Arte por Yuko Shimizu para o livro The Future is japanese

Haikasoru –O Castelo Alto do Fantástico Japonês

Com uma curta lista de autores premiados, clássicos e novos trabalhos dos mais promissores jovens escritores, Haikasoru é a primeira chancela dedicado a trazer a ficção científica japonesa para a América, e para além dela. Apresentando a acção do anime e a reflexão da melhor ficção especulativa, a Haikasoru pretende ser um verdadeiro “castelo alto” da ficção científica e fantasia”

Pensemos um pouco: quantos escritores japoneses ligados à literatura fantástica conhecemos?

Não é questão de reposta fácil. Murakami? Ishiguro? Podemos pensar em Kazuo Ishiguro e o seu recente The Buried Giant, alvo de uma polémica sobre o que constitui literatura séria e literatura de género, mas estaríamos enganados. Ishiguro é inglês, apesar de nascido no Japão.

Haruki Murakami é incontornável pela forma como tece um sentido do onírico nos seus romances. Embora utilize técnicas que tocam nos domínios do fantástico literário, é um escritor de literatura contemporânea dentro do campo dos realismos mágicos e não um escritor de Ficção Científica ou Fantasia puras.

A questão fica, por isso, no ar. Haverá literatura fantástica japonesa? Sabemos que sim, através de raras antologias de história literária, e pela forte tradição do fantástico no mangá e anime. Também sabemos que existem escritores, convenções sobre a temática e prémios anuais, como os Seiun – o equivalente nipónico dos prémios Hugo – atribuídos desde os anos 70. Ler as listas de premiados com o Seiun é ver quarenta e cinco anos de livros e autores que apontam para um panorama literário vibrante, e quase totalmente desconhecido fora do Japão.

A recente edição de All You Need Is Kill, pelas Edições Devir, tornou pertinente falar um pouco da edição em traduções de literatura de Ficção Científica e Fantástico japonesa. Este mangá baseia-se no romance homónimo do escritor Hiroshi Sakurazaka, trazido para o público que lê em inglês pela Haikasoru, uma intrigante editora americana. Conquistou o público global com No Limite do Amanhã, a sua adaptação cinematográfica. Para os leitores de Ficção Científica, o sucesso desta edição representa também um levantar do véu sobre a literatura fantástica nipónica.

A Haikasoru é uma chancela especializada da Viz Media. Baseada em São Francisco, esta conhecida editora disponibiliza para o mercado global edições em inglês dos mais populares mangá e animé. Detida conjuntamente pelas editoras japonesas Shueisha e Shogakukan, conta no seu catálogo com títulos bem conhecidos dos fãs como Naruto, Death Note, Biomega, Assassination Classroom, Oishinbo ou Vampire Knight. Alguns destes títulos estão a ser editados em Portugal pela Edições Devir. A Viz publica ainda livros de arte e a revista Shonen Jump. Também está presente no mercado televisivo e cinematográfico, sendo responsável por trazer para os ecrãs ocidentais, em particular os norte-americanos,  as mais populares séries japonesas de animé.

O Efeito Ken Liu

A chancela chegou-me à atenção através de Ken Liu. Este programador, autor e tradutor chinês tem-se distinguido pelo esforço que faz na tradução e divulgação da Ficção Científica chinesa e japonesa nos espaços de língua inglesa. Graças a Liu os leitores europeus e americanos têm conhecido o melhor que se faz na FC chinesa com contos publicados na Clarkesworld e Interzone, e a excelente surpresa que foi The Third Body Problem de Cixin Liu. O seu primeiro romance, The Grace of Kings, acaba de ser publicado.

Liu participou naquela que foi a primeira pedrada no charco da Haikasoru: a antologia The Future is Japanese, editada por Nick Mamatas. Uma obra inesperada que despertou a atenção da crítica e deslumbrou os fãs do género, misturando contos de autores japoneses – inéditos fora do Japão – e norte-americanos. Prestamos atenção quando um livro saído de uma editora que desconhecemos é comentado por Bruce Sterling na Wired.

A ilustração de capa da antologia é da autoria de Yukio Shimizu, ilustradora japonesa bem conhecida dos leitores de comics pelo seu trabalho nas capas da série The Unwritten, de Mike Carey e Peter Gross.

A Haikasoru lançou-se em 2009 com quatro obras: The Lord of the Sands of Time de Issui Ogawa, ZOO de Otsuichi, o já referido All You Need Is Kill de Hiroshi Sakurazaka, e Usurper of the Sun de Hōsuke Nojiri. Tem mantido um bom ritmo de edição, contando com um catálogo alargado que dá a conhecer diversas vertentes da ficção fantástica nipónica. Vai do mais acessível, como a FC militarista de Chohei Kambayashi ou a fantasia de Issui Ogawa, ao experimentalismo cyberpunk de TohEnjoe e ao absurdismo de Ryu Mitsuse. Não esquece o mercado transmedia com adaptações literárias de Battle Royale e Metal Gear Solid, bem como o público Young Adult.

Nas obras mais acessíveis somos confrontados com histórias lineares de puro entretenimento, de estrutura similar ao mangá e anime que conquistou fãs em todo o mundo. São disso exemplos livros como Yukikaze de Kambayashi, sobre uma aeronave de combate inteligente, unida ao seu piloto por laços emocionais, que combate forças extraterrestres num mundo alienígena inóspito à vida humana. De All You Need Is Kill pouco mais pode já ser dito (consultem a crítica sobre o mangá e o livro). Outras obras de destaque são a ironia do perfeccionismo na eugenia em Harmony de Project Itoh, nomeado para um prémio Phillip K. Dick, a ficção científica Hard de The Ourobouros Wave de Jyouji Hayashi, ou o terror de Otsuichi.

Não resisto a destacar esse corpo estranho que é Ten Billion Days and One Hundred Billion Nights, de Ryu Mitsuse, onde uma luta titânica entre Siddharta e Jesus – que envolve combates corpo a corpo com mísseis nucleares – se desenrola desde os tempos antediluvianos até ao futuro longínquo. Obra clássica da ficção científica japonesa que desafia classificações e interpretações, cuja primeira edição foi em 1967.

Aos olhos ocidentais a Ficção Científica nipónica talvez sofra da excessiva banalização. Estamos habituados às séries onde adolescentes salvam o mundo nas suas armaduras robóticas mecanizadas. Mas vai muito para além disso.

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O mangá trouxe-nos os delírios hiperurbanos de Tsutomu Nihei em Biomega e Blame!, o rigor classicista de Yukinobu Hoshino em 2001 Nights, o cyberpunk de Tatsuyuki Tanaka, entre tantos outros que estão em falta nesta curta lista que intencionalmente não se mete com os bem conhecidos Ghost in the Shell ou Akira.

Obras que na maioria dos casos são inéditas em português, sendo que actualmente só existe uma editora a publicar mangá: a Edições Devir. A qual poderia ter uma aposta mais diversificada nas obras traduzidas, cativando outros públicos que não os do shonen mangá que constituem grande parte do seu catálogo. Mas, os mercados não se constroem de um dia para o outro,  e até recentemente a edição de mangá em Portugal era parca ou inexistente, esperemos que a estratégia editorial da Devir já tenha cativado leitores suficientes para poder começar diversificar a sua oferta, e trazer aos leitores portugueses outras vertentes do mangá, com outra obras como All You Need Is Kill.

Na literatura há muitas obras intrigantes e provocadoras saídas do país do sol nascente. A Haikasoru dá-nos algumas, numa selecção fascinante que desperta as atenções para a literatura de género no Japão. Os seus temas e estilos literários inserem-se nas grandes correntes da ficção científica global, e parte dos seus títulos participam na grande fluidez transmediática entre livros, mangás e anime que caracteriza a cultura popular japonesa.

Infelizmente, dado o panorama da praticamente inexistente edição de ficção científica em Portugal, ficaremos apenas pelas edições internacionais. É o paradoxo literário portugês: as editoras não editam porque sabem que o grosso dos leitores já leu as obras em inglês, mas estes optam por ler em inglês porque sabem que os livros que os intrigam dificilmente serão por cá publicados.

O Fascínio do Oriente

É, talvez, inegável o fascínio que a cultura japonesa exerce sobre os fãs. Poderíamos olhar para a tradição clássica dos orientalismos e japonisme do século XIX. Recorde-se que a descoberta das gravuras japonesas pelos pintores impressionistas deixou uma marca indelével na arte moderna.

tokyogaCreio que para cada um de nós há marcos muito pessoais que despertaram este fascínio. Poderá ter sido a primeira leitura de um mangá, que nos mergulhe nesse vasto ou fascinante mundo. Alguma visão nostálgica de um animé na televisão da infância. Pessoalmente, o momento em que percebi que o Japão me fascinava foi quando vi Tokyo-Ga, esse documentário onde Wim Wenders homenageia simultaneamente o cinema e a hipermodernidade japonesa. Ainda hoje me assombram as imagens capturadas nesse filme, como o olhar um turista por entre os espaços urbanos de Tokyo. O livro The Lady and the Monk: Four Seasons in Kyoto de Pico Iyer cimentou o fascínio, com alguma ajuda de filmes como Sans Soleil de Chris Marker ou O Amor é um Lugar Estranho de Sofia Coppola. O melhor do mangá de FC alimenta esse gosto. Graças à Haikasoru, a curiosidade pela literatura fantástica japonesa fica satisfeita e aguçada.

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