Crónicas do Escondidinho: Made In Calçada

Em 1999, armei-me em editor de banda desenhada e, com a cumplicidade do José Abrantes, lancei o n.º 0 da revista Boa Zona.

Apesar do design do Miguel Rocha, e de histórias de autores como o José Carlos Fernandes, não passou daquele n.º 0. Para além de BD, havia espaço para umas histórias curtas escritas por mim e ilustradas (em tom muito negro) pelo José Abrantes, passadas num bairro onde, por uma questão de identidade bairrista, todos eram ladrões. Eram as “Crónicas do Escondidinho”.

Aqui fica a crónica que estava prevista para o n.º 3 da Boa Zona, que não chegou à publicação.

Made In Calçada

Sendo frequente a passagem dos habitantes do Escondidinho pelos diversos estabelecimentos prisionais espalhados pelo país, não constitui novidade que as casas da Calçada se apresentem – exceptuando ocupantes pontuais de ocasião – abandonadas durante períodos mais ou menos longos (dependendo das agravantes e atenuantes).

Mas surpreenderam toda a vizinhança os cartazes a dizer “VENDE-SE” que a Rosalinda e o Ambrósio puseram, sensivelmente na mesma altura, nas janelas das respetivas casas. Todos sabiam que a Rosalinda e o Ambrósio andavam metidos um com o outro, e era provável que a porta da casa da Rosalinda se tivesse tornado estreita para a cabeça do marido dela. Mas ninguém compreendia porque quereria o Ambrósio vender a casa dele. Pelo menos até ao dia em que o marido da Rosalinda apareceu morto na Calçada.

A súbita urgência manifestada pelo Ambrósio e pela Rosalinda levou o anúncio da venda aos jornais, e acabou por levar à realidade do Escondidinho duas famílias de fora.

A estranha possibilidade de contar com não-residentes entre os seus residentes despertou naquela comunidade um espírito de centro turístico.

Foi criada uma Comissão para a Afirmação do Potencial Turístico do Escondidinho, e o Paulo Jorge, jovem promissor, foi escolhido para a presidência.

No próprio dia em que foi eleita a Comissão, o Paulo Jorge e o Celestino arranjaram um variado número de produtos que podiam projetar o nome do Escondidinho. O cadastro do Paulo Jorge numa edição concisa de 124 páginas, cópias exatas da chave da porta da Junta, roupa interior da Rosinha e alguns pés-de-cabra autografados estavam entre as maiores apostas da Comissão.

Por forma a que o acolhimento das novas famílias se verificasse com normalidade, foi decretada a proibição de assaltar qualquer membro dos novos habitantes dentro dos limites da Calçada. Para os assaltos nos limites da Calçada foram distribuídas senhas (que, para mais, habilitavam os seus detentores ao orteio de um semáforo).

Enfim, as novas famílias lá chegaram e foram-se instalando. E durante uma semana, acharam-se as pessoas mais sortudas do mundo, pois assistiam a imensos roubos e assaltos sem nunca serem vítimas de qualquer infortúnio.

Ao fim de quinze dias, a Comissão para a Afirmação do potencial Turístico do escondidinho congratulava-se por ter atingido tão depressa os seus objetivos. Da família que ocupava a casa do Ambrósio, o filho mais velho estava a dar os primeiros passos como carteirista. A família que residia na casa da Rosalinda tinha sido toda presa numa rusga ao café do Godofredo.

O Presidente da Junta organizou então uma valente jantarada de boas vindas aos novos residentes da Calçada. O jantar foi marcado no Café do Godofredo, com cerveja e Rosinha à discrição.

Mais uma vez, foi fixada uma trégua, proibindo os assaltos na Calçada fora do espaço do Café do Godofredo. Só assim se conseguiu um número tão elevado de presenças. Gente em liberdade condicional, gente a cumprir serviço cívico, ninguém quis faltar a tão importante reunião.

Num momento particularmente emocionante e solene, o Paulo Jorge entregou às famílias os utensílios das respetivas cozinhas. E num toque de humor muito apreciado por todos, alguns dos tachos apresentavam no seu interior a oferta dos relógios de alguns dos presentes.

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