A homenagem a José Garcês, que teve lugar no passado dia 30 de Março, em iniciativa conjunta da Biblioteca Nacional e do Clube Português de Banda Desenhada, contou com a presença de José Ruy. José Ruy falou do início de carreira de ambos, nos anos 1940, altura em que se conheceram, frequentando ambos a escola António Arroio e beneficiando dos ensinamentos de Rodrigues Alves, e destacou a amizade e partilha que sempre se verificou entre os dois autores. O homenageado Garcês respondeu, considerando José Ruy um amigo, um companheiro, um irmão e um colega.
O revisitar dos 70 anos de carreira de Garcês permitiu refletir um pouco naquilo que une e distingue José Ruy e José Garcês.
Em primeiro lugar, sobre aquilo que os une, há um fator humano que é assinalável: as pessoas José Ruy e José Garcês são ainda melhores do que os autores de banda desenhada com os mesmos nomes. Há traços notáveis das suas personalidades que não chegam ao leitor através das obras, nomeadamente uma certa generosidade e disponibilidade. E há outros que passam, como o interesse. Ruy e Garcês são pessoas interessadas e interessantes, sempre dispostas a aprender (independentemente do que têm para ensinar) e a experimentar, e com um enorme sentido de observação e capacidade de comunicação. Qualquer dos dois tem coisas a comunicar e uma personalidade forte (mesmo que, por vezes, o caráter discreto de José Ruy pareça indicar o contrário), e, nessa medida, ambos conseguiram chegar a uma banda desenhada muito pessoal, uma verdadeira BD de autor.
E é aqui que se distinguem.
A BD de Garcês é uma banda desenhada de serviço público. É feita com espírito de missão. Mas isso não afasta o envolvimento pessoal do autor: na banda desenhada histórica, procura sobretudo a consagração dos heróis (mesmo quando o herói não é uma individualidade, mas um povo) e dos feitos heróicos; nas histórias sobre animais toma a perspetiva da conservação da natureza. As suas personagens atingem com facilidade uma dimensão simbólica para lá do humano, sendo que a mulher, na obra de Garcês, tem uma personalidade singular, marcadamente cerebral.
A BD de José Ruy é uma BD de causas, muitas vezes reconhecendo heróis improváveis (sempre profundamente humanos), e outras vezes demonstrando-se movido também por uma elevada sensibilidade estética. Em termos formais, José Ruy trabalha como um artesão do livro de BD: a criação está intimamente ligada ao processo técnico e, entre o autor e o leitor, nunca é esquecido o processo de impressão. Muitas das caraterísticas singulares na obra de José Ruy, como as soluções ao nível da utilização da cor (das cores utilizadas à técnica do destaque de personagens a uma só cor distinta do fundo, passando pelo fabuloso colorido dos balões em “Uma Viagem ao País do Balão”) surgem na sequência do domínio de processos técnicos.
Estes distintos caminhos são percorridos ao longo de décadas com uma evolução e técnica individual impressionantes. Para lá do desenho em si (veja-se qualquer cena noturna na BD a preto e branco de Garcês, ou o mar na BD de José Ruy), há um conhecimento de planificação e composição que não é para todos. O empenho nos trabalhos preparatórios e o rigor da documentação também é um traço comum.
É muito raro, em termos mundiais, ter carreiras tão longas que permitam uma aprendizagem tão grande a um leitor de banda desenhada. Por esta invulgar extensão e pela qualidade dos respetivos percursos, José Ruy e José Garcês são justos merecedores de todas as homenagens.