O enquadramento de Sepultura dos Pais dentro da tradição gótica foi um dos elementos salientados pelo argumentista, durante a apresentação do álbum que se realizou no passado sábado (25 de Outubro) no AmadoraBD.
Os castelos em ruína, as florestas em ruína, a ruínas das famílias, normalmente existem os herdeiros de uma família nobre antiquíssima que estão na decadência e o Edgar Alan Poe fez isso muito bem na Queda da Casa de Usher, que é sobre a ruína, a linhagem dos Usher e a casa são indissociáveis e quando uma entra em ruína, a outra acompanha.
Essa degradação dos espaços e das personagens é um dos elementos chave de Sepulturas dos Pais que, “na essência, trata-se de um livro sobre a ruína, sobre o facto de que os indivíduos nem sempre estão alinhados com as melhores estrelas do seu destino”, explica David, que considera que o livro “é curioso, porque em geral os autores gostam muito de explorar os sucessos das personagens e eu aqui explorei o inverso, o fracasso das personagens.”
Termos como “magia”, “alinhamento com as estrelas” e “literatura gótica” remetem para um universo fantástico e metafísico, se assim quisermos considerar. Contudo, David Soares fez questão de salientar algumas das influências que nos rodeiam e das quais não nos apercebemos no nosso dia-a-dia. Salvo raras excepções, as ruas e as áreas mais movimentadas de uma povoação são sempre as que estão alinhadas a Norte e as que estão alinhadas a Ocidente, para proteger as pessoas da luz do sol e das nortadas.
O livro debruça-se no facto em que, se andarmos em sintonia com essas influências “podemos ser pessoas felizes, produtivas, com algo para oferecer. Se lutarmos com elas ou ao redor delas, se calhar podemos não estar tão bem”.
Sepultura dos Pais revela que a magia é algo que existe e que nos rodeia de forma natural. “A magia existe, é um dado adquirido. A magia existe, está ali. Em que é que isto melhora a vida dos indivíduos? Não melhora nada. Os indivíduos melhoram pelo seu próprio esforço, pelo seu próprio desenvolvimento”. No entanto, e embora não seja uma influência directa para facilitar e melhorar a vida dos indivíduos, “se forem (…) ao encontro da magia” e utilizarem a magia da forma certa, podem usá-la “para fazer coisas interessantes, conseguem ser produtivas, ser pessoas realizadas, ser pessoas felizes. Se se afastam do caminho da magia acontece o pior possível e a magia não quer saber se nós estamos felizes ou não. A magia não quer saber se morremos, se vivemos, se choramos, se rimos, ela está lá, é neutra, é indiferente, é uma força física e a mensagem que eu quero transmitir com o livro é essa mesma, é que às vezes aquilo que nós valorizamos como sendo essencial ou como sendo vital é muitas vezes um obstáculo, um hábito, que nós criamos na nossa vida e do qual não nos conseguimos afastar”.
O argumentista acrescenta que “todas as personagens do livro são prisioneiras dos seus piores hábitos, não conseguem sair deles, ainda percebem em confronto com o maravilhoso que existe uma janela aberta para uma luminosidade maior, uma realização maior, mas elas não conseguem sair dali” por força desses mesmos hábitos.
Embora possa parecer um livro muito cru e violento, essa violência é subtil. “Eu gosto de pensar que os leitores vão ser sensíveis o suficiente para ler as imagens, para saber interpretar os silêncios”. David Soares conta que uma das suas cenas preferidas do livro é quando uma das suas personagens favoritas, “o personagem principal que é o filho dos pescadores, o Borges, um homem que vai para os 50 anos e é um homem que vive na praia, uma espécie de “vagabundo” que vive sozinho na praia, é confrontado com a neutralidade do maravilhoso, com a neutralidade da magia, e aquilo ocorre numa situação em que ele está na pior situação possível, aconteceu-lhe uma desgraça. O modo como ele olha para o maravilhoso, como interioriza que aquilo não o salvou, não serviu para nada é para mim das cenas que gosto mais no livro”, finaliza, deixando o resto à imaginação dos leitores. Sepulturas dos pais é um livro “muito gráfico” mas com “este lado de poesia e a mensagem que vos quer transmitir é apanhem isso, não deixem escapar [a magia] ”.
As personagens do álbum têm nomes (que alguns podem considerar) incomuns como Borges e Janeiro, David Soares explica que não costuma dar nomes às personagens por si criadas, para evitar que ganhem algum significado oculto ou que os leitores tentem adivinhar o seu papel através do nome, já que isso lhes dá “já à partida um lastro emocional ou referencial que as vão contaminar já à primeira leitura”, algo que o argumentista diz querer evitar “o máximo possível”. E dá como exemplo o filme Inception, de Christopher Nolan, no qual “há uma personagem chamada Ariadne, que depois vai ser a rapariga que vai resolver os problemas dos labirintos mentais”, numa alusão à lenda grega do labirinto do Minotauro e do fio de Ariadne. “É como se, ao nascer aquela personagem, a mãe já tivesse a intuição de que ela ia ser aquilo”, e remata que “estas personagens deixam de ser personagens por mérito próprio para serem apenas referências culturais… estúpidas. E eu tento evitar isso” optando por não dar nome às personagens.
Devido às referências culturais constantes que existem na ficção moderna, o escritor fez questão de salientar que Borges não é nenhuma referência a Jorge Luis Borges tendo afirmado de modo veemente: “Escusam já vir dizer que me inspirei no Borges que eu odeio o Borges.” Após o que desenvolveu um pouco esclarecendo, “Eu mais que odiar o Borges odeio a borgesófilia, aquelas pessoas que nunca leram um livro de literatura fantástica e que gostam de dizer que a literatura fantástica é boa então dizem que gostam do Borges sem terem lido uma série de outras coisas que são muito melhores. Podia estar aqui a enumerar dezenas mas estávamos aqui a tarde toda. Portanto não tem nada a ver com o Borges, apesar de ter areia também não tem nada a ver com o Livro de Areia, não tem nada a ver com Argentina, não tem a ver com nada disso. Nem sequer tem nada a ver com o realismo mágico que não foi o Borges que inventou, já agora, o realismo mágico nasceu nas Islândia mas isso são outros quinhentos.”
“André Coelho já o evidenciara em É de Noite que Faço as Perguntas, em que consegue captar e retransmitir a voz autoral de David Soares, e acrescentar-lhe mais alguma coisa com o desenho. É que muito do que caracteriza o trabalho de André Coelho vai bem com o estilo de David Soares, nomeadamente uma certa inquietação que lança sobre o leitor, partindo de um todo muito negro e muito orgânico.”
Foi deste modo que Pedro Mota fez uma antevisão de Sepulturas dos Pais, aqui no aCalopsia, que serviu de ponto de partida para o editor, Mário Freitas, questionar o processo colaborativo entre André Coelho e David Soares.
André afirma que dar corpo aos argumentos de David Soares foi uma boa experiência, já que “apesar de ter os argumentos muito fechados, ou aparentemente muito fechados, existe sempre margem de manobra e há sempre hipótese de discussão, portanto foi muito fácil encontrarmos o ponto que queríamos e relacionarmos a arte com o argumento”.
Uma das grandes preocupações do desenhista desde do início, “ao começar a desenvolver as personagens e os cenários e tudo isso foi precisamente tentar encontrar uma forma de ter o espaço, o ambiente a relacionar-se de uma forma correcta com as personagens. Tal com o David diz, a magia é algo que está alheio às decisões e à vida das próprias pessoas e às vontades delas. Neste caso também a própria paisagem reflecte um pouco isso, no sentido que temos todos aqueles cenários exteriores muito amplos muito abertos, mais textura mas por outro lado também são reactivos ao que está a acontecer, nós podemos ver essas pequenas nuances sobretudo no céu pequenos elementos da vegetação. Isso foi uma coisa que me deu bastante gozo em trabalhar e se calhar até incidi mais trabalho nisso que no desenvolvimento da fisionomia dos personagens. Que o David já tinha essa informação escrita e tinha dado informação bastante concretas, está bem que pode sempre haver algumas alterações pois passamos sempre de uma ideia para o desenho, mas esta procura do cenário ideal foi se calhar aquilo que me deu mais gozo fazer neste livro.”
Em Sepulturas dos Pais, as personagens antagónicas, à semelhança dos loucos no asilo de Palmas Para o Esquilo, não têm nome, por completo. Algo que poderá fazer o leitor assumir os autores pretendiam transmitir que a loucura não tem rosto ou nome. Uma ideia que David Soares admite não lhe ter passado pela cabeça, apesar de lhe agradar essa leitura.
O livro é a preto e branco numa dicotomia que adequa às personagens, uma vez que o que menos atrai o escritor na ficção são as personagens cinzentas, “em que as personagens são simultaneamente boas e más”. David afirma que gosta de “personagens más como as cobras” e “o Mal em Sepulturas dos Pais é o Mal que não se anuncia logo, com alarde, mas que o leitor percebe logo que existe ali qualquer coisa que funciona mal com aquelas personagens”. Ou seja, existe uma diferenciação forte entre o Bem e o Mal, sem lugar a zonas cinzentas, e onde as personagens más dão logo a entender que o são, mas “até ir ao final do livro, [o leitor] não se vai aperceber logo de início de quão más elas se poderão tornar. O Mal, a caminhada para o Mal dessas personagens é gradual, mas inevitável”, explica. “As sementes da desgraça já estão lá desde o dia um, é só uma questão de aparecer a circunstância certa e elas degeneram completamente para a barbárie e não degenerariam se não fossem más por natureza”, acrescenta David, que remata que não são as circunstâncias que fazem a pessoa, mas sim “a pessoa faz a pessoa, ou a pessoa tem a apetência para o Mal ou não tem”, comparando essa tendência para se ser mau com a apetência para a leitura: “há gente que gosta de ler, há gente que não gosta, isso já vem dentro de nós”.
Porém, a duplicidade em Sepulturas não se restringe à dicotomia Bem/Mal: segundo o editor o livro “encerra um pouco esta duplicidade da degeneração das personagens e da própria paisagem, da própria localização” permitindo ao leitor ver “a própria podridão da cidade, primeiro numa aparente regeneração” que faz “lembrar situações reais em que há sítios que se transformam em paraísos turísticos e que subitamente voltam” a degenerar.
Algo que sucede por o livro falar sobretudo da ruína, “e a ruína não é só a ruína emocional e física dos personagens, é também a ruína do espaço. Sepulturas dos Pais começa com um cenário muito simples, no que diz respeito a elementos, é uma vila piscatória como outra qualquer, não há nenhum referencial gráfico que possa indicar que é um sítio real no sentido em que “olha isto é a praia da Caparica ou isto é a Figueira da Foz”, não existe nada disso. É um local imaginário, é um local que só existe nas nossas cabeças, é um local fictício, mas este é um local fictício que segue muitas vezes a ordem de decadência dos lugares”.
A certa altura, que lê fica a saber que “a praia, a vila e os terrenos onde elas estão inseridas não são públicos, são privados e a família que detém esses direitos vai construir ali uma estância de férias privada para ricos, vai construir um resort para a classe alta, mas é para a classe alta mas mesmo alta, não é aquela classe alta bacoca que vemos aí no Jet7, é mesmo gente com dinheiro. E transforma o espaço num resort gigantesco, mas rapidamente aquilo degenera e volta gradualmente a ser uma ruína”. David aponta que a mensagem final do livro corresponde-se com isso mesmo: a semente já lá estava naquele espaço, os valores, a magia que estava naquele espaço resiste a tudo. E não quer saber se há ruína ou não há ruína, a magia existe havendo ruína ou havendo resort. A magia é neutra e vai continuar sempre a existir naquele espaço e nós temos a infelicidade, ou melhor, as personagens têm a infelicidade de não a saber utilizar para melhorar a sua vida, e daí a ruína arquitectónica e a ruína pessoal e física são paralelas, são ruínas do mesmo tipo. Aqui é a mesma coisa, as personagens entram em ruína e o espaço entra em ruína também”.
O argumentista conclui salientando “a magia existe, [mas] não quer saber se estamos na ruína ou não.”