Recordam-se de quando eram pequenos e passeavam pela praia ou pelo jardim?
Recordam-se de olhar para algum recanto, uma clareira na mata que percorriam de bicicleta, uma pequena vereda verdejante perdida na desolação urbana do cimento, um recanto deserto lambido pelas ondas naquelas praias menos frequentadas?
Recordam-se de deixar correr o vosso imaginário? Imaginar que curiosas criaturas de estranhas civilizações lá poderiam viver? Que as sombras sobre o verde poderiam esconder restos esquecidos de edifícios milenares, ou que criaturas féericas se poderiam ocultar por entre as rochas, perscrutando-nos atrás dos passos apressados dos pequenos caranguejos?
Se o vosso imaginário vos pregava destas partidas durante aqueles momentos mais solitários entre passeios e devaneios, estes são sentimentos que serão reavivados por este livro extraordinário escrito e ilustrado por Tony Sandoval.
As Serpentes de Água leva-nos a um mundo onde o que é não parece e criaturas de magia mantém acesas lutas milenares. Um mundo que está mesmo ao nosso lado, mas é preciso o olhar de uma criança inquisitiva para o revelar. Nós, adultos, somos incapazes de percepcionar as lutas sangrentas e glórias que se desenrolam no limiar da percepção. O livro de Sandoval recorda-me a historieta das raparigas vitorianas que se dedicavam a recortar fadas em papel que, ao olhar da incipente fotografia, aparentavam ser reais. Entre crianças, o fantástico torna-se real, ganhando forma na colisão das suas imaginações.
Conan Doyle é mais conhecido pelo seu marcante detective de racionalismo infalível, apesar de também nos ter legado as aventuras do professor Challenger pelos mundos perdidos dos altiplanos da Amazónia. O autor também ficou famoso pelo seu interesse pelo ocultismo, tendo sido celebrizado nesta vertente pela crença nas chamadas fadas de Cottingley.
Fadas que não se esquivavam do olhar e vinham brincar na floresta com duas jovens amigas que produziram fotografias a provar a veracidade das criaturas. Mais tarde, estas vieram a confessar que eram toscas montagens com modelos recortados. É uma historieta que tem pouco a ver com o livro de Tony Sandoval, mas ao lê-lo este fait divers ficou desde o primeiro momento na orla da minha memória. Os paralelossão muitos, entre a omnipresença da floresta como local encantado, amizades no limiar da adolescência, e o resvalar do que está para lá do real.
Neste livro também mergulhamos um mundo encantado, vislumbrado através de duas jovens amigas, crianças no limiar da adolescência. Cruzam-se numa floresta, talvez num banal parque na orla urbana, mas para elas um local de encantamento mágico com mistérios de um irreal que se imiscui no real. Revela-nos uma luta mítica que só a coragem de uma rapariga inocente na curiosidade que sente poderá resolver. Tem no seu cerne uma historia clássica de fantasmas, com Mila, uma rapariga de mente inquieta e solitária, que descobre em Agnès uma amiga que talvez já tenha deixado de existir. Ou talvez não. Um ponto curioso é a forma como a história termina, com a aparente assombração a regressar à forma córporea. O que é considerado doença fatal no mundo real é, neste mundo fantástico, elemento de uma longa história mítica. Este é um sintoma da fortíssima ambiguidade textual que caracteriza este livro. Sandoval assume desde início que Agnès é um fantasma apenas pela sua invisibilidade perante os outros. Mas será esta uma invisibilidade de espírito preso à terra por estar envolvida num dilema sobrenatural, ou uma metáfora da invisibilidade de uma personalidade adolescente em desenvolvimento? Apesar do sólido pé nos terrenos movediços do fantástico, o livro é intrigante e ambíguo nesta vertente.
Lá escrevi a palavra. Fantástico. Não como qualificador, mas como denominador de género. Sandoval conta a história com uma sensibilidade transreal que dita o fio condutor de As Serpentes de Água. Comecei por recordar a historia clássica de Conan Doyle, mas não são esses os caminhos que influenciam o livro. O fantástico aqui está mais na tradição do realismo mágico sul-americano e do psicadelismo esotérico de Jodorowsky, temperada por doses de sensibilidade gótica. Não o já clássico transrealismo borgesiano, mas o misto de encanto ingénuo com a natureza selvagem e os mitos encarnados de Cortázar e Garcia Marquez. A sensibilidade gótica é mais aparente no estilo gráfico. Sem querer estragar leituras, cito um curioso pormenor que caracteriza este espírito. Mostra o misto entre algum psicadelismo esotérico e o realismo mágico, e por si só é interessante logo pela inversão que faz ao habitual antropomorfismo das histórias de fantasia. Numa das primeiras aventuras em conjunto as jovens heroínas vestem máscaras animalescas, incorporando espíritos animais para fazer diabruras por entre os veraneantes dos parques. Incorporando-os e transformando-se nelas, vistas pelo olhar de quem as lê.
Esta visão fantástica da adolescência, sublimada pelo imaginário, toca também no desconforto da descoberta da sexualidade. Mostra-nos como uma amizade se pode tornar mais do que amizade quando ainda estamos a explorar a nossa relação com o mundo. Tema desconfortável, porque se centra em duas jovens adolescentes a descobrir a sexualidade. Algo que quando se fala levanta logo muita sobrancelha, ou provoca paroxismos de fúria moralista. Sandoval aproxima-se deste tema complexo logo desde o início, com sentimentos de atracção que se catalizam num momento de deliciosa perfídia. Com dentadas em maçãs vermelhas reluzentes incluídas, numa prancha deslumbrante. Mas mal lhe toca, depressa se afasta e segue por um caminho onde impera a magia do imaginário. Há mais do que sexualidades para descobrir no mundo feérico das serpentes aquáticas. É todo um imaginário visceral e esotérico que nos espera.
Visualmente, este é um livro esplendoroso. O traço de Sandoval insere-se claramente na estética goticista de trevas, fortes contrastes e elegantes exageros de formas simples. Não me refiro aqui ao gótico literário de Walpole e outros escritores da época vitoriana, dos castelos assombrados em noites de tempestade, das arquitecturas inspiradas pelo gótico medieval. Falo do gótico da cultura popular, com a predominância do negro, um estilismo que se vai inspirar no traço de Edward Gorey. Figuras sinuosas de olhos exagerados, e grafismo de melancolia marcante. Já perceberam que me está a ser difícil de o explicar, mas é uma iconografia muito é clara na página.
Sandoval é muito eficaz nesta estética, levando-nos a florestas que encantam e arrepiam, criaturas monstruosas, batalhas épicas e uma visão muito sensual dos mundos onde o imaginário contamina o real. O real é desinteressante, para lá das duas amigas, mas o fantástico é um lugar de enorme riqueza visual. Entrar na floresta mergulha nas sombras e permite ver, através de sonhos despertos por rituais de tradição indefinida. E lega-nos momentos visuais assombrosos, deslumbrantes apesar de remeterem para a desolação e decadência.
Sandoval leva-nos de regresso aos tempos longínquos da infância. Recorda-nos o tempo em que os terrores imaginários ainda não mediados pela iconografia cultural nos despertavam os sonhos. Mexe com o desconforto do crescimento, sublimando num mundo de magia intemporal a amizade entre duas raparigas. Fá-lo acentuando o onirismo e o irreal, com um grafismo esplendoroso que deslumbra o leitor. Escrevo isto, com o sentimento que deixei muito de fora. Este não é um livro de frieza lógica, antes uma colagem coerente de ideários que nos toca ao nível emocional. A edição da Kingpin Books sublinha a excelência do livro com uma edição de luxo, muito cuidada, de capa dura e papel de prestígio que faz realçar o grafismo do autor.
As Serpentes de Água
Autor: Tony Sandoval
Editor: Kingpin Books
Dimensões: 19,5 x 27,5cm
Encadernação: Capa dura
Páginas: 144, cores
ISBN 9789898673053
EAN 978-9898673053
P.V.P.: 19,95€
Edição: 2014