Estrompa: Um último Café no Park

Se a morte é algo inevitável, nunca estamos realmente preparados para ela quando ela leva alguém que nos é próximo.

No final do século XX existia no meio bedéfilo lisboeta um senhor de barba que dava pelo nome de Estrompa – não era alcunha, era mesmo apelido. José João Amaral Estrompa nasceu em Lisboa, a 8 de Fevereiro de 1942. Tendo sido aluno da Escola de Artes Decorativas António Arroio, apesar de não ter concluído o curso isso não o impediu de trabalhar na área da Publicidade e Artes Gráficas.

A experiência que tinha em artes gráficas acaba por ser uma mais valia que iria utilizar no fanzine Shock, numa época em que não havia impressão digital e o Photoshop era uma miragem com que poucos sonhavam. O Estrompa quando começa a editar o Shock, em 1983, já era um senhor de 41 anos. Apesar de ter surgido em década de 80, é só na década de 90 que o Shock acaba por ganhar vida e ser uma edição regular, que acabaria por gerar outra publicação, também ela coordenada por Estrompa: Café no Park</em>.

O título deste fanzine era uma referência ao Parque Mayer, onde no Café dos Artistas se realizava a tertúlia Shock, ponto de encontro de vários autores de BD, em particular dos “novos da BD”, os “putos”.

A necessidade de criar um novo fanzine, Café no Park, deveu-se àquela que era a linha editorial do Shock no início da década de 90: um fanzine temático de homenagem a um autor ou personagem. Isso implicava que os autores fizessem ilustrações ou BD’s com base em personagens já existentes e, como os “putos” queriam fazer as histórias deles, o Estrompa (já com uns veneráveis 50 anos) lá fazia a vontade à malta e assim surge o dito Café no Park, apresentando trabalhos de “jovens promessas” como Pedro Brito, João Fazenda, Rui Lacas ou Pepedelrey, entre outros.

O Café no Park dura cinco números, acabando por se transformar num suplemento do Shock, que abdica de ser um fanzine de homenagens. Os autores estavam mais interessados em fazer trabalhos próprios do que homenagens e o Estrompa acabou por ceder. Para além disso, também era autor e gostava de criar as suas próprias histórias, a maioria das quais protagonizadas por Tornado, o seu personagem fetiche surgido no Banda Nº10, em Agosto de 1990, iria tornar-se em presença regular no Shock.

Estrompa foi um dos responsáveis por a generalidade dos fanzines Lisboetas serem impressos na Correia Gomes. No início da década de 90, só existiam duas opções para imprimir uma publicação: offset ou fotocópia, como o offset implicava tiragem (e custos) elevados, a panaceia de quem editava fanzines era encontrar a um local – se quiserem podem chamar-lhe de gráfica – que fizesse umas fotocópias com uns pretos sólidos e que não desbotassem com facilidade. Hoje em dia pode parecer ridículo, mas quem vir fanzines da década de 90 do século XX, ou anteriores, vai compreender o que o termo fotocópias de má qualidade quer dizer!

Os tempos mudaram, o Shock também foi mudando e os últimos números já eram feito a solo pelo Estrompa, ou incluindo trabalhos de José Lopes (com argumentos deste ou do Estrompa).

Para trás ficaram os fanzines onde colaboraram (para além dos autores já mencionados a propósito do Café no Park) Luís Louro, Nuno Saraiva, Augusto Trigo, Brum, Rui Gamito, Jorge Coelho, José Carlos Fernandes e muitos (mas muitos) outros, alguns desapareceram, outros são hoje conhecidos cá e lá fora.

Se a lista de autores que colaboram no Shock é extensa, a dos que passaram pela tertúlia Shock é ainda maior. Na década de 90 existiam mais dois pontos de encontro para os autores lisboetas, o Clube Português de Banda Desenhada e a Tertúlia BD de Lisboa do Lino, a diferença da tertúlia Shock é que o Estrompa era um dos “putos”, apesar de ter idade pai ou avô de alguns. Para além da jovialidade e bom humor, o Estrompa era um autor que tinha a particularidade de não se importar que os “pupilos” ultrapassem o “mestre” e era das pessoas que tinha sempre uma palavra para incentivar – mesmo quando era algo que não gostava – embora, obviamente, não publicasse todos porque existiam requisitos mínimos de qualidade.

A tertúlia Shock não servia para alimentar os projectos do Shock ou o ego do Estrompa. A tertúlia Shock era acima de tudo um encontro de autores de BD, de pessoas que gostava de BD e que se encontravam à quinta-feira no Café dos Artistas ou, posteriormente, no Chiado ou na Casa do Alentejo. Por lá se formaram parcerias e surgiram projectos, muitos nunca foram mais do que conversas de papel, alguns tiveram curta duração, outros ainda perduram.

A inspiração do personagem fetiche de Estrompa, Tornado, é o Torpedo 1989, um personagem criado por Enrique Sanchez Abuli e Alex Toth, apesar de ter sido popularizado pelo desenhista Jordi Bernet (Toth só ilustrou as duas primeiras histórias).
Apesar de ter nascido com um pastiche de Torpedo, Tornado acabaria por ter um um universo particular e singular. O que atraiu Estrompa na série de Sanchez e Abulli foi a evocação do filme noir, protagonizado por actores como Humphrey Bogart, James Cagney, Edward G. Robinson. Contudo, o Estrompa não era de escrever policiais: ele gostava era de fazer humor. Apesar das referências serem norte-americanas, a realidade que reflecte é portuguesa e bem visível na incongruências que transportam o Bairro Alto ou Cais do Sodré para Nova Iorque.

Por vezes é um universo demasiado pessoal e hermético, cuja compreensão não será possível para quem não possuir as chaves que permitem decifrar a mensagem.

Nascido e criado nos fanzines – Banda, Comic Cala-te, BD & Roll, Shock, Almada BD Fanzine, CaféNoPark, Seasons of Glass, Boom e Tertúlia BDzine – também passou pelas páginas da revista Selecções BD e na colecção LX Comics da Bedeteca de Lisboa.

Do universo de Estrompa também fazem parte as personagens “Pink”, “Smaile” e “Família Darling” tendo colaborado com BD’s ou cartoons para publicações como Tintin, Mosquito (5ª série), Selecções BD (1ª série) Pão Comanteiga e DN Semanal.

A obra fica, o autor não.

Não é a obra que deixa saudades, é o homem que a criou, porque a obra podemos sempre reencontrar em fotocópias, de boa ou má qualidade, ou edições mais profissionais, do homem, do amigo, do pai, só ficam as memórias de que privou com ele e, como sempre, fica a mágoa de já não se poder voltar a ter esse prazer.

Foto por Marco Peixoto

José João Amaral Estrompa, que nos últimos anos tinha tido vários problemas pulmonares, faleceu no dia 18 de Julho de 2014, com 72 anos, num quarto em Arroios. A missa fúnebre é hoje, quarta-feira 23 de Julho, às 13H15 horas na Igreja de Arroios, onde o corpo tem estado a ser velado desde as 18 horas de terça feira, 22 de Julho, seguindo o funeral para o cemitério do Alto de S. João, onde o corpo será cremado às 14 horas.

Estrompa deixa para trás duas filhas, um Shock, um Tornado, muitas memórias e as saudades daqueles que tiveram o prazer de o conhecer.

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