Como ter uma editora sem investir capital

Um caso de estudo sobre como editar sendo um associação.

Eu tinha mencionado no balancete de 2014 que existem diferenças entre uma associação e um editora contudo, após ler a entrevista de Marcos Farrajota ao Universo BD, creio que uma afirmação tão simples e óbvia como essa precisa de ser dissecada devido à ignorância de uns e à má fé de outros.

As diferenças entre uma associação e uma editora

Uma associação-sem-fins-lucrativos, como a Chili Com Carne, e uma editora convencional, como a Mmmnnnnrg do seu presidente, têm enquadramentos jurídicos e fiscais distintos, derivado ao facto de, teoricamente, uma entidade se destinar à promoção de actividades sem fins de lucro e outra ser uma entidade com fins lucrativos.

O facto de Chili Com Carne ser, na prática, uma editora do seu presidente, faz com que, de facto, tenha uma vantagem competitiva, particularmente em relação a outras pequenas editoras que não beneficiam do mesmo enquadramento jurídico e fiscal que uma associação-sem-fins-lucrativos Os benefícios estendem-se para além de subsídios, sendo que mesmo a nível de subsídios estatais também existem enquadramentos distintos consoante se as associações são juvenis ou não.

A partir do momento que os enquadramentos jurídicos e legais são distintos, quem quer vender a ideia de que a Chili Com Carne é semelhante a qualquer outra editora, seja ela pequena ou grande, é ignorante, estúpido ou prima pela falta de honestidade intelectual. Os enquadramentos jurídico e fiscais destas entidades são distintos, algo que deveria ser óbvio, mas que em Portugal precisa de ser relembrado.

Quem considera que a Chili Com Carne merece ser aplaudida por ter lucro vendendo livros aos sócios com 50% de desconto ou é estúpido, ignorante ou prima pela desonestidade intelectual. Qualquer editora que venda os seus livros no circuito comercial tem lucro recebendo só 50% ou menos do preço de capa a que os livros são vendidos. Na prática, o desconto que a Chili Com Carne faz aos sócios é o desconto que é feito a uma distribuidora como é reconhecido pela própria associação.

É um acto generoso muito simples na realidade, preferimos “oferecer” metade do dinheiro da venda do livro a um leitor-associado do que a um filho-da-puta de um distribuidor! É feio chamar de “filho-da-puta” a seja quem for até porque em português o correcto é “filha-da-puta”!

In Manual Prático de Uso da CCC

Na prática, o desconto até nunca é de 50% uma vez que, para ter acesso ao desconto, é preciso pagar no mínimo a cota de 10 euros. Como desconheço outros benefícios financeiros que a Chili proporcione aos sócios, um sócio que compre dois livros com um preço de capa de 10 euros paga exactamente o mesmo que se comprasse numa livraria, uma vez que paga 5 euros por cada livro, mais os 10 euros de cota.

Já agora, os descontos de 50% nas edições próprias e de 20% nas edições de outras editoras (como as da editora do presidente) é um dos benefícios e vantagens competitivas que a Chili tem relativamente a outras editoras, sejam elas pequenas ou grandes, por juridicamente a CCC não ser uma editora mas uma associação-sem-fins-lucrativos, mas que dá lucro.

A lei do livro (a menos que tenha mudado, e desculpem lá não me dar ao trabalho de ir confirmar) não permite que uma editora ou livraria venda novidades com mais de 10% de desconto, excepto em situações excepcionais, como feiras do livro. Como a Chili Com Carne é juridicamente uma associação-sem-fins-lucrativos e não uma editora rege-se por regras diferentes.

Depois existe uma distinção que não deveria ser necessário fazer, mas como estamos em Portugal é necessário constatar o óbvio: uma associação-sem-fins-lucrativos não pressupõe uma redistribuição dos lucros pelos sócios, algo que sucede numa editora privada (como a Mmmnnnnrg) que visa o lucro, e pressupõe uma redistribuição dos lucros pelos sócios, accionistas ou proprietários.

Não existe nada que proíba uma associação sem fins lucrativos de ter lucro, como a Chili Com Carne tem.

O que faz confusão a muitos é pensar que com livros tão baratos e com descontos ainda conseguem fazer lucro para reinvestir… Mas é possível porque não temos gastos de estrutura como uma empresa.

A mim não me faz grande confusão uma associação-sem-fins-lucrativos dar lucro, em particular uma que se dedica a uma actividade (edição e comercialização de livros) que por inerência é uma actividade comercial que visa o lucro e que, neste caso, tem as benesses que são atribuídas pelo estado a associações-sem-fins-lucrativos, sem ter gastos com uma estrutura, ao contrário de empresas e até outras associações, para além de se reger por outras leis que empresas – sejam elas lojas ou livrarias – que operam no mesmo segmento de mercado: o mercado do livro.

Uma Associação não é o Presidente

Contrariamente à crença popular, a Chili Com Carne não é o Marcos Farrajota, embora a prática o contrarie. Em teoria, uma associação são os sócios e o presidente da dita o seu representante. Contudo, é sempre útil confundir o presidente com os sócios, para dar a impressão que os problemas que as pessoas têm com o carácter (ou falta dele) do presidente é uma crítica aos sócios/autores, mesmo quando é claramente direccionada a uma pessoa. O grande defeito dos sócios será o serem coniventes ou reverem-se na postura do seu presidente, algo que é distinto do seu gosto estético e não coloca em causa material editado, no máximo pode é questionar os critérios editoriais regidos por questões que vão para além da estética.

A Zona de Desconforto ter ganho o prémio de melhor álbum no AmadoraBD irritou profundamente algumas pessoas, não pelos autores em si, mas pelo Marcos Farrajota. Pessoalmente, fartei-me de rir. Sabia que o Marco ia proporcionar boas oportunidades para fazer humor, ele não decepcionou e tenho quase a certeza que até ao AmadoraBD ainda teremos boas oportunidades para nos rirmos mais um pouco.

A Editora do Presidente

Pode existir algumas pessoas que considerem estranho a parceria entre a Mmmnnnrg e a CCC, eu não acho, só questiono a ética! Em particular quando é o parceiro “privilegiado” da Associação.

Existem obviamente distinções que justificam a existência de dois projectos distintos mas aparentemente idênticos: a CCC é uma associação-sem-fins-lucrativos e a Mmmnnnrg é uma editora com fins lucrativos, como já tinha sido frisado anteriormente a nível jurídico e fiscal existe logo aqui uma diferença clara.

Depois, segundo informações de que disponho, existem mais algumas diferenças entre a Chili Com Carne e a Mmmnnnrg. Em primeiro lugar a CCC privilegia as antologias, algo que permite publicar vários autores e manter a clientela contente por se ter publicado uma história, é mais fácil publicar 10 histórias curtas de 10 autores diferentes que 10 álbuns de 10 autores diferentes. Em segundo lugar, a CCC só edita autores nacionais, enquanto a editora do presidente edita autores estrangeiros. Nada a assinalar, se nos esquecermos que essas edições que também são subsidiadas pelo estado (indirectamente) via CCC, quando a associação poderia subsidiar edições de sócios e outros editores nacionais. Para além disso, seria mais lógico uma associação investir o dinheiro das cotas dos sócios em trabalhos dos sócios, em vez de patrocinar a edição de trabalhos de autores estrangeiros que o emérito presidente prefere editar.

Vejamos, por exemplo, o caso do concurso “500 Paus”, que tendo só um vencedor teve, segundo a organização, outras obras de valor a concurso. Para mim seria mais lógico a associação investir nesses autores (e sócios!) que têm trabalhos supostamente com qualidade para publicar, em vez de estar a investir em autores estrangeiros. Não é uma questão de nacionalismo bacoco, mas não vejo a lógica de estar a utilizar o dinheiro dos contribuintes portugueses para financiar obras de autores estrangeiros de editoras comerciais. É que, afinal, os subsídios dos estados para associações-sem-fins-lucrativos deveriam servir exactamente para isso: a promoção de autores nacionais e não para a edição de autores estrangeiros em projectos comerciais dos presidentes das associações.

Segundo tenho conhecimento existe outra diferença, é que a CCC não paga direitos de autor (excepto na forma do concurso 500 paus) e oferece uns exemplares aos autores para eles venderem, enquanto a Mmmnnnrg já paga direitos de autor. Esta diferenciação entre o pagamento aos autores em géneros ou numerário até faz algum sentido. Afinal, a CCC é uma associação-sem-fins-lucrativos e transformar os autores em vendedores da associação é uma maneira de lhes pagar e os colocar simultaneamente a fazer publicidade à generosidade do seu presidente, o qual os publica graças aos os subsídios estatais e às cotas dos sócios. Já a editora do presidente, como é uma editora privada com fins comerciais, faz bem em pagar aos seus autores em numerário, sem os colocar a trabalhar como vendedores.

É uma distinção de tratamento que faz sentido, só poderá causar alguma urticaria se for verdade que o trabalho artístico (transformado em bens pela associação) servir depois realizar trocas por outros bens com congéneres estrangeiras para, posteriormente, vender aos autores, o que na prática significa estar-lhe a vender o trabalho “deles”. Obviamente, posso estar mal informado e a CCC não ter estas práticas que insinuam uma exploração dos autores em que o seu trabalho é utilizado para adquirir bens que depois lhes são vendidos, porque caso contrário camaradas, isto é o tipo de exploração capitalista de que nem o Tio Patinhas se lembrava!

Uma vítima do Comercialismo bárbaro

Obviamente que o facto de um projecto não ter fins lucrativos e o outro ter tem obrigado um autor a recorrer à CCC para editar os seus álbuns a solo, porque nem a editora de que é dono lhe pega! Estou obviamente a falar do mártir da BD independente, o excelentíssimo Marcos Farrajota.

Isto é um daqueles casos em que se pode dizer que o autor é tão mau que nem ele acredita em si próprio. O seu material a solo é publicado pela associação que assim, se der prejuízo, quem paga é o Estado e os sócios. Não o podemos recriminar por isso, Marcos Farrajota enquanto autor de BD é uma nulidade e até o Marcos-Editor o reconhece, remetendo as edições dessa nulidade de autor para o Marcos, presidente da associação!

É divertido imaginar as conversas entre o Marcos-Autor, o Marcos-Editor e o Marcos-Presidente enquanto tentam decidir qual é a maneira mais lucrativa de publicar um autor de qualidade tão duvidosa!

Sinergia Presidencial

Mmmnnnrrrg é um projecto editorial e comercial de criado por Marcos Farrajota em 2002 e partilhado desde 2010 com Joana Pires que, caso não estejamos a falar de outra Joana, é autora e designer de algumas publicações da Associação Chili Com Carne. Chamar à Mmmnnrrg de editora do presidente é algo abusivo, mas não deixa de ser verdade e explica a sinergia presidencial e parceria privilegiada que faz com que as duas andem sempre de mão dada, como o Sr. Presidente reconhece.

Já agora, peço desculpa por colocar Marcos Farrajota e projecto comercial na mesma frase, contudo creio que ainda não existe o estatuto jurídico ou real de editora-sem-fins-lucrativos.

Graças à esta sinergia presidencial, é também perfeitamente natural que o site da editora comercial do presidente esteja alojada no site da associação – não se deixem enganar pelo www, que a Mmmnnnrrrg é um subdomínio da Chili – uma benesse que parece não se estender a mais nenhum projecto, comercial ou não, de outros sócios. Mas até é natural, afinal – como já tinha indicado anteriormente – a associação até é capaz de não ter nenhuma despesa extra com isso e poupa-se uns cobres ao Sr. Presidente.

O Estado “mitra”

Na entrevista ao Universo BD, o presidente da Associação fez questão de salientar que esta tem uma despesa anual de cerca de 1,000 euros, mas esqueceu-se de salientar que essa despesa é derivada de vendas na ordem de outros milhares de euros, uma vez que estava a indicar a despesa com portes de correio.

A Chili Com Carne não tem qualquer publicação gratuita para sócios, pelo que as despesas de portes de correio que tem são derivadas das vendas que efectua. Como qualquer pessoa que já tenha realizado vendas por correio, mesmo não sendo associação ou editora, sabe: os portes de correio comem uma parte do lucro. No fim de contas, o que o Marcos Farrajota se está a queixar é de que não tem mais 1,000 euros de lucro por ano por ter de pagar portes de correio do material que os sócios (ou não sócios) compram à Chili.

Porém convém salientar, uma renda anual do estado na ordem dos 2000 euros por ano não é muito, mas ao fim de 20 anos são cerca de uns 40,000 euros que o estado já investiu na BD via Associação Chili Com Carne. Até é uma quantia simpática.

Grão a grão enche a galinha o papo.

Na “elucidativa” entrevista do ilustre presidente ao Universo BD existe uma dúvida que tinha – e nunca me dei ao trabalho de me informar, directa ou indirectamente – que não me foi esclarecida: as viagens das comitivas da Chili Com Carne a Malmö ou Angoulême, por exemplo, são pagas pela associação, ou pelo sócios/autores? Ou, neste como em outros casos, existem uns animais que são mais iguais que os outros?

Provavelmente, é melhor não saber a resposta, mas esquecendo esse pequeno detalhe, a verdade é que ao fim de 20 anos e de uns 40 mil euros, poucos editores editaram tantos autores nacionais como Marcos Farrajota, mas menos ainda receberam tanto dinheiro a fundo perdido de sócios e Estado para o fazer.

Os apoios estatais

Os incentivos que o Estado dá à edição de BD podem ser poucos, porém qualquer associação-sem-fins-lucrativos tem acesso derivado a esse estatuto a apoios e benesses que uma editora comercial não tem. A diferenciação jurídica e fiscal das entidades faz com que umas possam ter acesso a subsídios de entidades como o Instituto Português do Desporto e Juventude, que apoia o associativismo juvenil, mesmo que o presidente da associação seja um quarentão, basta que os corpos sociais tenham o número mínimo de “juvenis” requerido por lei.

Para além disso existem sempre outros apoios pontuais de outras instituições estatais, e até privadas, a que uma associação acede mais facilmente que uma empresa privada. O associativismo tem algumas benesses.

Todavia, existem ignorantes e pessoas de má fé que querem que se acredite que uma editora e uma associação-sem- fins-lucrativos se regem pelas mesmas normas, e têm os mesmo benefícios e encargos. Sendo que uma associação, para além da “injecção de capital” anual derivada da cotização de sócios, pode ter “injecções de capital” directas de apoio global às suas actividades, para além dos apoios pontuais a projectos específicos, sem contar com os lucros da edição e comercialização de obras quando se dedica à actividade editorial.

Curiosamente, é mais independente e alternativo em Portugal quem tem acesso aos benefícios associativos do que os pequenos editores ou autores que se auto-editam sem ter acesso a esses benefícios, por teoricamente uns não terem como objectivo o lucro, isto apesar de se dedicarem à mesma actividade, no mesmo ramo: mercado livreiro.

O motivo porque o Farrajota mete nojo

Se há patetas que acham que se pode trabalhar voluntariamente sem receber, só mostra como são escravos do sistema.

Farrajota in Universo BD

Realmente, o Farrajota tem razão, existem escravos do sistema e existem parasitas do sistema. O que realmente mete nojo nesta situação é que Marcos Farrajota gosta de se ver como um rebelde anti-sistema e existe quem vá na cantiga, quando na realidade é um dos rostos do sistema que é literalmente alimentado pelo sistema. Bibliotecário de profissão, Marcos Farrajota é um funcionário público pago pelo estado para trabalhar na área da BD, cuja actividade editorial é subsidiada pelo estado.

Este é o conceito de alternativo, DIY, independente, de alguns: arranjar um trabalho na função pública ligado à BD e publicar graças às cotas dos sócios e subsídios do Estado. É um conceito 100% anti-bedófilo!

More from Bruno Ð Campos
Sousa Lobo Vence os PNBD 2017
Os vencedores dos PNBD não surpreendem ninguém, e não é pela qualidade.
Read More
Leave a comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *