A segunda edição da Comic Con Portugal decorreu de quatro a seis de dezembro em Matosinhos. Recebeu enchentes de fãs e curiosos que rumaram à Exponor para um mergulho nos universos da cultura geek. Passei inevitavelmente por lá, atraído pela chama fulgurante do evento. Foi a minha estreia naquele que se assume como o maior evento da cultura pop em Portugal. Saí de lá convencido da sua dimensão e dedicação ao pop. Já a vertente cultura deixa algumas dúvidas. Analisando friamente as horas que por lá passei, saí com a sensação que tinha estado num mercado de brinquedos, t-shirts e adereços com promoções a filmes, séries televisivas e jogos de computador. Entre isto e o interminável desfile de cosplayers, boa parte dele absolutamente fantásticos, não conseguir retirar mais profundidade ao evento.
Não que este me tenha desiludido. Encantei-me com o fervilhar dos fãs, diverti-me a visitar os expositores, saí de lá carregado com t-shirts e adereços que têm lugar cativo nas minhas estantes. Vim sem livros, coisa que me é estranha, mas a oferta literária por lá estava mais virada para um público novo, a iniciar-se nos géneros, do que para leitores maduros e conhecedores. Não encontrei por lá novidades ou raridades, nem as esperava, mas aposto que boa parte dos jovens visitantes as encontrou.
O que me deixou desconcertado na Comic Con foi a forma como o peso comercial se sobrepôs a tudo o resto. Todo o evento funcionava como aquilo que um dos organizadores, em entrevista a um canal televisivo, referiu como “oportunidades de activação de marca“. As principais zonas e eventos dentro da Comic Con sublinhavam enormemente este carácter. Não que o lado de evento cultural estivesse ausente, com lançamentos de livros, painéis temáticos, zonas de divulgação de novidades literárias, espaços exclusivos para artistas e ilustradores de BD, e mais um prémio literário para a banda desenhada (com a algo arrepiante e antiquada designação de “galardão“). Mas lá dentro, no interior dos pavilhões, era muito fácil perder o sentido de tempo e esquecer estes eventos no meio de tanto produto à venda ou mercantilismo de canais televisivos e empresas da economia digital. O marketing sobrepunha-se claramente à promoção cultural.
A Comic Con veio para ficar, partilhando espaço com os eventos já tradicionais ligados à FC, fantasia, banda desenhada e cinema. Assume o foco como comercial, tornando-se assim distinta dos restantes eventos. A sua escala, impensável há pouco tempo e inimitável pelas restantes iniciativas portuguesas, poderá ser um factor positivo ao atrair mais pessoas, mais fãs, novos olhares, que eventualmente se irão começar a interessar pelos aspectos mais eruditos das culturas de género. Ou poderá ter o efeito oposto, aproveitando a onda da moda da cultura geek para fazer lucro fácil com a imposição de produtos, ajudando a um rápido esgotamento de ciclo.
Sob esta perspectiva, as críticas tradicionais que fazemos aos eventos de sempre esfumam-se um pouco. Podemos apontar a fossilização do Amadora BD, a incipiência do SciFi LX (ressalvando o seu dinamismo), o amadorismo do Fórum Fantástico (que, sublinhe-se, tem sido consistentemente não comercial e é organizado por fãs, cujas profissões não estão directamente ligadas às culturas de género), ou a progressiva suavização do Motelx. Mas estes são eventos que insistem primeiro no lado cultural, e colocam o comercialismo como acessório. Apenas o Anicomics, assumidamente comercial, poderá ser comparável à Comic Con, embora numa escala infinitamente menor. Do Iberanime não opino, porque desconheço.
Que a cultura geek tem importância económica é um facto, e é bom que esta cresça. Sem incentivo económico, como é que serão produzidos os livros, comics, filmes e séries que tanto gostamos? Temos esse exemplo na FC portuguesa, de epifenómenos cíclicos, minúscula, dependente da boa vontade de um punhado de escritores que, na sua maioria, acaba por desistir e seguir por outros campos. Também a BD por cá já foi assim, embora agora pareça ter finalmente ganho sustentabilidade (ou então estamos no mais recente pico dos muitos ciclos de alto e baixo que se observaram na BD portuguesa). Como cultura popular, espera-se essa vertente comercial assumida, mas pode ser mais do que isso. A sua sustentabilidade implica critérios de qualidade, e implica agentes inteligentes capazes de jogar a longo prazo e não se resumir ao surfar da onda de modas, espremendo lucro máximo com produtos de qualidade duvidosa vendidos a um público jovem e pouco conhecedor que ao crescer abandonará estes consumos culturais repetitivos e banalizados.
A Comic Con impactou as culturas de género de forma surpreendente. Saí de lá com muitas reservas, fascinado pela dimensão, participação e diversidade, mas muito desconfiado do fortíssimo pendor comercial. Tenho poucas ilusões que que esta convenção nacional contrarie a tendência mercantilista destes eventos à escala global. Suspeito que ao crescer, como se prevê, esta se agrave. Mas, eterno optimista, não deixo de pensar que o interesse sem precedentes que está a despertar ajude a cativar novos públicos, beneficiando a médio prazo a cultura de género. Diz-me isso o brilho nos olhos dos meus alunos que gostam de comics e anime, quando falamos sobre um evento que lhes despertou o interesse e sentem como oportunidade de aceder ao que no seu dia a dia recebem a conta gostas. Se isto se traduzirá num crescimento mais expressivo, é algo que só perceberemos com o passar do tempo. Teremos de nos habituar à ideia que este evento será sempre medido pelo seu volume de negócios e não pelo impacto cultural.
O pior da Comic Con Portugal:
Ser no Porto. Ou, sendo mais específico, na Exponor, em Matosinhos/Leça. Uma zona que sublinha a ambição do evento, mas não é facilmente acessível sem ser de automóvel. A amplitude do espaço facilitava a circulação dos visitantes, mas também implicou dispersão das diferentes zonas. Se a zona principal, das livrarias e lojas de produtos temáticos, estava bem cmposta cheia as restantes pautavam-se essencialmente pelos espaços vazios. Essa dispersão também se sentia nos paineis em espaços onde decorriam os eventos paralelos. A Comic Con cresceu, mas talvez não assim tanto que justifique três pavilhões da Exponor. Também podem ler estas linhas como irritação por ter confundido a Avenida da Boavista com as ruas que dão acesso à AIP e ter por isso dado andado às voltas nas estradas circundantes e ruas cheias de trânsito do Porto para fazer um caminho que, irritantemente, conhecia.
Não ter wifi disponível. Parece uma questão menor, mas não é. Hoje é expectável que qualquer evento permita aos seus visitantes partilhar as suas experiências em tempo real nas redes sociais. Aliás, mais que expectável, é encorajado. Os outdoors estavam lá, os estímulos também, só ficou a faltar o acesso. Por outro lado, estamos a falar de um evento que decorreu na Exponor, que não é conhecida pelas facilidades que concede. A título de exemplo, dispõe apenas de uma máquina multibanco, que contém o simpático aviso de que não são por ele responsáveis. E, ao que parece, pratica preços pouco simpáticos no aluguer de mesas e cadeiras. Disponibilizar wifi aos visitantes implicava um nível de boa vontade que as minhas experiências prévias me dizem que a Exponor não costuma ter. Ah, quanto ao multibanco? Reparem que a Comic Con tinha um forte lado de feira. Imaginem as filas.
O peso opressivo do lado comercial do evento. Estaria a ser injusto se classificasse a Comic Con unicamente como evento comercial. Mas na verdade é-me difícil não o fazer. O peso comercial era enorme. Começava logo pela venda directa aos visitantes nos stands, a zona mais concorrida. Um festim lucrativo de livros, adereços, brinquedos, roupas e outros elementos convidativos para os fãs de comics e anime. O peso da Guerra das Estrelas era imenso. Apesar de admirar o dinamismo da 501st Legion, que trouxe para cá uma réplica em tamanho real de um caça TIE, a insistência no fenómeno Star Wars era saturante. Provavelmente metade do que estava à venda na Comic Con tinha a ver com o filme. Tal não acontece por coincidência. O novo filme da série vai estrear na época natalícia, estratégica para vender todo merchandising que lhe está associado, e há que incentivar o interesse. As datas da Comic Con, mesmo à beira da quadra natalícia, ajudam os departamentos de marketing. Sublinha o quanto estes eventos, cá e lá fora, tem menos a ver com a partilha cultural e mais com os negócios de lucro rápido que se apropriaram das culturas de género.
O preço dos bilhetes. Não sendo propriamente caros, também não são assim tão acessiveis, especialmente num evento que obriga muitos dos visitantes a vir de longe. Ainda por cima é um evento que convida a gastos, onde pontuam muitas lojas e editoras cuja presença e lucros certamente ajudam a financiar os custos do evento (excepto, vim a saber em conversa pessoal, pela FNAC e Asus, isentadas de quaisquer custos). Também se percebe que uma Comic Con tem custos que deverão ser elevados, entre espaços, materiais, promoção e os convidados que não se deslocam cá por amor ao fandom mas sim à carteira. Os nomes mais sonantes presentes fizeram-se pagar, e alguns ainda mais sonantes colocaram preços incomportáves. Disseram-me que Samuel L. Jackson chegou a estar convidado, exigindo uns meros meio milhão de euros para passar umas horas na Comic Con portuguesa. Aqueles que vieram certamente não tiveram cachets tão elevados, mas os custos operativos do evento não serão certamente negligíveis. Aliás, de acordo com os responsáveis, estará a dar prejuizo inicial numa estratégia pensada para vários anos.
A divulgação de eventos paralelos. Entrar dentro dos pavilhões era mergulhar num fervilhar de gente. Multidões de fãs a acotovelar-se na zona comercial. Um ambiente dinâmico, vibrante. Foi demasiado fácil esquecer o guia que recebi à entrada e distrair-me dos eventos paralelos. Algo que poderia ser resolvido se a organização tivesse forma de comunicar com os visitantes.
O melhor da Comic Con:
Ser no Porto. É uma excelente desculpa para passar uns dias a visitar a cidade. Suspeito que a Câmara do Porto esteja atenta a este factor. Mais do que o impulso turístico, a localização aponta para uma vontade de descentralização que é de saudar. Sejamos francos. No que toca a oferta e eventos no domínio do Fantástico, FC, banda desenhada e Anime, é em Lisboa que quase tudo se centra. MotelX, Amadora BD, Fórum Fantástico, SciFi LX e Anicomics decorrem na área metropolitana da capital. O Iberanime vai rodando, e o festival de BD de Beja é a honrosa excepção. A norte menos se passa, pelo menos com projecção nacional, no que toca a estas culturas. A escolha de localização da Comic Con explora e cultiva novos públicos numa zona do país onde quem se interesse por estes domínios culturais tem disponível menor oferta, e ainda aproveita a proximidade com zonas espanholas culturalmente dinâmicas. Por muito que me custe o investimento de rumar a norte para este evento, sublinho que é uma excelente aposta.
A ambição. Bolas, ocupar a Exponor com legiões de fãs? Trazer cá nomes sonantes dos comics, cinema e televisão? Cerca de cinquenta mil visitantes em três dias? Quando surgiu a Comic Con, no ano passado, ninguém acreditava que tal fosse possível. Não só pelo facto dos organizadores não serem conhecidos, mas pela ambição afirmada. Aconteceu, surpreendeu, e repetiu-se. Num país onde a cultura de género é vista como acessória e minoritária, talvez cultivando uma aura de parente desprezada da cultura, parecia impossível que alguma vez eventos destes cá decorressem.
O cosplay. A ascensão desta expressão por cá tem sido meteórica e a Comic Con soube aproveitá-la. Algo que decalcou do Anicomics ou Iberanime, dois eventos que apostam fortemente no cosplay nacional. Entre visitantes e participantes na Comic Con, desfilaram cosplayers admiráveis, de fatos brilhantes, com caracterizações de fazer cair o queixo. Também havia muitos que pensam que enfiar uma máscara ou um barrete com olhos e orelhas é o que chega para encarnar as personagens que admiram. Mas a maior parte surpreendeu, apesar de alguma monotonia na escolha de personagens que trai uma cultura visual de comics construída pelas versões cinematográficas.
Cruzar-me com Lloyd Kaufman e o trash film camp da Troma, curiosamente pouco destacado mas acarinhado pelos voluntários do evento.
As pessoas que por lá se encontram. A Comic Con tornou-se outro ponto de encontro de fãs, escritores, artistas, e até criadores de impressoras 3D. Foi bom chegar lá e cruzar-me com amigos, conhecidos e autores que admiro, bem como saudar os dinâmicos membros da Corte do Norte ou discutir potencialidades da impressão 3D com os criadores das impressoras portuguesas.
Devo sublinhar que esta crónica reflecte a minha experiência pessoal. Fui à Comic Con como mero visitante, esquecendo que sou blogger e colaboro com o aCalopsia. As críticas que faço reflectem uma postura individual pouco virada para as vertentes comerciais, embora não lhes negue importância. Suspeito que para o ano rumarei novamente a norte, para a terceira Comic Con Portugal, provavelmente repetirei as mesmas críticas. Mas não sou fundamentalista de uma etérea pureza cultural. Se a Comic Con se tornar um evento para públicos jovens que vive do merchandising, isso não retirará espaço a tudo o que tem vindo a ser desenvolvido nos domínios das culturas de género, podendo servir para ampliar os seus impactos. E fica a dica: para além de bonecos da Guerra nas Estrelas, almofadas kawaii e adereços baseados nas personagens do mangá, apreciaria algo mais whoviano. Faz-me falta uma sonic screwdriver para acompanhar os livros na estante. Podia imprimir em 3D, mas não seria a mesma coisa.