Mort Cinder de Oesterheld e Breccia pela Levoir

Uma das maiores obras de uma dupla fundamental da banda desenhada mundial, está agora editado em Portugal na integra.

Criada em 1962, por Hector Oesterheld e Alberto Breccia, Mort Cinder rapidamente atingiu uma popularidade enorme, sendo considerada uma das maiores obras de banda desenhada argentina, e uma das mais importantes no panorama da BD mundial. A série começaria em Julho de 62 na revista Misterix, mas a personagem que empresta o nome à obra apenas surgiria em Agosto, já que a primeira história da série é inteiramente dedicada a um prólogo que apresenta a personagem de Ezra Winston, um antiquário cuja vida será profundamente afectada pela chegada de Mort Cinder e da sua estranha imortalidade.

Um antiquário que tem as feições do próprio desenhador Alberto Breccia, mas envelhecidas, prefigurando de modo perturbador essa viagem pelo tempo de que Mort Cinder é um símbolo.

Alberto Breccia, o desenhador, e Hector Oesterheld, o argumentista, são dois dos maiores nomes da BD mundial. Oesterheld é justamente considerado como talvez o maior argumentista de BD de língua espanhola, tendo trabalhado com inúmeros desenhadores numa das épocas mais ricas da banda desenhada sul-americana.

Hector Oesterheld

Hector foi para a história em banda desenhada aquilo que Gardel foi para o tango: marcou um antes e um depois na forma de escrever argumentos. Para mim, foi o inventor do argumento de banda desenhada na forma moderna.
Enrique Breccia

Nascido em 1919, Oesterheld estudou geologia, mas cedo percebeu que o que queria era escrever, e inicia a sua actividade como argumentista de BD em 1951. Logo no princípio dessa actividade colaborará com Hugo Pratt, na altura radicado na Argentina. Com ele assinará várias séries, como Ernie Pike ou Sargento Kirk.

Oesterheld fundaria em 1957 a Editorial Frontera, onde publicaria alguns dos seus maiores sucessos, entre as quais a série Sherlock Time, a sua primeira colaboração com Alberto Breccia, e sobretudo o grande sucesso que foi na altura a série El Eternauta, desenhada por Solano López. Já depois do fecho da sua editora, Oesterheld colaborará com várias revistas, entre as quais a revista Misterix. Aqui desenvolverá a série Mort Cinder, com Breccia, bem como muitas outras em colaboração com grandes nomes da BD sul-americana.

À medida que avançavam os anos 60, Oesterheld foi lentamente tingindo a sua obra cada vez mais com as suas convicções políticas, e a publicação em 1968 de uma biografia de Che Guevara em BD motivou os seus primeiros dissabores com o governo militar da altura, que proibiu a venda do livro e confiscou os originais da obra. Depois do início da ditadura militar, Oesterheld juntou-se aos Montoneros, um movimento guerrilheiro que lutava contra a ditadura, e acabou por se tornar no seu chefe de imprensa.

Novas edições de livros de Oesterheld, cada vez mais comprometidas com a sua luta contra os militares argentinos, entre as quais uma nova versão de El Eternauta muito comprometida politicamente, que mostrava o Eternauta como um chefe revolucionário que liderava uma revolta contra um governo opressivo (o que aliás motivou alguns problemas com Solano López, o desenhador, que não partilhava dos mesmos ideais) mantiveram Oesterheld na mira da ditadura.

Em Abril de 1977, Oesterheld desaparece, sequestrado pelas forças armadas, numa altura em que as suas quatro filhas tinham sido raptadas e assassinadas. Ainda hoje se desconhecem as circunstâncias, local ou data exacta da sua morte, mas supõe-se que morreu em 1978. Foram muitas as vozes que se levantaram contra a ditadura para prestar homenagem a Oesterheld, e no presente volume incluímos uma belíssima imagem realizada pelo desenhador Félix Saborido, que mostra as personagens criadas pelo argumentista a desfilar pela rua empunhando um cartaz que clama “Onde está Oesterheld?”, na pg. 229.

A sua obra sempre se pautou por um grande humanismo, mostrando personagens vivas e com as qualidades melhores do ser humano (e algumas das suas fraquezas), lutando contra a injustiça ou as circunstâncias adversas, sem cair em maniqueísmos ou excessos de idealismo.

Existe um interessante documentário sobre Oesterheld, intitulado H.G.O., realizado por Victor Bailo e Daniel Stefanello, de 1999, que inclui numerosas entrevistas e apresenta a biografia do autor. O título é a abreviatura de Héctor Germán Oesterheld.

Alberto Breccia

Há quem conte para viver e ele fez isso – e muito bem – durante muitos anos; outros vivem apenas para contar, ou contam depois o que não souberam viver. Alguém tem de viver para contar o que os outros fizeram. No seu caso, exemplar, morreu para que pudéssemos contar como viveu até às últimas consequências o que contava.

Juan Sasturain

Nascido no Uruguay em 1919, Alberto Breccia acabaria por fazer da Argentina a sua segunda pátria. Durante alguns anos sobreviveu como ajudante num matadouro a cortar tripas, mas quando regressava a casa, passava a noite a desenhar, e os tempos livres à procura de trabalho como artista.

A partir do início dos anos 1940 começa a desenvolver uma actividade regular de desenhador para várias revistas, trabalhando com vários argumentistas. Mas será em finais de 1950 que criará com Oesterheld a série Sherlock Time, considerada a sua primeira obra de maturidade. Conta-se que o salto qualitativo que a sua obra teve naquela altura foi em grande parte uma reacção a uma crítica do seu amigo Hugo Pratt: “Na verdade, és uma puta barata, porque estás a fazer merda quando podias fazer muito melhor.”

Nos anos 1960 começa também a internacionalização, com os primeiros trabalhos para o mercado britânico, através da editora Fleetway. A sua evolução vai sendo notória. Em 1962 cria com Oesterheld Mort Cinder, e assina também com ele a biografia de Che Guevara que tantos problemas causou.

Nos anos 1970 dá-se o salto para o mercado italiano; uma das suas primeiras obras é uma notável adaptação dos contos de Lovecraft, Os Mitos de Cthulhu, com o argumentista Buscaglia, em que atinge um modo expressionista brilhante. Desde então, o seu trabalho atinge grande fama e nunca mais deixará de editar para inúmeros mercados, salientando-se uma série de obras para o argumentista Carlos Trillo, com quem manteve uma relação muito duradoura.

Todos os seus filhos, Patricia, Cristina e Enrique, foram autores de banda desenhada. Faleceu em Buenos Aires em 1993.

Mort Cinder é sem dúvida uma das maiores obras desta dupla fundamental da banda desenhada mundial, e uma das mais conhecidas. E após ter sido editado parcialmente pela ASA em 2005 está agora disponível numa edição integral da Levoir, na colecção Novela Gráfica.

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