Autores de BD

Não se lê pintura, vê-se pintura. Ler um quadro é uma actividade de segundo grau, posterior ao contacto sensorial. Na BD, ler e ver são actividades inseparáveis. Lê-se a imagem de um modo diferente das artes visuais. A imagem obedece aqui a regras narrativas, a um modelo de leitura verbal, e não a regras de estética puramente visual.

A frase é de Rui Zink, e encontra-se no texto (publicado em livro) da sua tese de doutoramento, “Literatura Gráfica? – Banda Desenhada Portuguesa Contemporânea” (Celta Editora, 1999).
>Quinze anos depois da publicação (em livro) desta tese, e apesar de o texto transcrito parecer evidente e pacífico, as suas implicações – desde logo ao nível da autoria de BD – ainda não foram suficientemente acolhidas no âmbito da reflexão em torno da banda desenhada. Num exemplo simples, os prémios existentes em Portugal, a começar pelos atribuídos pela Amadora, continuam a distinguir desenhadores e argumentistas, como se a autoria de uma banda desenhada fosse feita de partes independentes. Enquanto coautor de banda desenhada, Rui Zink sempre reivindicou coautoria dos desenhos e sempre deixou reivindicar coautoria do argumento, porque o que está em causa é um todo de BD cuja identidade não se limita à soma das partes. Premiar isoladamente um desenhador ou um argumentista de BD não deixa de ser como premiar, na música pop-rock, o melhor baterista ou o melhor teclista, o que, convenhamos, faz pouco sentido.

Cinco anos depois do livro de Zink, a crítica de banda desenhada veio a ser enriquecida com o ensaio “Sobre BD”, de David Soares (publicado em corajosa edição de autor). David Soares é, como Zink, um extraordinário escritor e um crítico atento. Mas, ao contrário de Zink, o seu conceito de autoria na banda desenhada é claramente influenciado pela sua condição de “argumentista”, e pela forma como entende o trabalho em colaboração. É normal ver David Soares apresentar um livro de BD como um livro “seu”, ilustrado por… É o conceito oposto ao de Zink.

Há cerca de uma dúzia de anos, na Amadora, os prémios nacionais de banda desenhada distinguiram David Soares como melhor argumentista por “Mr. Burroughs”, e Pedro Nora como melhor desenhador pelo mesmo álbum. Mas o prémio para o melhor álbum português foi atribuído a um outro trabalho (também em colaboração): “Tu és a Mulher da minha Vida, ela a Mulher dos meus Sonhos”, de Pedro Brito e João Fazenda.

A questão parece apenas teórica, mas tem implicações práticas. Nos festivais de banda desenhada, por exemplo, vulgarizou-se a apresentação de desenhos originais. Questiona-se quem é o autor do que se está a apresentar? É que a banda desenhada será o livro para ler. Uma prancha de BD, ou um estudo de personagem, tenderá a ser apenas uma etapa preparatória da construção da banda desenhada. No AmadoraBD, em que as pranchas têm legendas identificadoras, tem-se optado pela perspetiva de que é a banda desenhada que se está a expor. Apesar de se indicarem os materiais com que foi realizado (tecnicamente) aquilo que está exposto, a tendência é para creditar todos os (co)autores.

Um problema mais complexo liga-se à participação do leitor, que é muito mais ativa do que noutros tipos de linguagem (como o cinema). Deve o leitor de BD ser considerado também ao nível da autoria na experiência subjetiva que é a leitura da banda desenhada? Zink acaba por sugerir esta integração: “O importante é a relação de continuidade estabelecida entre duas ou mais vinhetas. Essa ligação é sugerida no texto mas necessita da colaboração activa do leitor para ser concretizada.” O critério de David Soares é, neste aspeto, mais coerente, afastando por completo o leitor.

Mesmo assim, aceitando que a questão necessita de ser mais aprofundada, tendo a concordar com Rui Zink.

Num recente artigo publicado no excelente blogue LerBD, Pedro Moura retoma a questão da autoria da banda desenhada, a propósito de “dois livros entre escritores e quadrinistas brasileiros”.

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