Sepulturas dos Pais, David Soares e André Coelho

Não bastar um individuo possuir poder para ser feliz,é esta a moral do álbum de David Soares e André Coelho.

Os pais, apesar de constarem no título, ausentes desta história. “Estão todos no fundo do mar”, indicar-nos-á Borges, um dos personagens, A orfandade é o elo ligação entre dois protagonistas que habitam num mundo desolado e desprovido de esperança, sendo também o único aspecto emocional do passado deles que é explorado, em particular a influência que esse facto teve na infância de Borges.

O fatalismo impregna Sepulturas dos Pais desde a primeira prancha, como se um fim amargo para a história narrada fosse inexorável. Algo que é constantemente relembrado, uma vez que a história é  intercortada pelo interrogatório a que Borges é sujeito. Durante o qual ele deixa transparecer o seu desencanto com a vida e cria, no leitor, a certeza de um desenlace nefasto para a narrativa que está a acompanhar.

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A irrelevância da Magia

Aquilo que mais nos assusta quando somos miúdos é saber que a magia existe. Que a imaginação é a relalidade. Como e que se pode continuar a ter uma vida normal… depois de se descobrir que há sonhos que andam na terra.
– Borges, o personagem de Sepulturas dos Pais.

A magia, a existência do sobrenatural, é um elemento aparentemente fulcral em Sepultura dos Pais, embora acabe por ser pouco relevante ao longo do seu desenvolvimento.

O álbum é, sobretudo, um exercício sobre a ruína das personagens e, até certo ponto, dos locais e o modo como o ser humano utiliza o poder que possui. Nesta história é salientado o poder que advém da magia; mas poderia ser outros tipos de poder que um ser humano pode possuir: beleza, dinheiro, conhecimentos ou qualquer outro facto que, em princípio, é suposto tornar a vida de um indíviduo mais propícia a um desenlace feliz.

Existe nesta obra um universo mágico, uma mitologia, que acaba por não ser explorado ou desenvolvido. A existência do fantástico é um dado adquirido neste universo, mas não é o cerne da história, servindo apenas para explorar as emoções humanas num contexto fantástico.

A escrita de David Soares é simultâneamente visceral e etérea, aparente contrasenso que está patenta na generalidade da sua escrita. O mundo criado pelo argumentista é violento, em determinados momentos abjecto e retrata aspectos negros das personagens e dos seres humanos mas é, em simultâneo, um mundo onírico e etéreo. Seja ao nível do desenvolvimento da acção, dos espaços onde ela se desenrola se ou da definição dos personagens.

O Nome da Besta

Um dos factores para a eterealidade da obra de David Soares é as personagens e locais primarem pela ausência de um nome que os identifique, algo que é parcialmente colmatado neste álbum onde onde os protagonistas têm nome: Borges e Janeiro. Esta característica está antes presente nos antagonistas e na localidade onde se desenrola, a qual não é sequer identificada com vila, cidade ou aldeia.

Na apresentação do álbum, durante o AmadoraBD 2014,  David Soares explicou que não costuma dar nomes às personagens por si criadas para evitar que ganhem algum significado oculto ou que os leitores tentem adivinhar o seu papel através do seu nome, já que isso lhes dá “à partida um lastro emocional ou referencial que as vão contaminar já à primeira leitura”, algo que o argumentista diz querer evitar “o máximo possível”.

É verdade que os nomes possuem poder, e criam automaticamente conotações na mente do leitor, seja com personagens ficticias ou reais. Elemento que por vezes é usado pelos escritores como um atalho para definir uma personagem, atribuindo-lhe um nome que remete para o papel que elas irão desempenhar numa história. Embora os estes possam ser utilizados para jogar com as expectativas do leitor, cumprindo-as ou subvertendo-as, também podem limitar-se a ser unicamente um elemento que as identifica. A sua ausência acaba em alguns casos a reduzir a personagem a uma característica mais genérica que um simples nome (antagonista ou agente da polícia) e cria, em certa medida, uma distância entre o leitor e as personagens.

Um dos elementos que revela a familiariedade ou, se preferirem, intimidade que temos com outros individuos é o conhecer o seu nome. É um detalhe mínimo mas real. Aqueles cujo nome desconhecemos são-nos estranhos. Quando uma personagem fictícia não tem nome existe um aspecto banal cujo conhecimento é negado ao leitor, criando um distanciamento, até porque os personagens anónimos são usualmente aqueles que são secundários ou irrelevantes.

Por outro lado, a incapacidade do leitor em nomear o local, onde se desenrola a acção, não lhe permite  ancorar esse espaço num universo real ou fictício, tornado-o num sítio genérico, sem uma personalidade própria.

Os nomes ajudam a criar um universo fictício, é um elemento que permite criar uma cartografia com base numa realidade pré-existente ou imaginária. Quando esse elemento está ausente, o local onde a acção se desenrola torna-se em algo mais etéreo e difícil de localizar. Deixa de ser um local “real” que o leitor visitou, conseguindo identificar e definir facilitar, para ser uma memória mais difusa, como num sonho, onde não temos coordenadas suficiente para o localizar no mundo real.

Contenção

Sepulturas dos Pais é o álbum mais contido de David Soares ao nível da terminologia utilizada. Possuindo um vasta conhecimento da língua portuguesa, as suas obras de banda desenhada ou prosa costumam ser uma excelente maneira de descobrir novas palavras. De tal forma que por vezes até acaba por distrair da leitura, por requerer uma consulta regular do dicionário.

Neste álbum, essa característica está ausente, porque a história não utiliza qualquer tipo de narrador e o único texto visível é o dos diálogos dos personagens, os quais pertencendo a um extracto baixo da sociedade falam de um modo mais coloquial, sendo um reflexo de quem os personagens são e não de quem o escritor é. Este é um detalhes que por vezes é esquecido, por alguns autores, e faz com personagens supostamente ileteradas ou semi-iliteradas falem de um modo pomposo e académico, revelando uma dissonância entre quem é suposto serem e o modo agem e falam na obra que protagonizam.

A contenção de David Soares acaba por ancorar as personagens num mundo real, contribuindo para o registo onírico e visceral, não distraindo o leitor com exibicionismos desnecessários da verve literária do autor.

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Coelho Contido

Contenção é mesmo a palavra de ordem em Sepulturas dos Pais, um álbum onde David Soares é servido pela arte de André Coelho, o qual editou uns meses antesTerminal Tower, um livro cujo grafismo está nos antípodas do trabalho que desenvolve nesta obra.  Terminal Tower é um exercício gráfico onde prevalecem as ilustrações de uma e, por vezes, duas pranchas e onde a sequência narrativa está quase ausente. É um trabalho bem conseguido mas que nem parece feito pelo mesmo desenhista de Sepulturas.

David Soares tem um estilo de escrita que é visível na arte dos álbuns, independentemente do desenhista, e com André Coelho a parceria resulta na perfeição.

Sepulturas dos Pais é um álbum visual onde o texto é mínimo e a escrita de David Soares só é visível através da arte de André Coelho. Construído com base em sequências narrativas silenciosas e, por vezes longas, é a arte que cria todos os ambientes e define os locais, as personagens e a emoções. Esta é uma daquelas histórias que falham com um desenhista menos competente ou que opere numa frequência diferente do argumentista, uma vez que existe muito pouco que seja dito ao leitor, e a narrativa está dependente da leitura que se faz das imagens. Em parte um pouco surpreendente que num álbum cujo segredo do sucesso é a arte não exista uma única prancha onde ela tenha espaço para respirar, estando sempre constrangida por um grelha pré-estabelecida que varia entre as seis e as nove vinhetas.

Fica, pelo menos para mim, a curiosidade de ver os autores num trabalho em que exista um maior liberdade artística. Neste aspecto, a maior crítica que se pode fazer a este álbum é o facto de o argumentista ter jogado pelo seguro.

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Expectativas para o futuro

David Soares tem um registo próprio, apurado ao longo de décadas, que não se desvia um milímetro do modelo usual. Não corre, por isso, qualquer risco a nível criativo que coloque em causa o modelo que garante a competência e qualidade a que habituou os leitores.

O correr riscos a nível criativo não é por si só uma garantia de sucesso para os autores, mas a evolução também é feita desses riscos. Sepulturas dos Pais abre o apetite para o que os autores poderiam fazer num “obra de maior fôlego”, com mais de 64 página, onde explorem as devidas valências a nível de escrita, arte e sequência narrativa.

Digo isto tendo consciência das limitações que existem no mercado, impedindo a criação de obras mais extensas, uma vez que a remuneração é parca para se criar trabalho de centenas de páginas. Contudo, é um desafio que poderá compensar, pelo menos aos leitores,.O número de páginas de um álbum limita o desenvolvimento da história, da sua complexidade e das narrativas que são exploradas e, no caso dos autores em questão, eles têm capacidade para se aventurarem em obras mais complexas.

Sepulturas para os Pais não deixa pontas soltas a nível narrativo, mas deixa um universo por explorar. Centrado na história de Janeiro e Borges, os restantes personagens limitam-se a relevar unicamente as características necessárias para o desenvolvimentos da história, e o universo mágico apresentado nunca chega a ser explorado.

A magia não quer saber se morremos, se vivemos, se choramos, se rimos, ela está lá, é neutra, é indiferente, é uma força física e a mensagem que eu quero transmitir com o livro é essa mesma, é que às vezes aquilo que nós valorizamos como sendo essencial ou como sendo vital é muitas vezes um obstáculo, um hábito, que nós criamos na nossa vida e do qual não nos conseguimos afastar.

Esta declaração de David Soares, na apresentação do álbum, acaba por ser todo o contexto existente para o universo mágico da obra. Mencionei anteiormente que a magia era irrelevante, exactamente por isto: é um elemento que estando presente poderia ser substituído por outra fonte de poder a que um ser humano tenha acesso.

Apesar da ausência de dados para localizar a acção, o universo de Sepulturas dos Pais possui elementos que o ligam ao imaginário português, contudo esse lado nunca chega a ser explorado. Algo que pessoalmente lamento. Não por causa de qualquer tipo de nacionalismo bacoco, é que vivemos num mundo onde a ficção se encontra saturada pelo imaginário anglo-saxónico e nipónico, o qual é muitas vezes replicado na forma, esquecendo-se o contexto cultural que o produz. O imaginário nacional é usalmente relegado para segundo plano, por vergonha ou desconhecimento Existem tradições e mitos que poderiam ser revisitado e reinventados.

A memória cultural do imaginário português perde-se ao ser ignorada ou encarada com um pudor excessivo, não ousado utilizá-la como matéria prima mas abordando-a de um ponto de vista meramente museológico, o qual se limita a apresentar o que existia. Esta memória também se preserva com faltas de “respeito” pelas tradiçoes, reciclando e recriando para construir novos universos ficcionais.

Este é um aspecto que poderia ser desenvolvido, quer nesta obra quer na de outros autores, não se limitando a ser só um acessório que até pode passar despercebido à generalidade dos leitores. Mas o cerne deste álbum não é a mitologia, ou o universo mágico em que se desenrola, está nas relacções humanas e na forma como os personagens convivem com as suas fraquezas e o mundo que os rodeia.

A magia existe, é um dado adquirido. A magia existe, está ali. Em que é que isto melhora a vida dos indivíduos? Não melhora nada. Os indivíduos melhoram pelo seu próprio esforço, pelo seu próprio desenvolvimento.
David Soares 

Pode parecer que estou a ser excessivamente meticuloso e talvez um pouco picuínhas, por isso deixem-me salientar,  que só existe “universo fictício” por explorar nesta obra porque os autores criaram um universo, não se limitando a narrar uma história, apesar de ela também existir e ser pertinente. Sepulturas dos Pais é uma fábula etérea e cruel sobre a incapacidade humana em utilizar os dons que possuí, executada com uma competência técnica que por vezes é irritante, uma vez que arrisca muito pouco a nível criativo, “limitando-se” a desenvolver a história de um modo eficaz e tecnicamente irrepreensível.


Sepulturas dos Pais

Argumento: David Soares
Desenho: André Coelho
Legendagem: Mário Freitas
Editora: Kingpin Books
Nº Páginas: 64
Encadernação: Capa Mole
PVP: 9,99€

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