Interrompo a história do AmadoraBD porque, seguindo as conversas paralelas que atravessaram o aCalopsia nos últimos tempos, fui direcionado pelo Nuno Amado para um texto antigo dele que começava “O Pedro Mota…”. Fiquei um bocadinho assustado: será que estive na origem destas aprofundadas discussões sobre o comercial e o alternativo, ou sobre a moralidade do Marcos Farrajota? Mesmo se a discussão já arrefeceu, decidi que a melhor maneira de esclarecer isto era escrever uma crónica.
A primeira ideia a reter (que não é minha, mas do José Carlos Fernandes) é a de que, no que respeita à BD portuguesa, o “mainstream” é o alternativo. Entenda-se no sentido de que na BD portuguesa vale tudo: BD documental, ficção kingpiniana, história que o autor faz para o seu umbigo, etc. Ainda bem que existe esta variedade, e ainda bem que (de um modo geral) a BD portuguesa tem – seja qual for a variante – uma elevada qualidade média. Sendo assim, qual o interesse do conceito de “BD comercial”?
Para mim, interessa sobretudo na formação do leitor e na conquista de novos leitores. A BD tem de chegar aos leitores. Para um leitor que esteja perdido numa terra do interior, o contacto com histórias de BD tende a ser garantido mais pelas bancas do que pelas livrarias. Se um dia, por acaso ou porque a procurou, esse leitor entrar numa livraria de BD, aquilo que o rodeia não serão objetos estranhos, com um código de leitura estranho. Este leitor pode canalizar o interesse que tem aplicado nas bancas para outro tipo de leituras a que não tinha acesso. É nesta medida que me interessa que exista BD que pretende chegar ao maior número de pessoas.
Um bom exemplo desta BD é a popular BD italiana da Disney. Esta BD, que não pretende revolucionar a banda desenhada enquanto forma de expressão artística, garante, no mercado italiano, uma muito competente formação de autores, trabalho regular e reconhecimento. Os autores formados e iniciados na Disney podem sempre avançar para outro tipo de banda desenhada, e fazem-no de forma extraordinariamente habilitada (a série Sky Doll, de Alessandro Barbucci e Barbara Canepa, publicada em Portugal pela VitaminaBD, é um caso bem conhecido).
Acredito mesmo que o maior motor de desenvolvimento do mercado de BD num determinado país não é haver dinheiros para investir na banda desenhada, mas o facto de a BD chegar a um grande número de pessoas, e, nessa medida, ser reconhecida e popular. É a partir daí que os leitores e os autores ganham condições para o resto, diferenciando gostos, estilos e formas de abordagem.
À BD que quer chegar ao maior número de pessoas opõe-se tradicionalmente a visão daqueles que, não conseguindo chegar aos grandes canais de distribuição, pretendem integrar a BD no molho de todas as outras coisas que também não o conseguem. E é então que a BD é apresentada como algo de extraordinariamente complexo, designadamente muito adulto, urbano e, adivinharam, alternativo. Basicamente, o truque consiste em disfarçar um objeto de BD de objeto de (sub)cultura urbana (alternativa). E é neste exercício que é necessário diferenciar esta BD da outra, que será a comercial, destinada apenas a criancinhas, e cheia de defeitos. Esta BD será arte urbana, e a outra será apenas papel colorido. Faz parte deste truque do género “O Rei vai nu”, dizer que quem não gosta desta BD alternativa nada percebe de BD. Naturalmente, o truque só engana os que querem ser enganados.
Os leitores de BD sabem o que é a BD, e sabem distinguir a boa BD, que existe nas páginas da BD Disney ou no catálogo do Marcos Farrajota, da menos boa, que existe nos mesmos locais. Por isso, como leitor de BD, dispenso que me venham dizer que a BD é algo que não é, assim como dispenso editoriais sobre a moralidade do Marcos Farrajota. Vamos todos a Beja, mazé!
Por falar nisso, na próxima semana, ainda não retomo a história do AmadoraBD, para poder dar destaque a um dos convidados do festival bejense.
Subscrevo, de cima a baixo.
Olá, Pedro.
Um breve comentário para dizer o seguinte: na minha opinião, aquilo que diferencia o “mainstream” do “alternativo” não são os géneros ou domínios nos quais os objectos artísticos ou os objectos de arte se poderão inserir, mas o grau de complexidade que carregam. Ou seja, não é por um livro de BD poder ser inscrito no género de aventuras, ficção científica, etc., que fará com que ele seja “mainstream” ou “alternativo”, mas o nível de leituras que encerra. Posto isto, é óbvio que existe, a um nível epidérmico, pelo menos, uma espécie de cânone invisível feito de elementos, trejeitos e referências que se podem colar, de imediato, ao “mainstream” e ao “alternativo”, mas, tudo somado, o grau de sofisticação da obra é que lhe dará o passaporte para um campo ou outro.
Uma história de super-heróis como «Inner Fury” de Wolverine, de 1992, é “mainstream” ou “alternativa”? Um quadro de arte pop do Roy Lichtenstein, como o «Look Mickey!», de 1961, é “mainstream” ou “alternativo”? No primeiro exemplo, aquilo que seria, à partida, um banal livro de BD sobre uma personagem banal, como o Wolverine (não acho que o Wolverine seja nada de especial, desculpem lá…), torna-se um objecto superior que até pode ser considerado artisticamente significante, acabando por ser algo mais apreciado por um segmento reduzido de leitores, do que pelas massas fãs de Wolverine – logo poderá considerar-se “alternativo”? Quanto ao segundo exemplo, um quadro criado num contexto exclusivamente “highbrow” transforma-se num ojecto de arte acessível a todo o tipo de público, inclusive as crianças, logo poderá ser considerado “mainstream”?
Em suma: como teorizo, aquilo que diferencia o “mainstream” do “alternativo” não são géneros, contextos, molduras de referência, etc., mas a complexidade ou a simplicidade da mensagem que está a ser transmitida. Quanto mais simples for a mensagem, mais alargada será a percentagem de público que irá estar disposta a recebê-la. Em rigor, o “mainstream” é o simplório, o imediato, o veloz. Sempre foi e sempre será. Aquilo que é mais popular, aquilo que vende mais, aquilo que tem mais público é e será sempre aquilo que obrigar a um menor esforço de interpretação. Isso é flagrante na BD, na literatura, no cinema, na música, etc.
Um abraço,
David Soares
Repescando algo que o David Soares tinha mencionado noutro comentário: a designação de independente e comercial ser importada do cinema. Essa “importação” de terminologia não tem qualquer relação com a BD nacional, contudo tem com a BD, a norte-americana.
Durante décadas a BD norte-americana foi dominada (e em parte ainda é) por duas editoras: Marvel e DC, é no seio destas duas editoras que era possível ao autores desenvolverem o seu trabalho com uma remuneração fixa. Contudo nesta editoras sob o regime de WFH (work-for-hire) os autores eram meros funcionário numa linha de montagem onde os seu direitos – começando nos autorais e terminando nos financeiros – eram quase inexistentes.
A criação do autores pertencia à editora: o destino da obra era controlado pela editora; as temáticas e futuro dos personagens eram controladas pela editora. Os autores eram só uma peça da linha de montagem, que podia ser substituída em qualquer momento.
Adicionando a este facto, houve ainda o famoso Comics Code Authority, que veio declarar legalmente que a BD era para crianças e que não deviam ser abordadas questões, temáticas que pudessem ofender ou corromper a juventude.
Este decreto estatal criou um mercado onde a liberdade de expressão dos autores estava comprometida pelo capital (editora) que controlava o destino dos personagens e sobrevivência económica dos autores, e da estado (CCA) que limitava a liberdade criativa do material que podia ser criado.
Aquilo que as editoras independentes e alternativa procuravam era precisamente ter uma independência desse capital (das grandes editoras), explorar histórias que eram alternativas ao modelo vigente de super-heróis (em alguns casos até pretendiam era criar um império tal e qual a Marvel e DC). Aquilo que motiva os autores a irem para as pequenas editoras eram precisamente um desejo de independência criativa e de poderem explorar outro tipo de temáticas, sem esquecer manterem direitos financeiros sobre os personagens que criaram.
A BD “independente e alternativa” norte-americana nunca foi um movimento filosófico ou estético – obviamente alguns editores e autores possuem elementos em comuns – era unicamente um forma de definir os pequenos editores e nada mais.
Quem for ver as listagens/tops de vendas de editoras indy norte-americanas é confrontado com uma série de editoras que funcionam exactamente no mesmo registo de WFH das editoras não independentes: Marvel e DC. O independente e alternativo é só isso: outro nome para pequenos editoras, só em Portugal é que se assume que é uma maneira de descrever a BD produzida no eixo Fantagraphics/Drawn & Quartely.
O José Carlos Fernandes razão quando diz que em Portugal o “mainstream” é alternativo.
“Mainstream” tal como alternativo, comercial, ou independente não é sinónimo de qualidade (ou falta da mesma), limita-se a ser um descrição algo vaga, que neste caso: “mainstream”, é utilizado para descrever “a corrente principal” de produção dentro de uma área. Em Portugal a maioria da obra produzida por autores nacionais enquadra-se naquilo que em outros países seria considerado de alternativo, por ser trabalhos autorais que não tem temáticas ou objectivos claramente comercias. Sendo esse o motivo porque, à partida, seriam editados por pequenas editoras, com ambições comerciais mais reduzidas.
O mercado português é tão atípico que os “alternativos e independentes” operam no mercado à mais tempo que os “comerciais”. A Associação Chili Com Carne foi fundada por Marcos Farrajota (e uns amigos) em 1995; a Goody ainda não edita BD da Disney à dois anos sequer; a Panini não publica revistas de super-heróis da Marvel à seis meses sequer. O sistema “independente e alternativo”, vigente já funciona à quase 20 anos, os patos e os super-heróis só chegaram à dois dias…. Não foram eles que andaram a “boicotar” ou “impedir” o desenvolvimento de BD “não-comercial” nos últimos 20 anos, ou a opor-se à criação de um tipo de BD “menos bedófilia”….
O grande truque, é utilizar uma terminologia estrangeira – que nada tem a ver com o mercado nacional – para criar um falso confronto entre alternativos e comerciais, que só serve para alimentar conversas redundantes e manter um status quo de amadorismo (leia-se, não remuneração de autores), onde o “independente e alternativo” é meramente a esignação de uma coutada privada de meia dúzia de pessoas, não sendo qualquer tipo de movimento real de autores, ou editores, que procure alguma mudança do status quo.
Pior do que isso, o regime “independente e alternativo” é de tal modo obtuso e dogmáticos, que (em Portugal) uma obra como o Bone, de Jeff Smith, seria (e será) automaticamente classificado de “comercial”, “bedófilo” e para crianças….
É que esta obra – que é uma BD aclamada pela crítica e um dos grandes sucessos comerciais da BD independente e alternativa norte-americana – está nos antípodas do que por cá se chama de “independente e alternativo”, tem um desenho “perfeitinho” ao serviço de uma narrativa que é, na sua essência, uma história de aventuras.
Aquilo que por cá se chama de BD “independente e alternativa” não é nada mais que uma BD “à lá Chili”, que ignora e repudia tudo o que sai fora da sua estética ou, de outras cartilhas que nada têm a ver com factores criativos. O reino “independente e alternativo” que devia ser por natureza o terreno ideal para o desenvolvimento de autores-editores, e de pequenos editores, é precisamente o primeiro obstáculo a qualquer autor (ou editor) que pretenda desenvolver um projecto fora das normas aprovados pelo Presidente do Status Quo.