Devo dizer que dos lançamentos recentes da G. Floy este é o que menos interesse me despertava. Saga é o que é, sucesso incontornável no cruzamento entre FC e fantasia, Chew uma comédia negra futurista e Fatale um cruzamento genial entre crime noir e horror lovecraftiano. Séries que nunca esperei ver editadas em português, merecedoras de leitura e interesse dos fãs. Já o Esquadrão da Luz pouco me dizia. Confesso que tenho um certo desvio cognitivo para a Ficção Científica, campo onde a Image dá cartas e a Dark Horse não, embora de quando em vez se esforce por tentar. Um título sobre guerras e anjos não despertaria à partida a minha atenção.
Guerras com anjos? Sim, a capa é muito clara em mostrar que é esta a premissa. Trava-se, longe dos olhares da humanidade, um conflito milenar entre anjos defensores da divindade e anjos caídos, que não devem ser confundidos com demónios. Caíram por se ousarem miscigenar com os humanos que estavam encarregues de proteger gerando seres híbridos, os nephilim da mitologia judaico-cristã, perversão da vontade divina que deus tentou eliminar através do grande dilúvio. Mas falhou. Um escapou, e nos milénios seguintes declarou guerra aos céus. É uma guerra de vingança e despeito, cuja batalha decisiva se travará com duas armas terminais que os servos dedicados de deus têm conseguido manter longe das mãos dos nephilim. Nas linhas avançadas das forças americanas que se batem contra o invasor nazi no final da II guerra, nas florestas geladas da fronteira franco-alemã, um pelotão de GIs vai-se deparar com a mais difícil missao de sempre: travar os nephilim, camuflados como um batalhão de tropas das SS, defendendo até ao último suspiro as relíquias letais da cruz de Cristo. A presença do pelotão não é obra do acaso. Comandados por um homem que se revela ser o centurião que lancetou Cristo na crucificação, são um instrumento ao serviço da sua redenção final.
É uma premissa curiosa, que mistura a visão mítica da II Guerra com a tradição cristã mais esotérica. Assenta numa técnica narrativa fantástica. Com um ritmo marcado, o argumento de Peter Tomasi oscila entre acção pura e imparável, momentos de infodump e os encadeadores necessários para cimentar o mundo ficcional da série. Tanto toca na mitologia judaico-cristã como nos dramas reais e históricos da guerra, e brindando-nos com mimos como soldados zombies de guerras de antanho a carregar sobre monges armados com bestas. A história desenrola-se no ritmo linear de aventura clássica, com um sentido de propósito e objectivo muito vincado.
Algo me incomodou neste livro. A sua dualidade pura, retratando um dos lados como mal absoluto (não diabólico, mas mal na mesma) e outro como bem sempre coroado de razão. É todo um discurso religioso de pureza e não questionamento da autoridade divina que parece saído dos sectores conservadores religiosos. Talvez tenham estes sido o público-alvo da série, já que toca naquilo que tanto gostam de defender: coragem militarista, sentido do dever e obediência inquestionável à razão divina. É um lado milenarista e apocalíptico, mas que não estraga uma boa história nesta veia dos mitos ocultistas da cristandade. A história da II Guerra Mundial não sai maltratada nesta série fantasista.
O grafismo, a cargo de Peter Snejbjerg na ilustração e Bjarne Hansen na cor, é competente sem ser extraordinário, o que é expectável numa série deste género. lega-nos alguns momentos visualmente muito bons, sublinhados pelo trabalho de cor. Quais? Vão ler, que não se arrependem. O traço tem curiosos apontamentos de ironia gráfica caricaturista, um estilismo que remete directamente para os comics de época da II guerra.
É-me impossível não dissociar este Esquadrão da Luz de outras séries clássicas, hoje algo esquecidas. O dualismo moral, o mitificar da II guerra com os corajosos GI a combater, vitoriosos, os pérfidos e violentos nazis fez-me recordar o clássico Sgt. Rock de Robert Kanigher e Joe Kubert. Este comic militarista da DC clássica caracterizava-se por ter uma curiosa veia pacifista, explorando as aventuras da Companhia E (Easy), liderada pela epítome do militar forte, corajoso e carismático que é o sargento Rock nas linhas de combate da França em 1944. O paralelo é óbvio. O Esquadrão da Luz passa-se precisamente nesse tempo, desenrola-se em moldes similares, e não é difícil perceber as semelhanças entre os soldados do esquadrão e a Easy Company. Sublinhe-se que nos rascunhos das capas comentadas por Snejbjerg a influência deste clássico é assumida pelo ilustrador. Outro comic que esta série me fez lembrar, e que talvez tenha estado na sua génese, é The Light and Darkness War, editado pela Epic em 1989 com argumento de Rick Veitch e desenhos no estilo rude de Cam Kennedy. Nesta série, as almas de soldados mortos em combate em todas as guerras do passado são transportados para outra dimensão para combater contra as forças da escuridão absoluta, mantendo a humanidade a salvo. Estruturalmente diferente desta série, assenta num conceito semelhante, o de soldados normais cooptados por forças desconhecidas para combater em guerras sobrenaturais que colocam em xeque os destinos da humanidade.
[box title=”Ficha técnica” style=”noise” box_color=”#f2ecdd” title_color=”#353535″]Esquadrão da Luz
Autores: Peter J. Tomasi, Peter Snejbjerg, Bjarne Hansen.
Editora: G.Floy Studio
Páginas:216, capa dura.
PVP: 14,99 €[/box]