A Lei de Canon, por Mark Millar, Kek-W e Chris Weston

Canon Law insere-se num tipo de personagem tipicamente britânico, criado à medida do adolescente rebelde que vive dentro de nós. Um defensor hiperviolento de leis inflexíveis, crente numa ideia de justiça inabalável, a espalhar balas equitativas em mundos decaídos e paisagens apocalípticas. Um personagem que se situa entre o institucionalismo de Judge Dredd, o moralismo de Marshal Law ou o absurdismo de Lord Horror, com uma forte dose de ironia subversiva. Em Canon Law o apocalipse é religioso e não político ou tecnológico. Deu-se o dia do juízo final, os falecidos de todas as épocas regressaram à vida e… não se passou mais nada. A Terra ficou atravancada com regressados à vida a acotovelarem-se nas cidades. Deus parece ter-se eclipsado, e resta Canon para pregar a fé divina com extremo prejuízo.

Esta edição brasileira da Mythos republica duas histórias originalmente serializadas na 2000AD. Na primeira, assinada por um estreante Mark Millar, Canon acompanha o Dr. Watson e um Mycroft Holmes revisto como psicopata assassino, atravessando os planos do além à caça de Sherlock Holmes e Moriarty, arqui-inimigos que após regressar à vida decidem suicidar-se para dar caça a um Deus ausente. O divertimento de abater anjos a tiro de metralhadora de alto calibre depressa se desvanece quando deparam com um céu devastado por uma invasão demoníaca e um Lúcifer sentado no trono divino, convencido que assassinou a divindade. Ou não, como se comprova quando Deus reaparece e se decide a meter ordem na bandalheira. Apenas a fé inabalável de Canon o impedirá de recriar o universo de raiz, algo que seria pouco saudável para humanidade. Na segunda aventura, com argumento de Kek-w, os segredos da matéria escura que permeia o universo ganham uma dimensão espiritual tenebrosa que permitirá, com ajuda das balas certeiras de um demente Canon e da ciência combinada de Einstein, Tesla e Verne, libertar a sagrada mãe original de todos os deuses e universos, aprisionada pelas pulsões machistas das divindades adoradas pelo homem. Essencialmente estas histórias são boas desculpas para escatologia à bala em registos de ironia absurdista, distorcedores em avalanche de lugares comuns e provocadores pela forma violenta como se apropriam de iconografias de bondade intocável. Como escrevi mais acima, são histórias que deixam feliz o adolescente rebelde que vive dentro de cada um de nós, contadas no ritmo rápido imposto pela forma de edição da 2000AD.

Transversal a todas as histórias está o fabuloso traço barroco e surrealista de Chris Weston, com cujo estilo inconfundível me cruzei pela primeira vez quando descobri a 2000AD com Indigo Prime. Esta série também costuma ser um primor de histórias convolutas que deixam o cérebro exausto daquela maneira tão agradável aos amantes de ideias intrigantes. Weston dá vida à terra e aos infernos, com um olhar que invoca horrores iconográficos directamente inspirados em Dali e Bosch ao mesmo tempo que sublinha a ironia hierática dos personagens. É o seu traço que dá qualidade à série. Se as narrativas são divertimento simplista, é na estética que Canon Law deslumbra.

Fica-se com a sensação que Canon Law é uma piada à custa de Judge Dredd. De facto, se trocarmos o futurismo distópico de MegaCity One e a fé cega na lei pelo juízo final abandonado e a crença na justiça divina Joe Dredd poderia perfeitamente assumir o papel deste diácono Canon. Hiperviolento e muito bem ilustrado, as suas aventuras asseguram uma boa dose de diversão escatológica. Como diria aos seus droogs Alex, esse outro personagem escatológico saído do futurismo distópico de Anthony Burgess, não há nada como uma dose da boa e velha ultraviolência.

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A Lei de Canon

Autor: Mark Millar, Kek-W, Chris Weston
Editora: Mythos
Páginas: 100, revista
PVP: 8 €[/box]

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