Não pela obra em si, mas pelo significado de analisar uma recolha de cartoons nos dias tristes que se seguiram ao atentado ao Charlie Hebdo. Um acontecimento horrendo, que se torna particularmente chocante por ter sucedido tão perto de nós. Não me refiro a um “nós” geográfico, mas ao contexto cultural da banda desenhada. Entre as vítimas, aqueles que foram os principais visados encontravam-se cartoonistas bem conhecidos pelos fãs do género. Pessoas cujo trabalho conhecíamos de exposições e publicações, ilustradores que mantinham vivo o espírito irreverente do final dos anos 60 interligado com a visceralidade da tradição satírica francófona. Um momento terrível que nos deixou a sentir-nos todos um pouco Charlie. Não totalmente, nunca totalmente. Falando por mim, duvido que tenha a grande a coragem, ou a lata, destes mártires involuntários. E não consigo deixar de anotar a extrema ironia de inconoclastas aguerridos anti-sistema, ofensores a torto e a direito das mais nobres instituições, serem consagrados como mártires institucionais e vítimas de uma guerra pela liberdade de pensar e dizer o que se quiser que no mundo ocidental já acreditávamos vencida. A ironia do real consegue ultrapassar a ficção.
Não temam. Apesar de começar este texto a recordar o Charlie Hebdo não vou comparar este Armandinho Um aos rasgos de sátira escatológica libertária que caracterizam o venerável resquício da geração de 68. Esta publicação e os seus autores representa o lado mais vitriólico e interventivo do cartoon, o extremar visceral da caricatura de intervenção política e social. Um livro como este Armandinho está nos seus antípodas. É o tipo de cartoon simpático e inofensivo, que não levanta ondas nem incomoda, que só se mete com temas inócuos e toca nos mais elementares dos lugares comuns na tentativa de provocar fugazes sorrisos ao leitor.
Essa banalidade foi a sensação que ficou desta leitura. Recolha de tiras publicadas no jornal Diário Catarinense, fiquei surpreendido pela sua pouca originalidade. O estilo gráfico e narrativo replica a clássica Mafalda e todos os milhentos cartoons onde miúdos questionam e desmontam as ideias feitas ditas pelos mais crescidos. Adultos que raramente vemos, uma vez que o ponto de vista está ao nível da altura da criança. Neste, são representados por pares de pernas que se agigantam perante a pequenez da tenra idade do personagem. Segue as estruturas do género, mas não esperem grandes rasgos filosóficos ou afirmações de ironia acutilante que põem a nu os absurdos dos lugares comuns do mundo contemporâneo. O melhor que estas tiras conseguem é arrancar algum sorriso naquele espaço onde o espírito ingénuo infantil colide com as regras do dia a dia. Algumas são de todo incompreensíveis, por se referirem a factos muito específicos da realidade local do jornal onde foram publicadas. É uma estranha decisão editorial, a de incluir para os leitores portugueses elementos que só nos seriam compreensíveis se vivêssemos em Santa Catarina.
Se se for fã das pequenas idiossincrasias do dia a dia, este é um livro que agradará. Se a inclinação for mais para a vertente interventiva do cartoon, deixa muito a desejar. No texto e desenho este é um livro simpático, tão simpático que se queda morno, previsível, centrado nas pequenas ironias das rotinas da vida normal. Igual a tantos que há por aí nos escaparates das livrarias, nos rodapés dos jornais ou partilhados sem cessar nas redes sociais. Não deixa de alguns pontos interessantes, mas no global fica muito aquém do que poderia ser. O melhor momento do livro é aquele com que termina: com o Armandinho entre sinais de STOP e Pense. São boas intenções, mas que não se reflectem ao longo deste livro mediano.
Autor: Alexandre Beck
Editora: O Castor de Papel
Páginas: 96, capa mole
PVP: 9,54 €