Star Wars: Despertar para a Força

Chegou o momento da estreia de The Force Awakens, depois de meses de especulação mediática alimentada por uma máquina de marketing de dimensões inéditas. Algo incerto sobre o que significa a mania Star Wars que tomou conta de convenções, fandom e media, com a bússola desnorteada, e a inevitabilidade da sala de cinema a aproximar-se, o que é que significará, realmente, esta saga? Tl;dr: este vai ser um texto repleto de observações óbvias.

Devo confessar que sempre tive uma relação conflituosa com A Guerra nas Estrelas. Por um lado, como não ficar deslumbrado com a aventura interminável na galáxia, pelas naves espaciais, delirantes batalhas no espaço? Por outro, sendo fã e conhecedor com alguma profundidade das dimensões da ficção científica, o sentido critico entra em acção e as incoerências gritantes da série, bem como o seu afastamento dos pressupostos e estruturas conceptuais do lado mais sério no género, impedem-me de desfrutar dos filmes (e dos jogos, livros, comics e do restante longo etcetera transmediático) de forma acrítica. São filmes divertidos e entusiasmantes, visualmente deslumbrantes, mas a acumulação de calinadas e pontapés na ficção especulativa tornam-nos algo insuportáveis… e não consigo esquivar-me ao seu fascínio.

Com os primeiros filmes, a relação é temperada pela nostalgia. A minha descoberta da Ficção Científica não se iniciou com eles, mas no também absurdo e encantador Space: 1999 na televisão a preto e branco dos anos 80. Agruras daquela época antes do surgir da Internet, onde se esperava meses ou anos até descobrir, finalmente, um filme, um disco ou um livro. Quando finalmente os vi, fiquei fascinado. Especialmente com o choque frontal com a aventura pura do primeiro filme e a espantosa batalha espacial do terceiro, para mim uma das grandes referências da cinematografia de Ficção Científica. Já o segundo, quinto na cronologia oficial, a começar a entrar em pseudo-misticismos e aprofundamento emocional de personagens interessantes por serem superficiais, sempre me deixou indiferente. As prequelas impressionaram menos, com o foco quase telenovelístico nos dilemas dos personagens e a sua estética de deslumbre descarrilado com os efeitos especiais digitais.

O traço de Al Williamson nas tiras para jornais.

O meu primeiro contacto com a saga ocorreu não no cinema, mas através da banda desenhada nas páginas do extinto Diário Popular. Este jornal no final dos anos 80 publicava as tiras diárias das aventuras de Skywalker e amigos, em histórias condensadas para agarrar o leitor em quatro vinhetas com continuidade diária e uma prancha espectacular aos domingos. Sem o saber, estava a ser exposto ao trabalho de lendas dos comics como os argumentistas Russ Manning e Archie Goodwin e ao traço de Al Williamson. Um grafismo que, mais do que os filmes, fixou na minha mente a iconografia das personagens e naves.

Armageddon 2419: a primeira aparição de Buck Rogers.

Enquanto aprofundava os meus conhecimentos sobre a evolução da ficção científica, passei a admirar o trabalho de George Lucas com o primeiro filme, como obra que pega com literalidade e espectacularidade nos estádios da jornada do herói de Campbell e cruza Space Opera com a inocência dos serials cinematográficos dos anos 30 do século XX entre o Western, a fantasia e a Ficção Científica, inspirando-se nas temáticas e estruturas narrativas que caracterizaram este género literário na época em que este se encontrava ainda a amadurecer. Os paralelos visuais e conceptuais com Buck Rogers e Flash Gordon são intencionais, entre o barroquismo visual, sense of wonder, personagens como Solo, o aventureiro prototípico actualizado para uma moral mais duvidosa, ou Leia, ao mesmo tempo a princesa a ser salva e a personagem feminina que se recusa a ser passiva, muito ao estilo de Dale Arden. Tal como os inimigos implacáveis, os impérios estelares opressores que sugam uma esperança que apenas os heróis conseguem reavivar. Vader é Ming, o impiedoso, o Império os mongóis que dominam a América do século XXV a partir das suas sumptuosas cidades flutuantes. É um pastiche evocativo, e muito eficaz a entranhar-se na mente dos públicos.

Flash Gordon, a mais forte influência em Star Wars.

Públicos esses que abraçaram a Força da saga com uma paixão inigualável noutros fandoms. Trekkies, Whovians e Potterheads são conhecidos pela ferocidade da sua dedicação às suas séries favoritas, mas empalidacem perante o fervor dos fãs de Star Wars. Comunidades dedicadas, que se dedicam ao cosplay detalhado, recriam as cenas favoritas com um certo pendor para duelos de sabre, conhecem a fundo o cânone dos filmes e variantes introduzidas por uma legião de livros que a torna numa das grandes séries literárias de Ficção Científica. Grande, não pelo reconhecimento da qualidade, apesar de ter alguns autores bem conhecidos e conceituados do género a escrever alguns dos livros da série, mas pela sua extensão. Diria que só a série Perry Rhodan, com os seus quatro mil volumes de edição contínua quase desconhecidos fora da Alemanha, supera a quantidade de publicações de livros da série Star Wars.

The Star Wars: a banda desenhada a dar corpo aos filmes que poderiam ter acontecido.

Os comics são outra das vertentes de expansão da série, cujos personagens e aventuras têm ganho nova vida e sido expandidos através da banda desenhada. Falar disso seria pano para uma longa discussão. Sublinho apenas The Star Wars, a experiência da Dark Horse em 2013, com Jonathan Rinzler a adaptar o guião original do primeiro filme e Mike Mayhew a ilustrar. É um exercício curioso de descoberta de diferenças, conseguindo-se perceber que se tivesse sido seguido este primeiro guião o filme resultante seria estrutural e visualmente mais similar a The Phantom Menace, o primeiro filmes das prequelas, do que ao original A New Hope, com algumas diferenças que espantam os fãs. Nomeadamente, Alderaan ser o centro do império, a iconografia de Vader a ser decalcada de um alto oficial nazi, os ubíquos caças TIE serem visualmente o que os destroyers imperiais são no filme, a loquacidade de R2D2 e um C3PO ainda mais similar ao andróide Maria do memorável filme Metropolis de Fritz Lang, toda a história ser um enredo mais tradicional de valentes soldados que defendem princesas ameaçadas por imperadores sedentos de poder. Alguns pormenores deixarão os fãs muito surpreendidos: os sabres de luz são utilizados pelos Stormtroopers, e Han Solo um gigante saurópode verde, mais Tars Tarkas de John Carter com um par de braços a menos do que o afável patife com o seu cão bípede que se fixou na memória dos fãs.

Os fãs são renhidos, diga-se. Querem sentir a adrenalina de um desporto radical, viver perigosamente? Experimentem começar uma discussão online com fanboys renhidos dizendo que gostam da série mas apontando inconsistências ou óbvios erros científicos. Vá, desafio-vos. Atrevam-se.

Talvez o que causa esta empatia entre fãs e série esteja na forma como os filmes quebram a parede meta-ficcional que separa a ficção do espectador. Notem que no centro de tudo, a iniciar a série, está um personagem que quebrava a barreira do ecrã, o jovem inocente e deslumbrado levado à aventura, que entra num percurso iniciador que o levará à descoberta de maravilhas. No fundo, o personagem que nos representa a nós, fãs da ficção científica e fantástico, cujo deslumbramento retrata o que sentimos aquando dos primeiros merglhos na ficção de género. Quer tenham sido numa revista de contos, num livro de capa empolgante, numa banda desenhada surripiada às atenções dos adultos empenhados na exclusão de leituras tidas como sem seriedade, ou num ecrã de cinema ou televisão. Luke Skywalker somos todos nós, e o primeiro filme capta essa metáfora na perfeição.

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A arte conceptual de Ralph McQuarrie que estabeleceu a estética do universo Star Wars.

Tudo isto embrulhado numa enorme espectacularidade visual, cinematografia cuidada e efeitos especiais de fazer cair o queixo, que tornaram tangíveis e parte da memória comum a estética de Ralph McQuarrie. E também um bizarro sentido de humor submerso debaixo da espectacularidade visual. Estamos a falar de um filme em que os piores vilões são denominados sob o mal disfarçado acrónimo de The Shit, os nomes de boa parte dos personagens parecem ter sido inventados no final de longas noites bem regadas a alcool (como, por exemplo, os Mon Calamari, claramente criados enquanto os argumentistas trincavam argolas fritas de calamares). Pormenores que deveriam despertar os filtros de treta de qualquer um, mas que estranhamente, no seu conjunto, funcionam. A suspensão de descrença é forte entre os fãs desta série.

Para quem conhece e admira a Ficção Científica, apreciando a especulação bem informada e a reflexão sobre o papel da ciência e tecnologia no mundo que nos rodeia, estes filmes são atrozes. Misteriosas forças místicas que conferem poderes aos por elas bafejados. Uma preguiça completa na plausibilidade de tecnologias avançadíssimas. Notem, por exemplo, as dificuldades do Millenium Falcon em saltar para o hiperespaço porque o “motivador” do motor se avaria. Vou sublinhar: o motivador do motor. Algures, algum argumentista soltou gargalhadas enquanto escrevia esta piada à custa da busca por plausibilidade tecnológica da melhor Ficção Científica. O sublimar de ordens sociais antagónicas em que ambas são um pesadelo do ponto de vista do progressismo social, focado num império notoriamente fascista que derrubou uma decadente ordem sustentada por misticismo e aristocracia, ameaçado por rebeldes que lutam pelo restauro das glórias do passado. Legiões de soldados que apesar de equipados com armas laser e armaduras mostram uma notória falta de pontaria. Sabres de luz, só aqui toda uma categoria de incoerências físicas e tecnológicas. Sonoras explosões no vácuo do espaço. A lista, longa, continua.

Sabemos que estes elementos são uma apropriação irónica da estética e pressupostos da Ficção Científica clássica, mas bolas, descarta todo o esforço desenvolvido ao longo de décadas para a afirmar como algo mais do que ficção de aventuras escapista, explorando-a como forma de reflectir sobre mundos contemporâneos determinados como nunca na história humana pela tecnologia, através da sua extrapolação em futuros com diversos níveis de plausibilidade.

Não ajuda a série ter-se tornado numa máquina de marketing. Os filmes são veículos virais comerciais cujos lucros a médio prazo assentam na venda do mais variado merchandising. Star Wars é o maior exemplo de como um filme pode dar origem a um império transmedia que explora o lucrativo filão de legiões de fãs ávidos pelos adereços dos filmes, e expansão do seu mundo ficcional em séries de livros, banda desenhada e jogos de computador. A profusão de personagens, naves, veículos e espécies alienígenas há muito que extravasou o campo da expansão do mundo ficcional para os domínios dos estudos de mercado. As estreias dos filmes são cronometradas com épocas propícias à maximização de lucros advindos do merchandising associado à série. Semanas antes da estreia as lojas enchem-se de produtos manufacturados a baixo custo e vendidos com elevadas margens de lucro. Qualquer fã com sentido crítico mais apurado já se terá certamente questionado se a série é um foco de cultura pop ou marketing apurado em grupos de foco.

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Os navegadores da guilda, deformados pela especiaria que lhes permite navegar no hiperespaço, em Dune de David Lynch.

Apesar das suas muitas falhas e inconsistências, é inegável o poder desta série que se entranhou na consciência popular, fruto da colisão entre a qualidade narrativa, a iconografia e o marketing. Mas esta última vertente não seria possível sem as primeiras. São estas as que capturam o interesse dos fãs. Isso é notório se enquandrarmos esta saga com outras obras de Space Opera cinematográfica de melhor qualidade ou pensadas para agradar ao grande público que não conseguiram atingir o sucesso que esta atingiu. Note-se, por exemplo, o inquietante Dune, ainda hoje relativizado por se centrar num misticismo e surrealismo longe de uma Ficção Científica que, apesar de se imaginar eternamente vanguardista, é de facto conservadora na sua estética. Paul Atreides não se tornou um ícone cultural, nas convenções não se encontram cosplayers de navegadores da guilda (e diga-se, seria um cosplay fantástico), e não há por aí fedayeen assumidos como há Stormtroopers imperiais. As Crónicas de Riddick também apostam no barroquismo estético e intricacias políticas bizantinas, mas não conseguem passar a fasquia de veículo cinematográfico para actores de acção. Já Jupiter Ascending prometia ser a Star Wars do século XXI, como space opera ambiciosa a todos os níveis, de estética marcante, iconografia com potencial comercial em merchandising e uma estrutura narrativa contemporânea que toca quer na Ficção Científica tradicional, quer no gosto popular pela fantasia urbana (e, noutra vénia a Star Wars, cheio de inconsistências e pontapés dolorosos na lógica), mas que não conseguiu fixar-se no gosto dos públicos.

E, no entanto… não me consigo libertar do fascínio da série. Reconhecendo o seu comercialismo, irritado pelos atropelos ao conhecimento científico, pela falta de lógica, não deixo de ser atraído pela chama das batalhas no espaço e das aventuras na luta contra a ordem imperial. Talvez seja humano, ou ser influenciado pela mediatização. Ou talvez, apesar das muitas leituras e filmes para além de Star Wars, nunca tenha deixado de me sentir como Luke Skywalker quando colocou o pé fora do planeta deserto de Tatooine e embarcou à aventura pela galáxia. É esse o sentimento que espero rever quando, depois de me esquivar misantropicamente às legiões de espectadores dos primeiros dias após a estreia, me sentar perante o ecrã prateado e contemplar as primeiras imagens do novo filme a brilhar dentro da sala escura.

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