A estreia do filme Snowpiercer (설국열차, “Sôlguk Yôltcha”, literalmente “O comboio no país da neve” de 2013), de Bong Joon-ho (The Host), ainda demorará alguns meses a chegar ao circuito comercial, mas haverá alguns espectadores portugueses que o terão visto no IndieLisboa. O facto de ter já estreado na Coreia há quase um ano, e existir já uma edição em DVD e blu-ray francesa (mas não coreana), leva-nos a pensar que a globalização e a celeridade garantida pelas novas tecnologias nem sempre é garantida.
Como se sabe, este filme é baseado num livro de banda desenhada (em três volumes, mas a eles voltaremos) criado pelos esforços conjuntos de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette, e que remete aos anos 1980 e 2000. Dada a proximidade do filme, a Casterman publicou um álbum integral em capa brochada, rapidamente seguido por um volume que reunia subsídios para a sua história e complementos em torno da versão fílmica, escrito por Nicolas Finet e intitulado Histoires du Transperceneige, e, finalmente, um livro em capa cartonada que reunia a obra integral e algum do material de Histoires.
Na verdade, apesar de agora este livro ser apodado de “clássico”, “incontornável” e o quererem elevar a um estatuto especial, ele foi “esquecido” durante muito tempo, e é a sua fama cinematográfica que leva agora à sua recuperação.
Fura-Neves
A obra de banda desenhada consiste em três álbuns, mas toda a história da sua fabricação original atravessa uma complexa história atravessada por colaborações falhadas, mortes e tentativas de reestabelecimento. Algumas das informações de que daremos conta aqui são encontradas e debatidas ao pormenor no volume Histoires du Transperceneige, de Nicolas Finet, que debate o contexto editorial e histórico da banda desenhada onde o primeiro capítulo da obra surgiu: início dos anos 1980, a primeira vida da imprescindível e seminal revista (A Suivre), a emergência de uma nova linha de desenvolvimento “literário” da banda desenhada francófona, à época. Recordemos que Finet já havia dado à estampa um seu estudo sobre vários aspectos deste “capítulo” da história da banda desenhada no eixo franco-belga, com a monografia sobre a própria revista (A Suivre), em cujo número 57, em 1982, surgiria a primeira parte desta obra.
Não é uma hipérbole considerar a (À Suivre) como um projecto editorial que viria transformar o panorama não apenas editorial mas criativo na banda desenhada francófona do seu tempo e, quiçá, influenciando a produção noutras paragens. O que não significa que ela também não tenha sido herdeira de tendências e forças que se haviam formado noutros locais, como Itália (sobretudo as “gémeas” Linus/Charlie Mensuel) ou Estados Unidos (os underground comix).
Além disso, pelo menos para uma geração que estará agora na casa dos 40 e 50 anos, ela foi uma montra de uma “nata” da sua época.
Porém, também há que colocar alguma água na fervura. Afinal, a revista belga (À Suivre), talvez um pouco temerária ou mesmo intempestivamente, poderá ter imaginado que viria a conquistar um papel que acabou por não se verificar verdadeiramente.
“Com toda a sua densidade ‘romanesca’ a (À Suivre) será a irrupção selvagem da banda desenhada na literatura”, rezava o editorial inaugural de Jean-Paul Mougin. E, com efeito, apesar da revista ser herdeira de uma curva que vinha tendo lugar desde os anos 1950 com banda desenhada orientada para um público adulto (em que se podem identificar fases tal como a “leitura dupla” infantil-adulta, de um Astérix ou Lucky Luke, depois as sátiras soixante-huitard de Gotlib e companhia, assim como a sexualização da banda desenhada, com Barbarella e outros títulos da trupe Losfeld), é nela que se verificam os factores que potenciam e tornam possível a criação de (ou atreitas às) narrativas em banda desenhada que não se pautam pela lógica da “série” (independentemente de percursores “literários” da banda desenhada, como Régis Franc, Forest, Baudoin): liberdade em relação ao número de páginas, aos temas e géneros, aos estilos gráficos, etc.
Além disso, o factor económico era igualmente decisivo: os autores eram pagos pelo trabalho publicado na revista e depois novamente quando (se) saísse em álbum, o que tornava a empreitada mais sustentável e rentável.
Mas independentemente desse desejo de legitimação cultural, que tantos autores buscaram pelo emprego de termos alternativos a banda desenhada (graphic novel, literatura desenhada, picture novella, etc.), o próprio Mougin compreendeu rapidamente – como se pode ler no livro que Finet dedicou à revista – o beco sem saída em que se metia nessa senda quase exclusiva. Se os primeiros números trouxeram à estampa obras-primas desse veio “literário” como Ici-Même de Forest e Tardi, H.P. et Giuseppe Bergman de Manara, Silence de Comès, Tendre Violette de Dewamme e Servais, ou as obras de Muñoz e Sampayo, Hugo Pratt e de Chantal Montellier, rapidamente se decidiu Mougin a explorar uma outra via.
É assim que se chega a uma literatura “na sua função recriativa” abrindo as páginas da revista a géneros de aventuras e mais populares. Dois desses géneros são o noir e a ficção científica, discutivelmente os dois géneros que se amalgamam em Transperceneige (mais uns quantos elementos de outras paragens). Se se pode dizer que Pratt e Bourgeon são herdeiros directos das “grandes aventuras” do século XIX, mas as inflectem numa escala psicológica mais profunda, que F’murr e Comès exploram fantasias medievais para chegar a mundos imaginativos coesos, e que Muñoz, Sampayo e Tardi exploram o noir para radiografias sociais, o caso de Transperceneige se restringe ligeiramente à sua formulação. Dito de outro modo, Transperceneige, e a (À Suivre) em geral, podem ser vistos como um regresso a estruturas literárias mais tradicionais, por oposição aos altos voos experimentais do Nouveau Roman.
Todos os autores envolvidos nesta série já haviam trabalhado ou trabalhariam em géneros bem distintos entre si. Jacques Lob, que podemos considerar como o pai do projecto, começara como desenhador, mas também escreveria argumentos com alguns dos mais decisivos artistas do seu tempo. Foi ele quem inventou o Superdupont com Gotlib, escreveu livros memoráveis com Pichard, e também trabalhou com Baudoin em Carla, em que uma condutora de táxis se cruza com fenómenos fantásticos para se criarem histórias de profunda emoção.
A proposta primeira para Transperceneige, que foi sendo cultivada ainda antes sequer da existência d’(À Suivre), seria trabalhar com Alexis, um dos autores mais famosos da Fluide Glacial, colaborador de longa data de Gotlib e também autor de algumas das mais absurdas e hilariantes obras saídas daquela revista. Se a escrita era de Lob, a criação era conjunta, e haveria algum grau de humor, fórmulas de heroicidade, e uma direcção, quem sabe, determinada. Dezasseis pranchas estavam feitas e o projecto estava relativamente encaminhado, quando Alexis morreu repentinamente. Lob entrou num momento algo depressivo, e não pensava sequer em regressar a este projecto, apesar das insistências de quem o rodeava.
O surgimento da revista proporcionou a refundação da história, mas os primeiros passos nessa possibilidade foram algo falhos. Por exemplo, houve um momento em que a dupla Claude Renard, então professor numa escola de banda desenhada, e um seu jovem aluno, François Schuiten, fizeram mesmo testes para serem os artistas da série de Lob, mas essa possibilidade não se verificaria. Todavia, talvez tenham sido essas experiências que criariam a semente do álbum Le Rail – ainda hoje notável, a nosso ver – que a dupla criaria uns anos mais tarde (e Schuiten regressaria à fantasia dos comboios com La Douce). Em Histoires, encontraremos exemplos destas tentativas de Alexis, Renard e Schuiten.
Transperceneige seria então desenhada por Jean-Marc Rochette, o qual, por sua vez, é conhecido entre nós sobretudo com o seu Edmond le cochon (escrito por Martin Veyron, publicado em português na Animal). Rochette e Lob lançaram a história n’(A Suivre), em 1982, e em 1984 seria lançado em forma de livro, na prestigiante colecção Les Romans (À Suivre). Em princípio, esta tratar-se-ia de uma história individual, não havendo propriamente pistas sequer para a sua continuidade, mas essa noção viria a formar-se nos anos seguintes… Porém, Lob morreria. Ainda assim, essa tal ideia de dar continuidade ao Transperceneige havia-se formado e o próprio Lob discutiria essa possibilidade com Benjamin Legrand. Este tinha, para além de uma carreira nas indústrias do cinema e do audiovisual, também havia criado Tueur de cafards , com Tardi. Legrand tornou-se o “herdeiro” da saga e no final dos anos 1990 iniciaria, com um Rochette “reinventado”, o o segundo volume de Transperceneige, e ao seu universo narrativo, ainda que não com as personagens originais ou sequer a locomotiva em si. Por ocasião do lançamento do segundo volume, o primeiro, de Lob, seria re-publicado, para “recordar” os leitores dos elos perdidos…
Apesar do artista ser o mesmo, em termos biográficos, existem diferenças fulcrais. Se o primeiro volume mostra o desenho de um jovem Jean-Marc Rochette, um trabalho sólido de linhas finas e muitas tramas, perfeitamente adequado e integrado no seu tempo ao lado de outros autores naturalistas, no seu regresso para a segunda parte já se vislumbra mais claramente as suas pesquisas pictóricas, com massas de tinta e sombras mais devedoras à pintura que ao desenho, ambientais e fluidas. Apesar de ter havido um afastamento momentâneo para explorar precisamente a pintura, entre 1982 e 1999 Rochette já havia “regressado” à banda desenhada, e com Benjamin Legrand, curiosamente.
Transperceneige
Não existe uma obrigatoriedade de ler os três volumes para perceber “uma história”. Se o primeiro, de Lob, cria a premissa e o ambiente, ele é auto-suficiente e não precisa da continuação escrita por Legrand para ser desfrutada. Por outro lado, também uma concentração apenas nos livros de Legrand não sofrem necessariamente pela ausência do de Lob. Pois se existem pontos narrativos ou diegéticos que unem as duas histórias, elas são suficientemente independentes, e se socialmente pretendem explorar aspectos unificados, o “humor” (não no seu sentido de cómico mas de essência líquida que a atravessa) não é idêntico.
No que diz respeito à adaptação fílmica, podemos dizer que Bong aproveita a trama de Lob e os pormenores mundanos de Legrand, assim como a visualidade do Rochette maduro.
Num futuro mais ou menos distante apenas numa questão de décadas, os abusos industriais, erros ecológicos e hubris humana levaram a uma nova Idade do Gelo, que destruíram a vida na superfície da Terra, agora gelada. Todavia, um gigantesco e sofisticado comboio de luxo, o Transperceneige, movido por um misterioso engenho de moto perpétuo, encerra no seu corpo os últimos resquícios da humanidade. Estratificados de acordo com as classes das carruagens, os vagões de trás levam a classe mais pobre e quase abjecta, acumulados que nem animais, enquanto que os vagões da frente, mais espaçados, acomodam a elite. Quando mais próximo da locomotiva, do coração e cérebro do veículo, mais próximo se está do topo da pirâmide.
A trama é relativamente simples. Um dos habitantes dos vagões infernais, Proloff, está farto da limitadíssima vida que leva, e decide, aproveitando uma estranha aliança com Adeline, uma “menina bem” da frente com boa vontade para com a população desfavorecida de trás intenta subir todo o comboio. Nesse sentido, há uma “ascensção” mas apenas em termos de comodidade material, uma vez que moralmente não o é, já que também se vão descobrindo os “pecados” das outras classes. Esta estrutura será repetida pelos dois seguintes capítulos escritos por Legrand, num segundo veículo.
Toda esta idea de comboio, vagões e locomotiva compõem uma metáfora claríssima. Ou melhor, uma alegoria, já que cada uma das partes ou elementos pretendem ser vistos como ecoando elementos similares na nossa sociedade. Cada vagão corresponderia a um particular círculo social, a estratificação e mesmo hierarquização no comboio reflecte aquela que pauta (ainda que “invisível” a nossa sociedade, e por aí fora…
Se no caso do primeiro volume a tecnologia não deixa de ser fantasiosa (como todos os projectos que alguma vez envolveram a noção de moto perpétuo, que é impossível à luz da ciência actual), o tratamento dos ambientes é bem pelo contrário bastante prosaica, o que lhe incute alguma gravidade e palpabilidade. O próprio estilo de Rochette então estava próximo de Montellier, por exemplo, num tipo de realismo cru, perfeitamente adequado ao quase-niilismo de Lob. Se a trama do primeiro volume é forçosamente linear – literalmente até, pois é um caminhar em frente até à locomotiva -, o mais significativo está no constante desdobramento do protagonista, Proloff, que se ocupa o papel principal, em termos morais vai revelar-se, não apenas falho, como corruptível e, por isso, humano. A inexorabilidade do movimento do comboio está assegurada, mas não a salvação da humanidade. Não há contornos nem de utopia mas tampouco de distopia: trata-se tão-somente da natureza humana, menos do que abjecta, apenas ridiculamente impotente.
As opções de Legrand e do segundo Rochette são mais espectaculares. A tecnologia torna-se mais fantástica, se não mesmo fantasiosa, as transformações sociais que operam nesse outro veículo, o Crève-glace, são também mais dramáticas, com a emergência de um culto à máquina, formas novas de alienação dos passageiros, intrigas de poder político e militar, etc. Mais, algumas dessa opções narrativas permitem que se possa explorar o exterior congelado, de forma a entender de facto a impossibilidade de um regresso a uma “vida normal” na superfície do planeta, apesar das constantes pistas que alimentam essa ilusão. Existe um novo par de protagonistas nesta segunda aventura, Puig, o relutante herói masculino, e Val, a menina-bem com boa vontade e criativa (são quase decalque das anteriores de Lob), mas a intriga em que estão envolvidas é menos decidida e menos ressoante que a original. Talvez seja essa a razão que levou, como já afirmámos, o realizador coreano a aproveitar antes a estrutura narrativa do primeiro volume, mas usando todas estas transformações e classes sociais de Legrand na ambientação da sua versão.
Como é de esperar, portanto, a obra em geral aborda óbvias questões éticas, a um nível social, colectivo, no sentido em vermos replicadas (e até algo hiperbolizadas de forma simplista) certas hierarquias clássicas, mas também ao nível das personagens individuais, sobretudo Proloff e, depois, Puig. Não se trata tanto de os descrever como “anti-heróis” o que implicaria desde logo uma finalidade positiva dos seus papéis, e uma distribuição moral entre as várias personagens. Trata-se antes de entender os paradoxos lançados, e jamais resolvidos através de formulações simples, pela presença e agência desta rede de personagens.
Em termos de agenciamento dos olhares e composição, há também algumas diferenças entre o volume Lob-Rochette e o Legrand-Rochette. No primeiro caso, temos por exemplo composições que mostram vinhetas no topo da página, mostrando uma paisagem desolada e branca, e com apenas um balão de fala saindo do seu interior, como se os autores encontrassem nessa técnica recorrente uma forma de assegurar os leitores de que tudo estão ali enclausurado, no comboio. Isto terá a ver igualmente com a regularidade dos capítulos da revista, claro está e a necessidade de retomar certas contextualizações. Mas também tem repercussões na própria narrativa, e estamos em crer que Bong, Joon-ho foi sensível a esta questão, pela economia da sua filmagem, como veremos.
São poucos os momentos, em Lob-Rochette, em que nos é dado a ver o mundo ora exterior ora (temporalmente) anterior, ainda que haja brevíssimas excepções: o vídeo de publicidade do próprio comboio, os manuais, e algumas referências verbais. Depois, com os dois livros seguintes escritos por Legrand, dá-se uma expansão do universo diegético a uma segunda locomotiva, como vimos, mas também a incursões no mundo gelado. E se essa perspectiva aumenta, apenas serve para confirmar o desespero em pensar nela.
Por várias razões, e independentemente da publicidade que agora se faz, o Transperceneige não ocupou o mesmo lugar no imaginário contínuo que outros títulos, sobretudo aqueles que viveram um ciclo económico mais normalizado de série. No campo da fantasia pós-apocalíptica, por exemplo, estamos a pensar sobretudo em Simon du Fleuve de Auclair ou em Jeremiah de Hermann, em que ambas exploram uma “regressão” civilizacional após um qualquer desastre à escala global. Mas mesmo assim, a sua recuperação em termos cinematográficos permitirá uma revisitação mais nobre dos textos originais, e se os capítulos de Legrand acabam por se inscrever de uma forma mais ou menos normalizada no campo da banda desenhada, o título original de Lob ainda pode ser visto como uma grande conquista narrativa de uma voz desesperada e totalmente desencantada com a possibilidade da salvação política, ecológica e moral do homem.
Snowpiercer
Apesar de se tratar de uma adaptação – e que salutar é vermos este trânsito internacional, intercontinental e até mesmo temporal, entre a banda desenhada e o cinema, bem longe das “propriedades” mais imediatas – , procuraremos falar do filme algo isolado da sua relação intertextual, e não revelarmos segredos que estraguem a fruição do mesmo. Não havendo spoilers, há porém juízos de valor.
Em contraste com quase todas as fantasias disticas de um futuro pós-apocalíptico mas ainda assim tardo-capitalista do cinema recente – Elysium, a nova versão de Total Recall, The Hunger Games e, gasp!, Land of the Dead, Bong, Joon-ho não tenta criar apenas uma paisagem para uma moralidade, no seu sentido teatral, pejado de alegorias e “valores universais” O realizador não tem receio dos contornos complexos e políticos que a ficção científica pode atingir, e sem ser necessário aqui utilizar argumentos fracos sobre a “boa” ficção científica ou coisa que o valha. A utilização de instrumentos de um género em particular não significa nada em termos da sua completude moral, social ou estética. Além disso, Bong é um realizador que tem demonstrado um vivo interesse em explorar variadíssimos géneros, sobretudo para se centrar nas formas como o ser humano responde, no seu mais íntimo, a adversidades extremas.
Um crítico cinematográfico compara a estratificação social do comboio, e o seu tratamento fílmico, com o que ocorre em Titanic, e é bem notada a semelhança entre ambos os veículos e os seus destinos respectivos, ainda que o preço do comboio seja maior em termos da humanidade do que do barco. A referência maior Metropolis também poderia ser vista como um termo de comparação, mas aqui abrir-se-ia um problema gravoso e aberto a toda uma crítica política contra o que vamos dizer, como se se tratasse de uma justificação liberal da opressão: é que no filme de Lang, as classes mais baixas trabalhavam, ainda que num regime de quase-escravatura. Os seus corpos, portanto, eram fonte da energia que sustentava a sociedade de que eram parte, mesmo que sem os privilégios de cidadania. O mesmo poderá ser dito de Matrix, ou até de Hunger Games, etc., ainda que as explorações destes outros títulos sejam superficiais. No caso de Snowpiercer, as populações dos vagões de trás não contribuem de forma alguma para o funcionamento ou aparelhagem do comboio, a não ser os momentos em que os vemos a serem “escolhidos” para algum entretenimento das classes privilegiada e um outro pormenor, crucial, que se descobrirá no final do filme (mas algo próprio e que até põe em questão todo o edifício fictício-científico).
O problema é que se Bong tem essa intenção geral, no entanto, a caracterização das personagens é falha: os “pobres” são todos sujos mas, pelo menos aqueles que seguimos, são nobres, corajosos e abnegados, ao passo que os ricos – é difícil entender se existe uma “classe média” para além dos empregados que vemos a trabalhar em cada secção – não são mais que meras caricaturas, sobretudo aqueles a quem no fundo é dado mais algum tempo na acção (a ministra Mason, a professora das crianças, os que festejam o “Ano Novo” na última carruagem-discoteca – numa cena algo ridícula e reminiscente da cena do “Boom Festival” em Matrix Reloaded). A nenhum deles é dado espaço para se desenvolver, e acabam por jamais se redimir dessa caricaturalidade.
Até mesmo todo o discurso da personagem Mason, desempenhada por Tilda Swinton, que fala da justiça e do “lugar social apropriado” de cada um, traz toda a metáfora do comboio para o campo da literalidade, empobrecendo dessa forma a capacidade de interpretação dos espectadores. E a cena toda parte de um aproveitamento da realidade: alguém lhe lança um sapato à cabeça, como o repórter iraquiano, Muntadhar al-Zaidi, havia feito ao Presidente G. W. Bush, mas o castigo é corpóreo, sumário e imediato, de forma a sublinhar ainda mais a literalidade da metáfora. Este é apenas um dos vários temas “do (nosso) momento” que convergem na tessitura narrativa do filme, mas as suas verdadeiras consequências e maquinações no mundo real não encontram o mesmo tipo de peso no filme.
No fundo, as classes sociais são demasiado nítidas no filme, e não há negociação alguma entre elas, mas simples passagens claras que coincidem com os vagões. A banda desenhada, mais uma vez, prova a sua maior ambiguidade e riqueza psicológica em relação ao filme (o que ocorre com uma boa parte das adaptações dos últimos anos). Ainda assim, em comparação com outros filmes que poderiam ser arrolados numa mesma categoria, sobretudo americanos, Snowpiercer não é tão ridículo quanto eles na sua busca por “relevância”, mas ainda assim não deixa de ser redutor e cair numa fantasia. Elysum é um caso gritante de falhanço nessa tentativa, Gattaca talvez um caso mais feliz.
Snowpiercer, tal como dezenas, se não mesmo centenas, de fantasias da cultura popular (literatura, banda desenhada, cinema, televisão, etc.) cria inimigos implacáveis e desprezíveis, sem qualquer outra dimensão senão a sua crueldade. É a fantasia de sempre: criando-se inimigos tão terríveis quanto os “Nazis” (uma palavra mágica que retira a necessidade de se lavrarem e desenvolverem as personagens), projectamo-nos no papel dos heróis que encontram imediata justificação para as suas acções, por mais violentas, cruéis ou finais que elas possam ser. Infelizmente, essa fantasia também torna algo impotente a possibilidade de pensarmos nos papéis e acções que efectivamente podemos tomar, na nossa própria realidade social e hodierna, contra todos os pequenos gestos e injustiça social que nos rodeiam. Isto é, mais rapidamente imaginamos que faríamos parte da Resistência Francesa ou de valentes libertadores de escravos no passado, do que nos envolvermos com projectos mínimos de solidariedade política e social no nosso país…
No entanto, a diversidade étnica e linguística (aceitamos que 17 anos fechados num comboio não conduziria a um crioulo comum?) do filme tenta mostrar um passo numa direcção um pouco mais complexa, ainda que, mesmo sendo um filme sul-coreano, os principais “heróis” sejam caucasianos anglófonos e cada um dos outros, conforme as suas diferenças, ocupam papéis específicos e instrumentalizadores.
Na versão fílmica, não só o papel de Curtis (o avatar de Proloff/Puig, desempenhado por um credível e contido Chris Evans) é moldado de acordo com essas categorias actanciais e morais mais normalizadoras, como toda a fantasia política é maniqueísta. A própria recusa inicial de Curtis é fórmula (corresponde ao segundo passo da “Viagem do Herói” de Campbell, ainda hoje a Bíblia dos screenwriters de Hollywood e alhures). Quando ele faz o seu primeiro sacrifício para capturar a ministra, há uma notória inversão de cenas idênticas noutras narrativas, mais negativista, mas mesmo assim confirma-se esse papel. E mesmo com aquilo que aprendemos na progressão da narrativa e depois no fim, ainda que não seja totalmente aqueles fins chocantes e que trazem uma reviravolta às acções à la Sexto sentido (ele existe, mas num grau suave), não derruba essa interpretação, como a reforça, julgamos nós.
Como ocorria em relação ao primeiro volume de Transperceneige, o facto do comboio ser uma estrutura linear facilita a ideia de progressão da acção, e há quem compare, e bem, a narrativa com aquelas estruturas táticas de jogos de computador, em que cada nível tem os seus próprios desafios e espacialidade, assim como “Bosses” Outra consequência desta estrutura – espacial e narrativa – e que o filme é necessariamente criado em “partes” que correspondem a cada secção atravessada. Cada um desses vagões ou etapas permitem a Bong experimentar como que mini-filmes, cada qual com os seus tons cromáticos dominantes, jogos de luz específicos, enquadramentos e movimentos de câmara singularizados, e provavelmente outro tipo de escolhas técnicas particulares.
Um dos aspectos dessas etapas é que permitem boas, se não excelentes, cenas de acção, algumas das quais com a estilização expectável e mais centrais na causalidade e avanço da narrativa do que na banda desenhada. Por exemplo, o combate entre o lumpen liderado por Curtis e os soldados-ninja das classes privilegiadas demora cerca de 10 minutos, e dividido em várias partes.
O tratamento estratificado leva a alguns abusos – na nossa óptica – de momentos de humor, mas isso é algo que já estava presente em The Host, e sem querer generalizar, é uma característica do cinema coreano, que se pauta por outras regras que não as do realismo euro-americano. A parte da escola e da discoteca são as mais abusivas nesse humor, que destoa da gravidade do resto do filme. Ou então assegurando a sua maior gravidade.
A inexorabilidade do movimento e destino do comboio não é tão definitiva assim no filme, como o é na banda desenhada. É extremamente raro vermos o exterior senão através das janelas do interior, ou os lados das carruagens, o que é bem distinto do narrador externo na banda desenhada. Apenas no fim, e uma cena de acção no meio, quando o comboio dá uma meia-volta, é que “saímos” do comboio. Sem querer estragar as surpresas reservadas, a última imagem é algo patética, pois é por demais instrumentalizadora da natureza, como torna os humanos numa espécie de finalidade total dela mesma, “cabeça” de uma hierarquia, e até mesmo cientificamente duvidosa. Mas Bong quer terminar o filme com uma nota de esperança, que estava ausente de outros filmes que são transversalmente homenageados aqui, como Soylent Green ou Planet of the Apes.
Apesar destas reservas em relação à efectividade política desta fantasia, Bong cria um filme que tem algum impacto visual e demonstra um grau de complexidade maior que as produções mais habituais. Cinematograficamente, não sendo o nosso campo principal, parece-nos ser algo de esculpido com rigor em todos os seus instrumentos, e não deixa de ser respeitoso para com a história do seu meio, de outras linguagens e, acima de tudo, para com a banda desenhada original. Não se espera de forma alguma uma “infidelidade” à letra, e como vimos tampouco à ética ou sentido descrente de Lob e companhia, mas sim a uma ideia geral e ao tratamento que ele permite em cada meio. O próprio Rochette faz de cronista visual no filme (não enquanto actor-personagem, mas o autor dos desenhos que se vêem no filme), o que provoca não apenas uma homenagem, associação directa à banda desenhada, mas ao mesmo tempo, uma possibilidade de ver nesta linguagem um espaço de resistência e sobrevivência de voz e agência própria junto a uma população sem qualquer poder.
É sobretudo essa dimensão que torna as bandas desenhadas e o filme válidos e notáveis.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros, e a Yang, Yonktak.
Olá, Pedro.
Belo texto: gostei! 🙂
Não conhecia estes livros e só me apercebi de que existiam quando ouvi falar no filme. Não fiquei fã das pranchas que ilustram o artigo e, depois de procurar informação sobre o enredo do filme, ainda menos fã fiquei daquilo que ele terá para apresentar. A sinopse que consultei parece uma reunião algo cínica e até reaccionária de um conjunto de problemas complexos para os quais não existirão soluções simples. Existe uma espécie de fetichização da pobreza, agora, em certos produtos de entretenimento, e isso provoca-me, logo, reacções defensivas. Também achei o «Elysium» demasiado simplista e reconfortantemente podre, se é que me faço entender, embora lhe reconheça alguma audácia na representação de certas ideias – plasmadas de modo mais eficiente e impactante no anterior «District 9». Não sei… A ideia com a qual fico depois de ver coisas deste tipo é a de que, no fundo, tudo acaba bem quando cada macaco fica no seu galho – no que diz respeito à mobilidade social. SIm, os pobrezinhos vão à luta e tudo e é fantástico, mas, no final, tudo fica na mesma (o que em «District 9», por exemplo, não acontece). Já o Clive Barker foi mais original e provocante com o seu velho conto de horror «The Midnight Meat-Train», um comentário social fortíssimo que, por coincidência, vai ao encontro de muitas ideias e imagens de «Snowpiercer» (também fizeram um filme deste conto, mas entre filme e conto há uma distância tão grande, em qualidade e intenções, que mais vale a pena dizer que são objectos sem parentesco). Em suma: não fiquei com vontade de ver «Snowpiercer»; é provável que isso aconteça, mas não vou trabalhar para o resultado.
Uma nota sobre vilões, em geral: ao contrário da opinião mais consensual, eu gosto dos vilões “unidimensionais”, muito maus, sem qualidades redentoras. A razão pela qual gosto deles assim é porque na vida real, parece-me, os vilões são assim. Creio que fazer o mal é das tarefas mais OCDescas que existem – e sob ela não há sequer margem para sentimentos cinzentos. O mesmo é válido para os santos, antigos e contemporâneos, obcecados em fazer o bem. Só os indivíduos comuns são, em partes desiguais, bons e maus, alternadamente. Os vilóes e os heróis, em sinal oposto, trilham na senda do absoluto. Tudo o que tenho lido sobre os maiores criminosos da história leva-me a formular esta hipótese, embora, claro, o vilão possa praticar o bem quando o objectivo dessa acção é fazer o mal. O mal, ao contrário do bem, pode fazer batota: se o bem fizesse batota era o mal.
E agora vou regressar às minhas leituras.
Um abraço,
David Soares
Concordo com o David na nota, apesar de por vezes encontrar – menos vezes que o Pedro, certamente 🙂 – alguma dificuldade em perceber a fronteira entre a singularidade da dimensão do vilão e a manipulação política exercida pelo seu criador.
Olá a todos. Desculpem pelo “atraso”. Obrigado David e José, pelas palavras.
Não penso que haja nenhuma obrigatoriedade em ler o livro em si. Não fosse ele recuperado pelo filme, manter-se-ia esquecido, tal como muitos outros trabalhos, tão interessantes ou mais quanto este, nos ficheiros da banda desenhada de todas as décadas… Chamar-lhe “clássico” ou “masterpiece” não é mais do que a usual estratégia comercial que quer vender os seus produtos. Ainda assim, o primeiro volume, para quem aprecia a ficção científica da época, que citei, terá alguns aspectos curiosos.
E é verdade o que dizes, David, sobre a fetichização da pobreza: é isso mesmo. Há uma redução absoluta das pessoas a um ou dois traços cobertos de imagens sociais, e pouco mais, e é essa mesma condição social que vai depois pintar a manta moral. As mais das vezes, temos os “pobres maus”, que depois são contrastados com o “pobre justo”, usualmente o herói ou mártir da história (ou ambos). Ainda há pouco tempo, por razões profissionais, tive de rever o “Brutti, sporchi e cattivi” do E. Scola e, como digo no texto que fiz, ainda hoje não entendo se é uma visão contra os pobres, ou algo lá perto… Há pouco tempo também me chegou um vídeo à atenção, de um qualquer DJ de dance music (tipo David Guetta, mas não é esse), em que umas belas jovens fogem da cidade onde vivem incompreendidas – pobres de todas as cores vestidos à Depressão anos 20 – Dorothea Lange prêt-a-porter – e salvam-se por encontrar uma festa techno à beira da piscina. Ao princípio até pensei que depois regressavam e traziam a “alegria de viver” às pessoas da aldeia, ou algo assim, mas não: a moral é mesmo, existem pessoas feias e pobres, e nós queremos é curtir. Mas quando as próprias estratégias de demonstração política se revestem de alguns traços de consumismo (fico parvo com o que me contam das vendas das máscaras do V por onde vivo agora), pergunto-me se estamos bem…
Quanto aos vilões, aceito isso. De facto, como o Hitchcock dizia, quanto melhor o vilão, melhor o filme. Seja. Mas quando eu falo de vilões reais, estou mais a pensar naqueles que acedem a ferramentas legais e “normais” do poder, e exercem-no sem mais, pensando que fazem o bem… É isso o que mais me assusta. Quanto a facínoras, sei que existem, e claro que não me quero cruzar com eles, mas não é o mesmo tipo de medo que me incutem.
Abraços,
Pedro
David, o filme vale a pena ver e, tem consciência de que não existe solução simples para os problemas abordados. É um bom filme de FC, entretenimento com cérebro bem construído e executado.
Vilões e heróis partilham um mesma característica: são pessoa obsessivas com ideia fixas, e os grande vilões nem são aqueles que querem ser “maus” são aqueles que têm ideologias de que são acérrimos defensores, pelo menos na vida real. Os maiores vilões da história são aqueles que pretendiam mudar o mundo, sendo em muito casos vilões para uns e heróis para outros.
O conceito de mal por vezes é muito flexível e depende de pontos de vistas, tal como os deuses de ontem são os demónios de hoje (para o cristianismo e outras religiões).
Mas se gostas de vilões sem remorsos, vais gostar do Wilford – o vilão de Snowpiercer – ele não tem qualquer complexo de culpa pelas acções que comete, pelos crimes que comete. Nesse aspecto é muito “unidimensional” o que torna a personagem complexa é quando ele apresenta argumentos lógicos para as suas acções, que até se pode condenar – por príncipio – mas cuja lógica é difícil de refutar.
Em certos aspectos, ele acaba por ser um bom retrato de um político, de um líder carismático. É um tipo de mal muito mais prejudicial para a sociedade do que o de um assassino em série. O mal que um assassino – por exemplo – pode cometer, limita-se às acções que é capaz de cometer, o de um político/líder estende-se para as acções que coloca outros a executar e para os ideias e mecanismo que coloca em prática, de modo “estender” a sua visão para além da seu alcance individual.
Já agora, desde quando é que fazer batota é errado? Se o jogo está viciado como é que se ganha? 😀
Olá a todos.
Continuo sem ver o filme, mais por não ter passado perto de nenhum cinema, entretanto, e menos por escolha deliberada.
Tem graça – no sentido da bizarria e não no da comicidade, embora se possa arguir que a matéria, de facto, é algo tragicómica – que, aparentemente, para certos cineastas ou certos escritores a classe média não existe enquanto organismo sensível e consciente. Ou seja: só a classe alta e a classe baixa são capazes de sentir e pensar algumas coisas. Nesses casos, sob a imaginação dos criadores, só os “pobrezinhos” é que sofrem, só os “pobrezinhos” é que têm acesso a essa nobreza existencial de “sofrer apaixonadamente”, só os “pobrezinhos” é que são genuínos. Os indivíduos de classe média, pelo contrário, não sentem nada: são vácuos, perversos ou, pior, nem sequer existem – assiste-se a duelos sociais entre duas camadas de pessoas distanciadas por classe, mas não por plano de existência social. É uma espécie de Ode à Pobreza, a fetichização da pobreza, como referi. A Idealização da Indigência: uma indigência cómoda, de pechisbeque, bitolada por um cordão sanitário de lugares-comuns que não abana a ordem social em vigência, que não fere a sensibilidade da elite: ou seja, são “os pobrezinhos” a agir “como pobrezinhos” e a “fazerem coisas de pobrezinhos”. Está tudo como deve ser.
Ora bem, desviando a discussão dos carris por uns instantes, informo que a única elite que eu poderei reconhecer é uma elite intelectual. Isto significa o seguinte: o dinheiro é um acidente de percurso, um indivíduo nasce numa família com dinheiro ou não nasce numa família com dinheiro – a fábula de que se enriquece a trabalhar é boa para contar aos candidatos a empreendedores que fazem bicha para ir ao «Shark Tank». Inversamente, a cultura não é um acidente de percurso: um indivíduo adquire cultura ou não adquire cultura – a escolha é dele: sobretudo numa sociedade contemporânea em que a cultura e a informação nunca estiveram tão disponíveis tão rapidamente. Para mim, um tipo que só tenha dinheiro é tão insignificante como a mais insignificante das bactérias: no meu livro de estilo isso equivale a zero. É óbvio que as pessoas têm o direito de ser burras, se assim o escolherem: o problema é delas e cada um ocupa o seu tempo do modo que mais lhe for conveniente e de acordo com as suas capacidades. Infelizmente, Portugal ainda é um país em que cada milionário é de imediato tratado como se fosse um especialista em tudo, como se ter dinheiro fosse equivalente a ter cultura.
Nesse sentido, seria interessante que se filmasse um «Snowpiercer» em que a classe média tivesse uma palavra a dizer e que o horizonte de mobilidade sociai dos “pobrezinhos” não fosse igualar os ricos em conta bancária, mas ir ao encontro do enriquecimento por via da cultura e da inteligência.
David Soares
Na sociedade em geral existe um fetichizacão da pobreza que existe na sociedade é semelhante à fetichização da riqueza que existe, só que é desproporcional. A fetichização da riqueza está presente em constantemente na publicidade, nos jornais, na revistas cor-de-rosa. A fetichização da riqueza tem como objectivo dar à população algo a que aspirar: a riqueza, a fetichização da pobreza destina-se a dar algo a que a sociedade deve temer: a pobreza. São dois modos de moldar a sociedade, em particular a classe média.
É mais fácil a população em geral identificar-se com o pobre oprimido, porque no fim do dia a classe média é também ela “pobre”, uma vez que não tem o capital suficiente para ter acesso a todos os luxos que os “verdadeiramente” ricos têm, nem sequer de chegar aos (supostos) luxos das celebridades.
A ausência de voz, protagonistas, da classe média não é mais do que um reflexo da ausência de voz que a classe média reserva para si própria, é que a maioria dos criadores são da classe média, simplesmente (ou supostamente) estão mais perto de alcançar os lugares de primeira classe do que irem para a cauda do comboio.
O Snowpiercer é simples, mas não é simplista e o retrato da classe média, o lugar que ocupa no comboio não é muito diferente daquele que ela ocupa na realidade. Pode-se é não gostar desse retrato. Existe uma simetria entre a pobreza e a riqueza naquele comboio e está cheio de detalhes que reflectem a sociedade, e até tem (na minha opinião) a consciência de que o impacto que o filme (enquanto arte e entretenimento) tem o mesma função no mundo real que a revolução de Curtis tem no comboio.
Não existem realmente personagens “nobres” no filme, aliás o personagem central acaba por ser aquele que comete das acções mais reprováveis, existindo uma característica que é transversal a toda a sociedade: o egoísmo.
O acesso à cultura continua a estar dependente de ter acesso ao dinheiro, a cultura continua a custar dinheiro, e obras que são mais exigentes também exigem uma disponibilidade mental, tempo para pensar, quando esse tempo é limitado ou inexistente a disponibilidade para algo mais complexo é quase inexistente continua a reger-se pelo paradigma do pão e circo.
“A elite intelectual” por vezes consegue ser tão burra, ou mais do que os restantes. Não basta ter acesso à cultura para saber utilizar o cérebro, para pensar e fazer aquilo que era suposto um “intelectual” fazer: utilizar o cérebro. Na maioria dos casos a “elite intelectual” limita-se a debitar frases feitas, a citar as obras correctas e todo o seu discurso é feito com base num discurso maniqueísta, onde só é intelectual é que lê X e Y e quem gosta de B ou C não é intelectual.
É um discurso simplista que só se destina a manter a dicotomia do “Nós Vs Eles”.
Ao analisar, nem que seja superficialmente, o progresso cultural e científico que se tornou apanágio do século XX é desonesto, no mínimo, ignorar ou desvalorizar a importância que para ele contribuíu a emergência e consolidação da classe média, porque a classe média, sendo aquela que possui recursos que lhe permita pensar em algo mais que a mera sobrevivência, que é o problema da classe baixa, também é aquela que se sente compelida a agir para mudar o mundo, porque não tem privilégios a perder, ao contrário da classe alta. A classe média tem sido a mais demonizada pelos comentadores e pensadores sociais dos mais diversos quadrantes políticos, de Marx a Mussolini – pior só ficam os ateus e, ainda assim, é preciso ler todos os casos em paralelo. Existem muitos mitos sobre a classe média e o discurso de que é uma classe arrivista, indolente, perversa, não pode ser, hoje, levado a sério. Ou isso ou aquilo que penso ser a classe média não é classe média nenhuma – também pode acontecer…
Quanto a elite intelectual de que falei, referia-me a uma hipotética elite intelectual: ou seja, intelectuais verdadeiros e não os comuns pseudo-intelectuais que pontuam o espaço público. Aliás, poderão existir autênticos intelectuais públicos? O conceito dá que pensar – Bourdieu vem à memória, talvez um dos melhores exemplos daquilo que foi ou poderia ter sido um intelectual público -, mas, de maneira geral, um intelectual será, por natureza, um asceta: alguém que devota o seu tempo ao estudo, sem tempo para aparecer em programas televisivos, eventos sociais e quejandos. Daí que volto a perguntar: poderá, de facto, existir um intelectual público? Entre todos os nomes que eu reconheço como sendo verdadeiros intelectuais – portugueses e estrangeiros – pouquíssimos ou até nenhum é conhecido do grande público e provavelmente nunca apareceu sequer na televisão. Isto é, às vezes aparecem as ideias deles, apresentadas como sendo pensadas por outros, mas isso é outro tema.
Sim, uma coisa é “usar o cérebro” e outra é ser um intelectual. Para mim, um intelectual é, mais ou menos, um filósofo, no sentido medieval: a ler, um pensador empirista. O Locke, que não era medieval, dizia que só a experiência dá o verdadeiro conhecimento e ele era capaz de ter razão (apesar de também odiar os ateus): daí que na minha definição de intelectual, este seja quem arregaça as mangas e PENSA. Mas pensar a sério, com afinco, ao estilo LSD: ver as coisas de outro modo, atrever-se a ser irreverente, iconoclasta (mas longe das absurdidades simiescas do Žižek, que, acho eu, é um bom exemplo de um falso intelectual). Ou seja: PENSAR com rigor é trabalho. Não sei se me estou a fazer entender, mas não estou a ser capaz de clarificar melhor do que isto. Agora, para pensar é preciso ter excelentes ferramentas e essas custam muito tempo e sacrifícios a adquirir. É neste ponto que eu introduzo a questão da vontade, que alforei num dos meus comentários anteriores: ao contrário da fortuna, a cultura está ao alcance de qualquer um, basta querê-la. Será para todos? Não será. Mas o acesso a ela, parece-me, será para todos. No que diz respeito à cultura, ter interesse, vontade, já é um grande passo.
D.
Creio que não és o único que não sabe bem o que é a classe média, é daqueles termos que hoje em dia diz tudo e não diz nada. A “classe média” engloba um grupo tão vasto de pessoas acaba por também se dividir em baixa, média e alta.
A evolução tecnológica e mecanismo económicos (como o crédito) diluíram de tal modo a diferença entre classes que a maioria da classe média baixa consegue ter acesso a condições de vida que a classe média (média/alta) não teria à umas décadas atrás.
A fetichização da pobreza e da riqueza acaba por ser um reforçar artificial de um conflito entre ricos e pobres de um modo que ignora o espectro da classe média, que é onde regra geral existe um real conflito entre baixa e alta com os realmente medianos a estarem numa posição confrontável onde é melhor não fazerem nada, excepto garantirem a manutenção dos privilégios adquiridos.
A classe média, seja ela baixa, média ou alta tem sempre algo a perder. Os únicos que não têm nada a perder são os que nada têm: os realmente pobres, os restantes têm sempre algo a perder e quanto mais alta for a classe média, mais tem a perder. O maior conflito acaba por ser entre a classe média que não quer ser despromovida de alta para baixa, de média para baixa. O maior motivo para a inoperância da classe média, é que ela anda constantemente a lutar entre ela para poder ser um pouco mais alta, um pouco menos pobre.
É por estar tão centrada em manter “um lugar no comboio”, passar para uma carruagem mais confortável, que a classe média acaba por negligenciar a cultura e o lado intelectual.
O acto de pensar dá trabalho – concordo plenamente – e a maioria das pessoa prefere não pensar, que já tem muito trabalho.
Por as ferramentas custarem “muito tempo e sacrifícios a adquirir” é que não estão ao alcance de todos. Na maioria dos caso é como os restaurantes groumet e as roupas de marca, todos sabem onde ficam mas nem todos têm capital para entrar. Existe de facto uma parte que é culpa do individuo, se ele não quer ninguém o pode “obrigar”. Hoje existe muita “cultura”, mas existe uma cultura que é “baixa” – seja em termos de conteúdo ou qualidade – que é fabricada para apelar às massas e as manter contente, é a cultura que é o circo da expressão “circo e pão”.
Agora existe, simplificações e posturas na produção e comercialização (de cultura/arte) que se destinam exactamente a afastar pessoas, fazendo com que a divulgação e promoção realizada de obras e eventos seja direccionada um público específico “intelectual e culto”, ostracizando quem não entra nessa definição. É uma opção que não é feita por questões monetárias, mas para ter um status “social e cultural”.
É uma postura que por vezes é contraproducente e só serve para no final se reafirmar a “ignorância” do público que não adere a eventos, aos quais já lhes tinham dito que não era feito para si.
Nota: eu estou a falar da arte no geral e não da BD em particular 😉
Parte do motivo porque aprecio o Snowpiercer é devido ao facto de ser pop inteligente: aparentemente linear, capaz de ser apreciado só como filme de acção mas com um contexto cujo debate remete sobre aspectos mais profundos.
Olá.
Estava a ser irónico quando escrevi que «Ou isso ou aquilo que penso ser a classe média não é classe média nenhuma», como é evidente. Não me consigo afastar da noção segundo a qual a tua visão sobre a classe média é pejorativa e precisava de ser refrescada.
Socorro-me da memória, por isso, em avanço, peço já desculpa por qualquer laspo que possa vir a escrever sobre este assunto. Para começar, a designação “classe média” foi inventada no final do século XVIII pelo clérigo abolicionista inglês Thomas Gisborne precisamente para designar aquela fatia da sociedade que se encontrava apertada entre os assalariados e os senhores das terras: ou seja, a pequena burguesia (eu não gosto de usar esta palavra, porque tem demasiado lastro desnecessário, mas por comodidade discursiva lá tem de ser) ligada ao comércio e ao desenvolvimento da indústria, mas também as profissões ditas liberais (médicos, professores, administrativos). É neste sentido original, descontaminado, que eu entendo o que é a classe média – porque, de facto, as coisas pouco mudaram desde os tempos de Gisborne. Com efeito, terá mudado o seguinte: as desigualdades sociais, o septo entre os ricos e os pobres, passou, gradualmente, a ser observado como um mal a corrigir e não como sendo, somente, o estado natural – patrocinado por Deus, como escrevia Edmund Burke (que nos deixou prosas terríveis contra os pobres) – das coisas.
Curiosamente, um dos responsáveis pelo aviltamento da classe média foi Karl Marx, porque a classe média vinha obstaculizar a sua visão histórico-materialista e dicotómica da sociedade, assente na luta constante de duas classes antagónicas: os detentores dos meios de produção, que Marx, numa interpretação lata, identifica com a burguesia, e o operariado industrial, que Marx denomina de proletariado. Este proletariado provinha, em exclusivo, do mundo do operariado industrial; aliás, uma das razões da clivagem que existiu – e ainda existe, em parte, se calhar – entre o comunismo soviético e o comunismo chinês é que para Mao Tsé-Tung o proletariado era composto por trabalhadores rurais (isto porque a China, na altura em que Mao se afirmou como Grande Timoneiro, estava deficitariamente industrializada, logo não podia ter um proletariado, digamos, “tradicional” ou “idealizado”, à maneira marxista-leninista). Um dos axiomas do marxismo era a revoilução do proletariado, que só poderia ocorrer após um período de eficaz industrialização (a industrialização foi a política principal de Estaline – mais do que a expansão do comunismo, algo a que Estaline nunca deu importância, chegando até, bem nos seus anos iniciais de carreira, a criar logo uma política de “Comunismo Num Só País”: ou seja, o comunismo seria para os russos e que o resto do mundo deixasse os russos ser comunistas em paz). Voltando ao tema principal, neste sistema dicotómico e rígido, da luta de duas classes antagónicas, não há espaço para uma classe interMÉDIA que venha desarmonizar o rumo do materialismo histórico. Daí a demonização que Marx fez da classe média.
Mas à esquerda existem outros pontos de vista. O de Max Weber, por exemplo, é muito mais benfazejo: para ele, a classe média era a classe do mérito pessoal e do reconhecimento do trabalho. O marxismo nunca compreendeu muito bem a emergência do estado social e da melhoria do poder de compra representados pela ascensão da classe média, observando o fenómeno como a expressão derradeira do triunfo do consumismo capitalista. A hipótese da mobilidade social era, nessa óptica, um antídoto para a conflitualidade social. (Entretanto, sob outras perspectivas mais próximas de nós, o marxismo “weberizou-se” e o weberismo “marxizou-se”, também, mas isso já são outras histórias).
O caso de Portugal é algo diferente, porque Portugal foi, essencialmente, um país rural e atrasado até bem avançado o século XX. O impulso da formação de uma classe média forte e saudável é, em mais do que certa medida, um produto da revolução democrática de 25 de Abril. É recentíssima e encontra-se, hoje, em veloz processo de fragilização. Essa fragilização foi agravada pelo embate da onda neoliberal que, correndo a Europa nos últimos vinte anos, da Grã-Bretanha para baixo, veio, neste momento, bater aqui na Península Ibérica. Mas até aqui não há novidade: Portugal apanha sempre as coisas atrasado. Não tivemos feudalismo, porque quando o país nasceu no século XII já o feudalismo estava em decadência; não tivemos iluminismo, porque a inquisição só foi extinta no século XIX (em Espanha até foi extinta mais tarde do que cá…); quando a primeira república ergueu a cabeça, e começou a alfabetizar em massa o povo, levou logo com uma ditadura militar em cima que, em pouco tempo, se transformou no longo Estado Novo; e, agora, quarenta anos passados desde o 25 de Abril, quando, aparentemente, estávamos a consolidar a estabilidade do nosso projecto democrático, levamos em cima com os corifeus do neoliberalismo. No fundo, Portugal continua a ser, como sempre foi, um país SUFOCADO, onde somente as elites do dinheiro (não as da inteligência) são capazes de viver sem sobressaltos. Esta é a verdade e nada tem a ver com ter-se uma visão de Direita ou uma visão de Esquerda. Em nome da transparência admito já que me encontro mais à Esquerda do que à Direita, O conhecimento que tenho de Historia impede-me de pugnar por absolutismos de qualquer espécie, embora a história dos últimos dois séculos demonstre, cabalmente, que as várias direitas têm mesmo muita responsabilidade pelo estado a que chegámos. Não se pode ser de Direita ou de Esquerda como se é do Sporting ou do Benfica: há que conhecer bem a nossa história e ser intelectualmente honesto para compreender o que se passou e o que se anda a passar. Embora quem, neste preciso momento, esteja na bicha das cantinas sociais – o fenómeno da “pobreza envergonhada” (basta ler jornais) – tenha objectivos bem mais emergentes e importantes do que isso. Somos nós – tu, eu e quem ainda tem disponibilidade para pensar e escrever – quem tem de encontrar sentido e soluções aplicáveis.
Por isso, fitas de Domingo à tarde, como esse vergonhoso «Snowpiercer», no qual os “pobrezinhos” mal começam a sentir fome dão logo em canibais (tão confortável que é estar no cinema e ver “os pobrezinhos” a “agir como pobrezinhos” a “dar em canibais”), provando o conceito que sobre eles têm os ricos, o de que estão a dois dedos da condição bestial da selvajaria, tem para mim o mesmo valor que um qualquer segmento propagandístico-partidário dos responsáveis pela nossa miséria nacional: zero.
Um abraço,
David Soares
David, eu percebi que estavas a ser irónico mas não resisti a “picar” um pouco. É que se a classe média surge como designação de uma “pequena burguesisa” mas hoje designa algo mais diferentes, ou se preferires é utilizado de um modo mais lato…
Eu não tenho uma visão pejorativo da classe média, tenho é uma visão pejorativo do ser humano, embora eu considere que é uma visão realista e não pejorativa.
O canibalismo em Snowpiercer até faz sentido em dois níveis; o literal e o metafórico.
A nível literal, já está provado por acontecimentos verídicos que (mesmo nos tempos modernos) em caso de situações extremas o ser humano não hesita em comer outros seres humanos. Independentemente de serem pobres ou ricos, agora na narrativa do Snowpiercer não dava era para colocar o canibalismo entre os ricos. Volto a frisar, por questões narrativas e não por uma qualquer superioridade moral dos ricos em relação aos pobres. O “canibalismo” dos ricos acaba por estar presente de outro modo, apesar de a certa altura até ter ficado surpreso por não ter surgido de um modo literal.
Em termos metafóricos, existe “canibalismo” entre os pobrezinhos, assim como existe entre a classe média e os ricos. São as situações que em que o ser humano se aproveita de um pouco de poder para beneficiar de fraquezas alheias, algo que não acontece só entre pessoas de classes sociais diferentes mas também entre pessoas das mesmas classes.
No fim, esse detalhe do canibalismo é um reflexo do egoísmo do ser humano, mais preocupado em resolver os seus problemas individuais do que os da sociedade. Pode não ser bonito mas é uma realidade.
No fim a mensagem não é “olha os pobrezinhos a agirem como pobrezinhos”, no meu entender, a mensagem é um pouco mais profunda: “é melhor deixarem de se comer uns aos outros e começarem a cooperar para a resolução dos problemas de todos”.
Ui, o que vai aqui não vai a Roma! Deixo-vos por uns dias, e seguem-se discussões profundas.
Infelizmente, não tenho tempo nem inteligência para me meter nesta conversa, mas não queria que pensassem não a seguir. Concordo com o David, como é óbvio, na ideia de que a cultura é algo que se conquista individualmente, mas meteria apenas um bocadinho de água na fervura em relação a quem não persegue esse caminho: muitas vezes não há mesmo sequer “condições de possibilidade”, à la Kant, para perceber que esse caminho existe. A cultura pode-se medir, até certo ponto (sei isto, não sei aquilo), a inteligência não, e muitas vezes, na minha experiência de professor no ensino secundário em locais problemáticos, vi muitos miúdos inteligentes e curiosos a serem esmagados pelos seus contextos. E aí a “luta de classes” ainda faz sentido, sendo ela, não a única, mas uma das principais funções agregadoras do combate político e ideológico (e, consequentemente, das outras frentes) que ainda existe – precisamente contra a ideia simplesmente de uma “geração”, por exemplo (sim, David, li o teu texto no teu blog, muito certeiro). Mas as “correcções a Marx” que fazes são justas. Simplesmente acho que podemos é ler Marx ainda, de forma positiva, à margem dos falhanços históricos (afinal, ele jamais imaginaria que seria na Rússia, também pouco industrializado) que se viria a dar a “revolução”.
Deixaria apenas duas notas sobre a elite intelectual. É verdade que vivemos num país que fomentou, alo longo de décadas, uma desconfiança em relação a essas mesmas elites, intelectuais e artísticas, e, Bruno, desculpa fazer de ti exemplo, mas as frases que escreveste, sem indicar coisas concretas, soa-me a esse tipo de ataques generalizados que não dizem muito de específico. Existem círculos de produção de arte e cultura contemporânea extremamente aguda e inteligente em Portugal, que têm circulação internacional do mais alto nível crítico, ainda que não sejam reconhecidos de forma alguma pelo grande público (um exemplo: Pedro Paiva e João Maria Gusmão). Significa isso que são uma “classe à parte” que não deixa entrar membros? Claro que não, isso é um disparate! Simplesmente tem de se fazer um esforço para compreender em que diálogo é que estão englobados, e dizer que “é tudo uma fantochada” é um exercício pouco digno da discussão. Se uma pessoa não costuma visitar ou acompanhar arte contemporânea de qualquer espécie, é óbvio que vai acabar por gozar ou achar estranho ou ridículo certas experiências. O mesmo poderia ser dito do cinema, da poesia, etc. Menos da banda desenhada, que não tem níveis de produção (em variedade e quantidade) idênticos.
Por outro lado, tampouco há dúvidas de que existirão outras áreas de produção artística que se estimulam e medram graças à sua “inscrição” política – não em termos partidários, mas em termos de servirem um discurso oficial da política -, muitas vezes à margem das discussões estéticas em vigor, e penso que saberão a quem me refiro. A ascensão e apoteose das peças de Joana Vasconcelos foram feitas graças aos esforços da própria, e uma ideia muito particular de marketing que é também seguida por alguns artistas internacionais, mas a sua eleição pelos governos de Sócrates e Passos Coelho como uma espécie de representante oficinal, “artista do regime”, veio assegurar uma exposição global junto a um público mais avesso a esse mesmo mundo. E como entrou nesse mundo, surge como “a melhor” ou até mesmo como “a única” referência, tornando a discussão sobre as suas peças – sobretudo nesse mesmo espaço alargado – numa complexa rede de oposições idiotas (a típica acusação de que quem fala “mal” das peças é porque tem ciúmes, ou dor de cotovelo, ou é estúpido, etc.).
Mas desvio-me… Enfim, é a típica ideia de que certas diatribes acabam por acusar algo que não se compreende como “intelectualóide” ou “pseudo-intelectual”. Mas como é que podemos saber que se é “pseudo-intelectual” se não temos uma noção verdadeira do que é um “intelectual”? Se não se entendem certos instrumentos do pensamento e referências, como é que sei que aquele indivíduo está a usá-los de uma forma errada, errónea ou até mesmo com dolo? É o que noto, curiosamente, a ocorrer bastas vezes no nosso “mundo” da banda desenhada. Mas noutras esferas também, e mais uma vez me recorro à minha experiência de professor. Como não compreendo, e não me apetece fazer um esforço para o compreender, “é porque é uma merda”. E recorro-me então de amigos que pensem (?) como eu…. De facto, reside a grande necessidade de cumprir alguns papéis de facilitação e acesso à cultura, à sua discussão, à sua, lá está, condição de possibilidade.
Todavia, isso levanta obstáculos, pois os papéis são distribuídos de formas desiguais, em tensões de poder e responsabilidade (esfera familiar, esfera social, esfera escolar, esfera individual, etc.), e não se podem esperar soluções universais e finais.
Aí o David tem (novamente!) razão quando fala da (praticamente) impossibilidade de existir um “intelectual público”. No entanto, ponho água na fervura, pois poderíamos falar – em vários graus de exactidão, de estilo, de áreas de discussão, de simpatias até, é verdade – dessas figuras nas pessoas de Vitorino Nemésio, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, José Gil, Edward Said, Noam Chomsky. Aqui é pouco importante se os achamos algo superficiais, se os ouvimos a dizer um ou dois disparates, ou se politicamente por vezes se metem em sarilhos, falo da (detesto a palavra) “função” social que têm… E olha que o Zizek, apesar de tudo, do seu “estilo público”, não é mau de todo sobretudo no que diz respeito à forma como re-emprega a psicanálise, mesmo a impenetrável lacaniana, em certas experiências humanas (se bem que o ache demasiado esquemático, por assim dizer, nas análises a obras cinematográficas, por exemplo).
Fico-me por aqui.
Um abraço
Pedro, eu fiz uma generalização porque não estava a falar de alguém em concreto, mas de diversos tipos de comportamentos semelhantes. Aliás a primeira exemplo que me veio à cabeça era de um projecto que aprecio, as envolvidas pessoas merecem a minha consideração e não estava para as julgar em público, apesar de não ter problemas em lhes dizer a minha opinião. Não existe um caso único.
Pode-se dizer que é mais uma questão “ideológica” do que pessoal.
O ser humano cria grupos com base em afinidades e, independentemente de ser “intelectual”, “metaleiro” ou “punk”, o grupo define um certo tipo de comportamento, vestiário e ideias que são bem vista e aprovadas. Nesta questão os (supostos) intelectuais não deixam de se reger pela mesma bitola.
A “maioria” dos movimentos intelectuais/culturais de ruptura surgem em mercados maiores e são depois importados. As pessoas quererem replicar o mesmo modelo (exactamente como é feito no exterior) em Portugal esquecendo que existem várias diferenças, em particular a nível da massa crítica: o público potencial.
Uma peça de teatro “avant.-garde” (por exemplo) tem em Nova Iorque um público potencial de 10 milhões, o mesmo público potencial que tem em Portugal (inteiro!) sendo que na realidade será só de uns milhares de pessoas consoante a cidade onde for encenada.
(Nota: quando menciono público na ordem de milhares e milhões estou a falar do público máximo, o real será sempre menos e propocional.)
Isto é uma questão de massa crítica, qualquer tipo de intervenção cultural que (em principio) só vai atrair um público mais restrito, está à partida condenado em Portugal, onde na maioria dos casos até obras mais “populares” têm dificuldade em subsistir.
Eu não estou a negar que “Existem círculos de produção de arte e cultura contemporânea extremamente aguda e inteligente em Portugal”. Agora, existe um tipo de arte e cultura que só será viável economicamente recorrendo ao mercado internacional, devido a questões como a massa crítica. Contudo perante esta realidade – massa crítica – não existe qualquer tentativa (que eu veja) de encontrar um caminho alternativo assente na realidade socio-económica (e cultural) de Portugal.
Apesar de não gostar uso e abuso que se faz de expressões estrangeiras, vou ter de abrir excepção para esta: “Think global, act local”. A menos que o objectivo seja mesmo emigrar ou internacionalizar uma obra, ignorando o mercado nacional e aceitando (de modo implícito) que este não tem salvação. Um discurso virado para um nicho de mercado “mais intelectual e culto” só conduz à manutenção do status quo vigente, reforçando as dictonomias entre “baixa” e “alta” cultura com criadores e público de costas voltadas.
Pessoalmente, eu não valorizo o experimentalismo pelo experimentalismo e, no caso da BD em concreto, irrita-me profundamente quando o experimentalismo não está ao serviço de uma narrativa.
Existem experiências cuja validade que têm é a de serem experiências, sem qualquer tipo de substância real, à semelhança de obras formal e/ou tecnicamente muito perfeitas, mas também elas completamente inócuas.
Para mim, a arte em Portugal é muito apolítica. Quando um dos maiores cliente e mecenas da arte é o Estado, cuja cor partidária vai alternando, o discurso político e de intervenção não é mesmo boa política. A (maioria) da arte de “intervenção” e de “contestação” limita-se a constatar lugares comuns, cumprindo um papel de “arte revolucionária” do mesmo modo que em décadas passadas, cada vez mais longínquas.
O aproveitamento da Arte pelo Estado é semelhante ao aproveitamento que faz do Desporto: utiliza os sucessos individuais ou colectivos – onde os decisores políticos não tiveram qualquer tipo de influência – para “reflectir” o “sucesso das políticas estatais”.
Esta frase Pedro Moura, é o constatar da qualidade do discurso artístico e intelectual em Portugal: discute-se pessoas e não ideias, discute-se pessoas e não obras. Na maioria dos casos a discussão é toda ela feita com base em preconceitos individuais, amizades e não naquilo que deveria ser relevante na discussão: ideias, factos, obras.
É fácil reconhecer um pseudo-intelectual, basta ver até que ponto é que se limita a repetir ideias feitas sem ter qualquer pensamento original. Existem discursos muito formais, correctos e pomposos que não tem qualquer sumo, existem pessoas que adoram “nomismos” – adicionar “ismos” ao nome de filósofos e escritores, para defenderem ou atacarem ideias – mas são incapazes de dizer o que isso significa, refugiando-se unicamente num debitar as citações que empinaram.
Agora, também reconheço que existem pessoas que não tem capacidade para diferenciar um intelectual de quem não o é.
Eu tenho alguma dificuldade em perceber a impossibilidade de existir um “intelectual público”, ou o interesse de ser um “intelectual privado”.
Actualmente existem plataformas que permitem a transmissão de ideias e conhecimentos, a não utilização dessas plataformas para transmissão do conhecimento não me parece ser um atitude inteligente.
Como é óbvio, quando estou a falar de “intelectual público” não estou a falar de ser “figura pública”, estar sempre nas televisões, revistas e jornais.
E só para terminar, achei piada a ter dito que não tinha “inteligência para se meter nesta conversa”, é que se existe aqui alguém que não é intelectual sou eu, não é o Pedro 😉
Mais uma vez terei de ser curto, infelizmente, mas gostava apenas de deixar uma nota sobre dois pontos.
Em primeiro lugar, compreendendo que se possa ver um “intelectual” como um descritivo idêntico ao de “metaleiro” ou “punk”, penso que se trata de uma categoria diferente, que não se pauta por afinidades de um estilo musical, de atitude, de vestes, etc., mas antes por um processo. Um intelectual não se identifica por utilizar estas calças e aqueles sapatos, mas por, porventura, discutir as coisas com um enquadramento lato, uma perspectiva alargada, e uma forma ponderada. Nada impossibilita que exista um “punk metaleiro”, e todos os cruzamentos possíveis, é evidente, mas ainda menos está impedida a possibilidade de existir um “metaleiro intelectual” ou um “punk intelectual” ou um “intelectual punk.” Penso que misturar esses apodos apenas serve a uma espécie de “redução” do que pode ser o trabalho intelectual, para melhor dispensá-lo…
Daí que muitas vezes a palavra “intelectual” seja usada como insulto, ou “pseudo-intelectual” seja empregue em relação a algo que não se compreenda e exija esforço cultural e intelectual da parte de quem o diz. É uma forma fácil de “compreensão”, afinal de contas: categorizar como desinteressante ou inócuo aquilo que não se compreende. Para quê fazer um esforço se posso congratular-me ao me apoiar junto a energúmenos como eu, que batem palmas quando não se pensa?
Isso é muito, muito discutível… Teríamos de ver caso a caso quem é que tem um papel relativamente público de debate intelectual, quem foi acusado de “pseudo-qualquer coisa”, e depois tentar perceber se isso corresponde à verdade ou não. A maior das vezes, se forem bem vistas as coisas, não corresponde. Pode é haver casos de, digamos assim, um abuso ou pelo menos um excesso de exposição dessa pessoa: em que é convidada para falar da sua especialidade em primeiro lugar mas rapidamente começa a pronunciar-se sobre tudo e mais alguma coisa. E aí há o perigo dessa crítica. No entanto, enquanto intelectual, TEM de se expor mas também de se lhe permitir espaço suficiente para explicar um posicionamento, o alcance de uma ideia, etc. E quem tem tempo para isso hoje em dia, quando se buscam notícias pelo Facebook e se forma opinião graças a um ou dois parágrafos em meios de comunicação desde logo sectários? É complicado…
Em segundo lugar, não me adiantarei quanto ao experimentalismo na banda desenhada, visto ter debatido largamente esse assunto noutros locais, mais ou menos públicos. Sei que isto parece puxar dos galões, mas é só para não me repetir. Acho que visão que tens do “experimentalismo”, Bruno, é relativamente problemática, pois a sua via não está precisamente ao serviço de nada mais, e querer que esses métodos de trabalho sejam usados para depois chegar aos mesmos resultados – por hipótese, a “narrativa” – é um empobrecimento da linguagem da banda desenhada enquanto prática artística. Se a aceitamos como tal, não me canso de repetir, temos de aceitar que ela tenha todas as possibilidades, inclusive a de não ser narrativa, não ser figurativa, de procurar caminhos não-trilhados, estranhos, de ruptura quase total com a sua história, etc. Mesmo correndo o risco de chegar a um público reduzido, o que foi sempre apanágio de experiências de ruptura, pelo menos desde os Impressionistas.
A continuar.