou tentado a voltar ao início: eu acho que existem outras coisas com que nos preocuparmos, mas se quiserem, por favor, no entanto uma última coisa. Até hoje eu não falei com a Marvel (nos últimos dias tem existido algumas dificuldades de comunicação, mas eu acho que vou falar com eles em breve, na próxima semana), mas parece-me que esta capa ainda não foi publicada. Isso quer dizer que pode acontecer que a Marvel, vendo estas controvérsias, a retire e não publique. Quem sabe, talvez nós estejamos a falar sobre nada: a Marvel decide não publicá-la, então é “boa noite para o balde” (expressão italiana que significa “e, em seguida, estamos lixados”). Em qualquer caso, só para completar, eu lembro-me que eles me pediram para ampliar um pouco o traje de uma dessas capa. Assim, em geral, se eles têm alguma objecção, dizem-me. E eu concordo: uma vez que a responsabilidade é deles, é o seu direito serem cautelosos. Para além disso, é o mercado norte-americano, por isso… Eu recebi esta encomenda há três ou quatro meses atrás. Foi e continua a ser apenas uma celebração do corpo, sem qualquer manipulação. Eu entenderia se fossem mulheres reais, forçadas a fazer coisas que não querem fazer, para fins comerciais. Mas são apenas desenhos, santa paciência.
Uma entrevista realizada pelo Fumettologica, site italiano especializado em banda desenhada, reproduzida com autorização. Versão portuguesa por Bruno Campos e Sara Pereira.