A estreia do filme Snowpiercer (설국열차, “Sôlguk Yôltcha”, literalmente “O comboio no país da neve” de 2013), de Bong Joon-ho (The Host), ainda demorará alguns meses a chegar ao circuito comercial, mas haverá alguns espectadores portugueses que o terão visto no IndieLisboa. O facto de ter já estreado na Coreia há quase um ano, e existir já uma edição em DVD e blu-ray francesa (mas não coreana), leva-nos a pensar que a globalização e a celeridade garantida pelas novas tecnologias nem sempre é garantida.
Como se sabe, este filme é baseado num livro de banda desenhada (em três volumes, mas a eles voltaremos) criado pelos esforços conjuntos de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette, e que remete aos anos 1980 e 2000. Dada a proximidade do filme, a Casterman publicou um álbum integral em capa brochada, rapidamente seguido por um volume que reunia subsídios para a sua história e complementos em torno da versão fílmica, escrito por Nicolas Finet e intitulado Histoires du Transperceneige, e, finalmente, um livro em capa cartonada que reunia a obra integral e algum do material de Histoires.
Na verdade, apesar de agora este livro ser apodado de “clássico”, “incontornável” e o quererem elevar a um estatuto especial, ele foi “esquecido” durante muito tempo, e é a sua fama cinematográfica que leva agora à sua recuperação.
Fura-Neves
A obra de banda desenhada consiste em três álbuns, mas toda a história da sua fabricação original atravessa uma complexa história atravessada por colaborações falhadas, mortes e tentativas de reestabelecimento. Algumas das informações de que daremos conta aqui são encontradas e debatidas ao pormenor no volume Histoires du Transperceneige, de Nicolas Finet, que debate o contexto editorial e histórico da banda desenhada onde o primeiro capítulo da obra surgiu: início dos anos 1980, a primeira vida da imprescindível e seminal revista (A Suivre), a emergência de uma nova linha de desenvolvimento “literário” da banda desenhada francófona, à época. Recordemos que Finet já havia dado à estampa um seu estudo sobre vários aspectos deste “capítulo” da história da banda desenhada no eixo franco-belga, com a monografia sobre a própria revista (A Suivre), em cujo número 57, em 1982, surgiria a primeira parte desta obra.

Não é uma hipérbole considerar a (À Suivre) como um projecto editorial que viria transformar o panorama não apenas editorial mas criativo na banda desenhada francófona do seu tempo e, quiçá, influenciando a produção noutras paragens. O que não significa que ela também não tenha sido herdeira de tendências e forças que se haviam formado noutros locais, como Itália (sobretudo as “gémeas” Linus/Charlie Mensuel) ou Estados Unidos (os underground comix).
Além disso, pelo menos para uma geração que estará agora na casa dos 40 e 50 anos, ela foi uma montra de uma “nata” da sua época.
Porém, também há que colocar alguma água na fervura. Afinal, a revista belga (À Suivre), talvez um pouco temerária ou mesmo intempestivamente, poderá ter imaginado que viria a conquistar um papel que acabou por não se verificar verdadeiramente.
“Com toda a sua densidade ‘romanesca’ a (À Suivre) será a irrupção selvagem da banda desenhada na literatura”, rezava o editorial inaugural de Jean-Paul Mougin. E, com efeito, apesar da revista ser herdeira de uma curva que vinha tendo lugar desde os anos 1950 com banda desenhada orientada para um público adulto (em que se podem identificar fases tal como a “leitura dupla” infantil-adulta, de um Astérix ou Lucky Luke, depois as sátiras soixante-huitard de Gotlib e companhia, assim como a sexualização da banda desenhada, com Barbarella e outros títulos da trupe Losfeld), é nela que se verificam os factores que potenciam e tornam possível a criação de (ou atreitas às) narrativas em banda desenhada que não se pautam pela lógica da “série” (independentemente de percursores “literários” da banda desenhada, como Régis Franc, Forest, Baudoin): liberdade em relação ao número de páginas, aos temas e géneros, aos estilos gráficos, etc.
Além disso, o factor económico era igualmente decisivo: os autores eram pagos pelo trabalho publicado na revista e depois novamente quando (se) saísse em álbum, o que tornava a empreitada mais sustentável e rentável.
Mas independentemente desse desejo de legitimação cultural, que tantos autores buscaram pelo emprego de termos alternativos a banda desenhada (graphic novel, literatura desenhada, picture novella, etc.), o próprio Mougin compreendeu rapidamente – como se pode ler no livro que Finet dedicou à revista – o beco sem saída em que se metia nessa senda quase exclusiva. Se os primeiros números trouxeram à estampa obras-primas desse veio “literário” como Ici-Même de Forest e Tardi, H.P. et Giuseppe Bergman de Manara, Silence de Comès, Tendre Violette de Dewamme e Servais, ou as obras de Muñoz e Sampayo, Hugo Pratt e de Chantal Montellier, rapidamente se decidiu Mougin a explorar uma outra via.
É assim que se chega a uma literatura “na sua função recriativa” abrindo as páginas da revista a géneros de aventuras e mais populares. Dois desses géneros são o noir e a ficção científica, discutivelmente os dois géneros que se amalgamam em Transperceneige (mais uns quantos elementos de outras paragens). Se se pode dizer que Pratt e Bourgeon são herdeiros directos das “grandes aventuras” do século XIX, mas as inflectem numa escala psicológica mais profunda, que F’murr e Comès exploram fantasias medievais para chegar a mundos imaginativos coesos, e que Muñoz, Sampayo e Tardi exploram o noir para radiografias sociais, o caso de Transperceneige se restringe ligeiramente à sua formulação. Dito de outro modo, Transperceneige, e a (À Suivre) em geral, podem ser vistos como um regresso a estruturas literárias mais tradicionais, por oposição aos altos voos experimentais do Nouveau Roman.
Todos os autores envolvidos nesta série já haviam trabalhado ou trabalhariam em géneros bem distintos entre si. Jacques Lob, que podemos considerar como o pai do projecto, começara como desenhador, mas também escreveria argumentos com alguns dos mais decisivos artistas do seu tempo. Foi ele quem inventou o Superdupont com Gotlib, escreveu livros memoráveis com Pichard, e também trabalhou com Baudoin em Carla, em que uma condutora de táxis se cruza com fenómenos fantásticos para se criarem histórias de profunda emoção.
A proposta primeira para Transperceneige, que foi sendo cultivada ainda antes sequer da existência d’(À Suivre), seria trabalhar com Alexis, um dos autores mais famosos da Fluide Glacial, colaborador de longa data de Gotlib e também autor de algumas das mais absurdas e hilariantes obras saídas daquela revista. Se a escrita era de Lob, a criação era conjunta, e haveria algum grau de humor, fórmulas de heroicidade, e uma direcção, quem sabe, determinada. Dezasseis pranchas estavam feitas e o projecto estava relativamente encaminhado, quando Alexis morreu repentinamente. Lob entrou num momento algo depressivo, e não pensava sequer em regressar a este projecto, apesar das insistências de quem o rodeava.
O surgimento da revista proporcionou a refundação da história, mas os primeiros passos nessa possibilidade foram algo falhos. Por exemplo, houve um momento em que a dupla Claude Renard, então professor numa escola de banda desenhada, e um seu jovem aluno, François Schuiten, fizeram mesmo testes para serem os artistas da série de Lob, mas essa possibilidade não se verificaria. Todavia, talvez tenham sido essas experiências que criariam a semente do álbum Le Rail – ainda hoje notável, a nosso ver – que a dupla criaria uns anos mais tarde (e Schuiten regressaria à fantasia dos comboios com La Douce). Em Histoires, encontraremos exemplos destas tentativas de Alexis, Renard e Schuiten.
Transperceneige seria então desenhada por Jean-Marc Rochette, o qual, por sua vez, é conhecido entre nós sobretudo com o seu Edmond le cochon (escrito por Martin Veyron, publicado em português na Animal). Rochette e Lob lançaram a história n’(A Suivre), em 1982, e em 1984 seria lançado em forma de livro, na prestigiante colecção Les Romans (À Suivre). Em princípio, esta tratar-se-ia de uma história individual, não havendo propriamente pistas sequer para a sua continuidade, mas essa noção viria a formar-se nos anos seguintes… Porém, Lob morreria. Ainda assim, essa tal ideia de dar continuidade ao Transperceneige havia-se formado e o próprio Lob discutiria essa possibilidade com Benjamin Legrand. Este tinha, para além de uma carreira nas indústrias do cinema e do audiovisual, também havia criado Tueur de cafards , com Tardi. Legrand tornou-se o “herdeiro” da saga e no final dos anos 1990 iniciaria, com um Rochette “reinventado”, o o segundo volume de Transperceneige, e ao seu universo narrativo, ainda que não com as personagens originais ou sequer a locomotiva em si. Por ocasião do lançamento do segundo volume, o primeiro, de Lob, seria re-publicado, para “recordar” os leitores dos elos perdidos…
Apesar do artista ser o mesmo, em termos biográficos, existem diferenças fulcrais. Se o primeiro volume mostra o desenho de um jovem Jean-Marc Rochette, um trabalho sólido de linhas finas e muitas tramas, perfeitamente adequado e integrado no seu tempo ao lado de outros autores naturalistas, no seu regresso para a segunda parte já se vislumbra mais claramente as suas pesquisas pictóricas, com massas de tinta e sombras mais devedoras à pintura que ao desenho, ambientais e fluidas. Apesar de ter havido um afastamento momentâneo para explorar precisamente a pintura, entre 1982 e 1999 Rochette já havia “regressado” à banda desenhada, e com Benjamin Legrand, curiosamente.

Transperceneige
Não existe uma obrigatoriedade de ler os três volumes para perceber “uma história”. Se o primeiro, de Lob, cria a premissa e o ambiente, ele é auto-suficiente e não precisa da continuação escrita por Legrand para ser desfrutada. Por outro lado, também uma concentração apenas nos livros de Legrand não sofrem necessariamente pela ausência do de Lob. Pois se existem pontos narrativos ou diegéticos que unem as duas histórias, elas são suficientemente independentes, e se socialmente pretendem explorar aspectos unificados, o “humor” (não no seu sentido de cómico mas de essência líquida que a atravessa) não é idêntico.
No que diz respeito à adaptação fílmica, podemos dizer que Bong aproveita a trama de Lob e os pormenores mundanos de Legrand, assim como a visualidade do Rochette maduro.
Num futuro mais ou menos distante apenas numa questão de décadas, os abusos industriais, erros ecológicos e hubris humana levaram a uma nova Idade do Gelo, que destruíram a vida na superfície da Terra, agora gelada. Todavia, um gigantesco e sofisticado comboio de luxo, o Transperceneige, movido por um misterioso engenho de moto perpétuo, encerra no seu corpo os últimos resquícios da humanidade. Estratificados de acordo com as classes das carruagens, os vagões de trás levam a classe mais pobre e quase abjecta, acumulados que nem animais, enquanto que os vagões da frente, mais espaçados, acomodam a elite. Quando mais próximo da locomotiva, do coração e cérebro do veículo, mais próximo se está do topo da pirâmide.
A trama é relativamente simples. Um dos habitantes dos vagões infernais, Proloff, está farto da limitadíssima vida que leva, e decide, aproveitando uma estranha aliança com Adeline, uma “menina bem” da frente com boa vontade para com a população desfavorecida de trás intenta subir todo o comboio. Nesse sentido, há uma “ascensção” mas apenas em termos de comodidade material, uma vez que moralmente não o é, já que também se vão descobrindo os “pecados” das outras classes. Esta estrutura será repetida pelos dois seguintes capítulos escritos por Legrand, num segundo veículo.
Toda esta idea de comboio, vagões e locomotiva compõem uma metáfora claríssima. Ou melhor, uma alegoria, já que cada uma das partes ou elementos pretendem ser vistos como ecoando elementos similares na nossa sociedade. Cada vagão corresponderia a um particular círculo social, a estratificação e mesmo hierarquização no comboio reflecte aquela que pauta (ainda que “invisível” a nossa sociedade, e por aí fora…
Se no caso do primeiro volume a tecnologia não deixa de ser fantasiosa (como todos os projectos que alguma vez envolveram a noção de moto perpétuo, que é impossível à luz da ciência actual), o tratamento dos ambientes é bem pelo contrário bastante prosaica, o que lhe incute alguma gravidade e palpabilidade. O próprio estilo de Rochette então estava próximo de Montellier, por exemplo, num tipo de realismo cru, perfeitamente adequado ao quase-niilismo de Lob. Se a trama do primeiro volume é forçosamente linear – literalmente até, pois é um caminhar em frente até à locomotiva -, o mais significativo está no constante desdobramento do protagonista, Proloff, que se ocupa o papel principal, em termos morais vai revelar-se, não apenas falho, como corruptível e, por isso, humano. A inexorabilidade do movimento do comboio está assegurada, mas não a salvação da humanidade. Não há contornos nem de utopia mas tampouco de distopia: trata-se tão-somente da natureza humana, menos do que abjecta, apenas ridiculamente impotente.
As opções de Legrand e do segundo Rochette são mais espectaculares. A tecnologia torna-se mais fantástica, se não mesmo fantasiosa, as transformações sociais que operam nesse outro veículo, o Crève-glace, são também mais dramáticas, com a emergência de um culto à máquina, formas novas de alienação dos passageiros, intrigas de poder político e militar, etc. Mais, algumas dessa opções narrativas permitem que se possa explorar o exterior congelado, de forma a entender de facto a impossibilidade de um regresso a uma “vida normal” na superfície do planeta, apesar das constantes pistas que alimentam essa ilusão. Existe um novo par de protagonistas nesta segunda aventura, Puig, o relutante herói masculino, e Val, a menina-bem com boa vontade e criativa (são quase decalque das anteriores de Lob), mas a intriga em que estão envolvidas é menos decidida e menos ressoante que a original. Talvez seja essa a razão que levou, como já afirmámos, o realizador coreano a aproveitar antes a estrutura narrativa do primeiro volume, mas usando todas estas transformações e classes sociais de Legrand na ambientação da sua versão.
Como é de esperar, portanto, a obra em geral aborda óbvias questões éticas, a um nível social, colectivo, no sentido em vermos replicadas (e até algo hiperbolizadas de forma simplista) certas hierarquias clássicas, mas também ao nível das personagens individuais, sobretudo Proloff e, depois, Puig. Não se trata tanto de os descrever como “anti-heróis” o que implicaria desde logo uma finalidade positiva dos seus papéis, e uma distribuição moral entre as várias personagens. Trata-se antes de entender os paradoxos lançados, e jamais resolvidos através de formulações simples, pela presença e agência desta rede de personagens.
Em termos de agenciamento dos olhares e composição, há também algumas diferenças entre o volume Lob-Rochette e o Legrand-Rochette. No primeiro caso, temos por exemplo composições que mostram vinhetas no topo da página, mostrando uma paisagem desolada e branca, e com apenas um balão de fala saindo do seu interior, como se os autores encontrassem nessa técnica recorrente uma forma de assegurar os leitores de que tudo estão ali enclausurado, no comboio. Isto terá a ver igualmente com a regularidade dos capítulos da revista, claro está e a necessidade de retomar certas contextualizações. Mas também tem repercussões na própria narrativa, e estamos em crer que Bong, Joon-ho foi sensível a esta questão, pela economia da sua filmagem, como veremos.
São poucos os momentos, em Lob-Rochette, em que nos é dado a ver o mundo ora exterior ora (temporalmente) anterior, ainda que haja brevíssimas excepções: o vídeo de publicidade do próprio comboio, os manuais, e algumas referências verbais. Depois, com os dois livros seguintes escritos por Legrand, dá-se uma expansão do universo diegético a uma segunda locomotiva, como vimos, mas também a incursões no mundo gelado. E se essa perspectiva aumenta, apenas serve para confirmar o desespero em pensar nela.
Por várias razões, e independentemente da publicidade que agora se faz, o Transperceneige não ocupou o mesmo lugar no imaginário contínuo que outros títulos, sobretudo aqueles que viveram um ciclo económico mais normalizado de série. No campo da fantasia pós-apocalíptica, por exemplo, estamos a pensar sobretudo em Simon du Fleuve de Auclair ou em Jeremiah de Hermann, em que ambas exploram uma “regressão” civilizacional após um qualquer desastre à escala global. Mas mesmo assim, a sua recuperação em termos cinematográficos permitirá uma revisitação mais nobre dos textos originais, e se os capítulos de Legrand acabam por se inscrever de uma forma mais ou menos normalizada no campo da banda desenhada, o título original de Lob ainda pode ser visto como uma grande conquista narrativa de uma voz desesperada e totalmente desencantada com a possibilidade da salvação política, ecológica e moral do homem.
Snowpiercer
Apesar de se tratar de uma adaptação – e que salutar é vermos este trânsito internacional, intercontinental e até mesmo temporal, entre a banda desenhada e o cinema, bem longe das “propriedades” mais imediatas – , procuraremos falar do filme algo isolado da sua relação intertextual, e não revelarmos segredos que estraguem a fruição do mesmo. Não havendo spoilers, há porém juízos de valor.
Em contraste com quase todas as fantasias disticas de um futuro pós-apocalíptico mas ainda assim tardo-capitalista do cinema recente – Elysium, a nova versão de Total Recall, The Hunger Games e, gasp!, Land of the Dead, Bong, Joon-ho não tenta criar apenas uma paisagem para uma moralidade, no seu sentido teatral, pejado de alegorias e “valores universais” O realizador não tem receio dos contornos complexos e políticos que a ficção científica pode atingir, e sem ser necessário aqui utilizar argumentos fracos sobre a “boa” ficção científica ou coisa que o valha. A utilização de instrumentos de um género em particular não significa nada em termos da sua completude moral, social ou estética. Além disso, Bong é um realizador que tem demonstrado um vivo interesse em explorar variadíssimos géneros, sobretudo para se centrar nas formas como o ser humano responde, no seu mais íntimo, a adversidades extremas.
Um crítico cinematográfico compara a estratificação social do comboio, e o seu tratamento fílmico, com o que ocorre em Titanic, e é bem notada a semelhança entre ambos os veículos e os seus destinos respectivos, ainda que o preço do comboio seja maior em termos da humanidade do que do barco. A referência maior Metropolis também poderia ser vista como um termo de comparação, mas aqui abrir-se-ia um problema gravoso e aberto a toda uma crítica política contra o que vamos dizer, como se se tratasse de uma justificação liberal da opressão: é que no filme de Lang, as classes mais baixas trabalhavam, ainda que num regime de quase-escravatura. Os seus corpos, portanto, eram fonte da energia que sustentava a sociedade de que eram parte, mesmo que sem os privilégios de cidadania. O mesmo poderá ser dito de Matrix, ou até de Hunger Games, etc., ainda que as explorações destes outros títulos sejam superficiais. No caso de Snowpiercer, as populações dos vagões de trás não contribuem de forma alguma para o funcionamento ou aparelhagem do comboio, a não ser os momentos em que os vemos a serem “escolhidos” para algum entretenimento das classes privilegiada e um outro pormenor, crucial, que se descobrirá no final do filme (mas algo próprio e que até põe em questão todo o edifício fictício-científico).
O problema é que se Bong tem essa intenção geral, no entanto, a caracterização das personagens é falha: os “pobres” são todos sujos mas, pelo menos aqueles que seguimos, são nobres, corajosos e abnegados, ao passo que os ricos – é difícil entender se existe uma “classe média” para além dos empregados que vemos a trabalhar em cada secção – não são mais que meras caricaturas, sobretudo aqueles a quem no fundo é dado mais algum tempo na acção (a ministra Mason, a professora das crianças, os que festejam o “Ano Novo” na última carruagem-discoteca – numa cena algo ridícula e reminiscente da cena do “Boom Festival” em Matrix Reloaded). A nenhum deles é dado espaço para se desenvolver, e acabam por jamais se redimir dessa caricaturalidade.
Até mesmo todo o discurso da personagem Mason, desempenhada por Tilda Swinton, que fala da justiça e do “lugar social apropriado” de cada um, traz toda a metáfora do comboio para o campo da literalidade, empobrecendo dessa forma a capacidade de interpretação dos espectadores. E a cena toda parte de um aproveitamento da realidade: alguém lhe lança um sapato à cabeça, como o repórter iraquiano, Muntadhar al-Zaidi, havia feito ao Presidente G. W. Bush, mas o castigo é corpóreo, sumário e imediato, de forma a sublinhar ainda mais a literalidade da metáfora. Este é apenas um dos vários temas “do (nosso) momento” que convergem na tessitura narrativa do filme, mas as suas verdadeiras consequências e maquinações no mundo real não encontram o mesmo tipo de peso no filme.
No fundo, as classes sociais são demasiado nítidas no filme, e não há negociação alguma entre elas, mas simples passagens claras que coincidem com os vagões. A banda desenhada, mais uma vez, prova a sua maior ambiguidade e riqueza psicológica em relação ao filme (o que ocorre com uma boa parte das adaptações dos últimos anos). Ainda assim, em comparação com outros filmes que poderiam ser arrolados numa mesma categoria, sobretudo americanos, Snowpiercer não é tão ridículo quanto eles na sua busca por “relevância”, mas ainda assim não deixa de ser redutor e cair numa fantasia. Elysum é um caso gritante de falhanço nessa tentativa, Gattaca talvez um caso mais feliz.
Snowpiercer, tal como dezenas, se não mesmo centenas, de fantasias da cultura popular (literatura, banda desenhada, cinema, televisão, etc.) cria inimigos implacáveis e desprezíveis, sem qualquer outra dimensão senão a sua crueldade. É a fantasia de sempre: criando-se inimigos tão terríveis quanto os “Nazis” (uma palavra mágica que retira a necessidade de se lavrarem e desenvolverem as personagens), projectamo-nos no papel dos heróis que encontram imediata justificação para as suas acções, por mais violentas, cruéis ou finais que elas possam ser. Infelizmente, essa fantasia também torna algo impotente a possibilidade de pensarmos nos papéis e acções que efectivamente podemos tomar, na nossa própria realidade social e hodierna, contra todos os pequenos gestos e injustiça social que nos rodeiam. Isto é, mais rapidamente imaginamos que faríamos parte da Resistência Francesa ou de valentes libertadores de escravos no passado, do que nos envolvermos com projectos mínimos de solidariedade política e social no nosso país…
No entanto, a diversidade étnica e linguística (aceitamos que 17 anos fechados num comboio não conduziria a um crioulo comum?) do filme tenta mostrar um passo numa direcção um pouco mais complexa, ainda que, mesmo sendo um filme sul-coreano, os principais “heróis” sejam caucasianos anglófonos e cada um dos outros, conforme as suas diferenças, ocupam papéis específicos e instrumentalizadores.
Na versão fílmica, não só o papel de Curtis (o avatar de Proloff/Puig, desempenhado por um credível e contido Chris Evans) é moldado de acordo com essas categorias actanciais e morais mais normalizadoras, como toda a fantasia política é maniqueísta. A própria recusa inicial de Curtis é fórmula (corresponde ao segundo passo da “Viagem do Herói” de Campbell, ainda hoje a Bíblia dos screenwriters de Hollywood e alhures). Quando ele faz o seu primeiro sacrifício para capturar a ministra, há uma notória inversão de cenas idênticas noutras narrativas, mais negativista, mas mesmo assim confirma-se esse papel. E mesmo com aquilo que aprendemos na progressão da narrativa e depois no fim, ainda que não seja totalmente aqueles fins chocantes e que trazem uma reviravolta às acções à la Sexto sentido (ele existe, mas num grau suave), não derruba essa interpretação, como a reforça, julgamos nós.
Como ocorria em relação ao primeiro volume de Transperceneige, o facto do comboio ser uma estrutura linear facilita a ideia de progressão da acção, e há quem compare, e bem, a narrativa com aquelas estruturas táticas de jogos de computador, em que cada nível tem os seus próprios desafios e espacialidade, assim como “Bosses” Outra consequência desta estrutura – espacial e narrativa – e que o filme é necessariamente criado em “partes” que correspondem a cada secção atravessada. Cada um desses vagões ou etapas permitem a Bong experimentar como que mini-filmes, cada qual com os seus tons cromáticos dominantes, jogos de luz específicos, enquadramentos e movimentos de câmara singularizados, e provavelmente outro tipo de escolhas técnicas particulares.
Um dos aspectos dessas etapas é que permitem boas, se não excelentes, cenas de acção, algumas das quais com a estilização expectável e mais centrais na causalidade e avanço da narrativa do que na banda desenhada. Por exemplo, o combate entre o lumpen liderado por Curtis e os soldados-ninja das classes privilegiadas demora cerca de 10 minutos, e dividido em várias partes.
O tratamento estratificado leva a alguns abusos – na nossa óptica – de momentos de humor, mas isso é algo que já estava presente em The Host, e sem querer generalizar, é uma característica do cinema coreano, que se pauta por outras regras que não as do realismo euro-americano. A parte da escola e da discoteca são as mais abusivas nesse humor, que destoa da gravidade do resto do filme. Ou então assegurando a sua maior gravidade.
A inexorabilidade do movimento e destino do comboio não é tão definitiva assim no filme, como o é na banda desenhada. É extremamente raro vermos o exterior senão através das janelas do interior, ou os lados das carruagens, o que é bem distinto do narrador externo na banda desenhada. Apenas no fim, e uma cena de acção no meio, quando o comboio dá uma meia-volta, é que “saímos” do comboio. Sem querer estragar as surpresas reservadas, a última imagem é algo patética, pois é por demais instrumentalizadora da natureza, como torna os humanos numa espécie de finalidade total dela mesma, “cabeça” de uma hierarquia, e até mesmo cientificamente duvidosa. Mas Bong quer terminar o filme com uma nota de esperança, que estava ausente de outros filmes que são transversalmente homenageados aqui, como Soylent Green ou Planet of the Apes.
Apesar destas reservas em relação à efectividade política desta fantasia, Bong cria um filme que tem algum impacto visual e demonstra um grau de complexidade maior que as produções mais habituais. Cinematograficamente, não sendo o nosso campo principal, parece-nos ser algo de esculpido com rigor em todos os seus instrumentos, e não deixa de ser respeitoso para com a história do seu meio, de outras linguagens e, acima de tudo, para com a banda desenhada original. Não se espera de forma alguma uma “infidelidade” à letra, e como vimos tampouco à ética ou sentido descrente de Lob e companhia, mas sim a uma ideia geral e ao tratamento que ele permite em cada meio. O próprio Rochette faz de cronista visual no filme (não enquanto actor-personagem, mas o autor dos desenhos que se vêem no filme), o que provoca não apenas uma homenagem, associação directa à banda desenhada, mas ao mesmo tempo, uma possibilidade de ver nesta linguagem um espaço de resistência e sobrevivência de voz e agência própria junto a uma população sem qualquer poder.
É sobretudo essa dimensão que torna as bandas desenhadas e o filme válidos e notáveis.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros, e a Yang, Yonktak.
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