Heróis da BD

Há uns tempos, escrevi aqui neste espaço que A BD de José Ruy é uma BD de causas, muitas vezes reconhecendo heróis improváveis, sempre profundamente humanos. O novo álbum, com lançamento no âmbito do Amadora BD, é mais um exemplo desta BD de autor.

Numa edição do Amadora BD que privilegiou, por efeito do tema e exposição central, o espaço e o tempo, José Ruy faz o lançamento de um novo álbum que se centra no elemento humano: a personagem. É sempre muito curiosa a escolha que José Ruy faz no que respeita aos protagonistas das suas histórias, quando se trata de biografias em banda desenhada. A galeria de protagonistas inclui o Infante Dom Henrique, Nicolau Coelho, Pêro da Covilhã, Wenceslau de Moraes, Gutenberg, Almeida Garrett, Charles Chaplin, Columbano Bordallo Pinheiro, Humberto Delgado, Alves dos Reis, Jorge Dimitrov, Aristides de Sousa Mendes, Martins Sarmento, Leonardo Coimbra e João de Deus. Carolina Beatriz Ângelo é a primeira mulher a integrar tal galeria, e o facto de ser mulher não é estranho à escolha, já que esta figura histórica destacou-se justamente por ter sido a primeira mulher a votar em Portugal e, muito provavelmente, por ter sido a primeira mulher médica a fazer uma operação cirúrgica em Portugal.

Em 2016, o facto de uma mulher votar em Portugal ou de uma médica fazer uma operação cirúrgica é, felizmente, algo de normal, pelo que é útil um relato como o de José Ruy para podermos ganhar consciência da verdadeira dimensão do mérito de Carolina Beatriz Ângelo. Trata-se, sem qualquer dúvida, duma dimensão heróica. No seu trabalho na biografia em BD, José Ruy continua a buscar a figura heróica. Mas adopta um conceito atual de herói de BD para uma obra de não-ficção. O herói de BD é aqui mais do que um mero protagonista (que muitas vezes, nas histórias de outros autores, é o próprio autor), mas é alguém que o autor tem por heróico, independentemente da forma como a história (sobretudo em vida) o considerou. É nesta apreciação subjetiva do autor que encontramos alguns traços humanos que José Ruy valoriza, e que são comuns a muitas das personagens que integram a “sua” galeria. Como Carolina Beatriz Ângelo, muitas destas personagens têm convicções fortes e inovadoras, defendem ativamente as suas convicções, tomam a iniciativa e desenvolvem ações movidas pelas suas ideias, não se conformando mesmo se, muitas vezes, são mal interpretados ou aceites. Este é o novo herói de BD segundo José Ruy, num conceito que, digo eu, reflete não só aquilo que José Ruy valoriza nos outros, mas aquilo que constituem valores pelos quais José Ruy procura reger a sua própria vida.

Mas, naturalmente, estas caraterísticas gerais podem transformar-se em participação cívica ou ativismo político. Carolina Beatriz Ângelo teve uma vida curta, falecendo aos 33 anos. Foi por decisão judicial que foi reconhecida (por ser viúva e com os filhos a cargo) como «chefe de família». E foi com este estatuto, reconhecido judicialmente, que se tornou na primeira mulher a votar em Portugal, um mês após a sentença que a mandava incluir no recenseamento eleitoral, nas eleições constituintes de 28 de Maio de 1911. O presidente da assembleia de voto ainda consultou a mesa antes de aceitar o voto. Nesta sequência, em 1913, a lei eleitoral seria alterada, passando a só admitir eleitores do sexo masculino.

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