O Exemplo de Angoulême

Está a decorrer mais uma edição do Festival Internacional de Banda Desenhada de Angoulême.

Com a presença de autores brasileiros como Mike Deodato Jr ou Gustavo Duarte e com a tradicional grande (e organizada) ofensiva espanhola, a edição de 2015 do evento não inclui nomes portugueses em destaque no programa oficial. Mas vale a pena olhar para aquele que é o mais importante festival de BD (no modelo franco-belga) sobre uma outra perspectiva, que nos parece relevante para a realidade portuguesa de cidades como a Amadora.

Em 1990, o Festival de Angoulême corria o risco de acabar. Ao fim de 16 anos, o evento dava prejuízo financeiro, e quando o executivo camarário mudou, o novo presidente da câmara retirou o apoio financeiro da cidade ao projeto. Falava-se que Grenoble iria passar a ser a nova capital da banda desenhada. Aquilo que salvou o festival nessa altura, foi o investimento privado, com o grupo Leclerc a assegurar um financiamento que permitiu reequilibrar as contas, e a recuperar o apoio do município. Ainda assim, as mudanças têm custos. Em 1990, passa a haver um preço de bilhete.

O novo modelo do festival passa a funcionar numa base que envolve a articulação de uma associação privada com o município, permitindo a este recolher os frutos de quatro dias que levam à cidade (que tem cerca de 50.000 habitantes) quase 200.000 visitantes.

Ainda assim, o festival não pode descansar sobre a sua dimensão. No ano 2003, o festival de Angoulême volta a ser ameaçado, agora por Paris, mas, desta vez, é a câmara municipal que, numa série de movimentações políticas (e pelo aumento do apoio financeiro municipal) não permite que a cidade deixe de ser a capital da BD.

O impacto do festival de Angoulême na economia local traduz-se sobretudo no consumo e na criação de emprego. Foi a partir de números concretos que a cidade se virou para a banda desenhada. Apareceu o nome do Espaço Franquin, apareceu a Rua Hergé e a Rua Goscinny. Ao mesmo tempo, outras apostas não se revelaram proveitosas, como o CNBDI de Angoulême, cujo modelo de funcionamento e de financiamento também acabou por ser revisto.

Desde a exposição Dix Millions d’Images, de 1972, passando pela primeira edição do festival em 1974, Angoulême só começa a destacar-se de outros festivais franceses a partir de 1982, com uma presença significativa da comunicação social e, sobretudo, a visita dos ministros Jack Lang e Georges Fillioud. Se os editores ainda tinham dúvidas sobre a importância do evento, em 1985 Jack Lang regressa acompanhado do presidente da república François Mitterand. É a partir deste momento que o festival ganha protagonismo e passa a diferenciar-se de outros eventos ligados à banda desenhada, como o que é atualmente o AmadoraBD: a partir de 1985, é o mercado franco-belga em peso – que não tem qualquer possibilidade de ser comparado com o panorama português – que passa a estar presente em Angoulême.

Quer isto dizer que, em rigor, só podemos comparar o AmadoraBD com os primeiros anos de Angoulême, antes das visitas dos políticos e da grande atenção mediática, quando os números de visitantes de Angoulême não ultrapassavam o número dos habitantes da cidade.

A Amadora pode sempre ter as visitas dos políticos, mas nunca conseguirá o passo seguinte, o de trazer todo um mercado e com ele, uma injecção de milhões na economia local.

É partindo desta nota de realismo, da falta de um verdadeiro mercado de banda desenhada em Portugal, que a Amadora deve situar o AmadoraBD no âmbito mais vasto do seu projeto em torno desta forma de linguagem, questionando, nomeadamente, se se justifica que o festival continue a ser a face mais visível do projeto, e se deve manter o modelo em que assenta.

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