A exposição “Viagem Desenhada”, de Ricardo Cabral, inaugura este sábado, 26 de setembro, às 17h30, na Casa da Cerca (Almada) marcando, assim, o início da programação satélite do AmadoraBD 2015 – Festival Internacional de Banda Desenhada, que acontece de 23 de outubro a 8 de novembro, no Fórum Luís de Camões (Amadora).
Ricardo Cabral – autor em destaque da edição de 2013 do Amadora BD – foi o escolhido no universo da ilustração e da banda desenhada para refletir o tema que este ano norteia a programação da Casa da Cerca, a “Viagem”. Constituindo um percurso pela obra do autor, a exposição reúne diversos trabalhos, nomeadamente cadernos e esboços ligados aos seus livros que têm esta temática como ponto de partida, dos quais são exemplos: Evereste (2007), Newborn – 10 dias no Kosovo (2010), Israel Sketchbook (2009), Pontas Soltas – Cidades (2011), Comic-Transfer (2013) e Pontas Soltas – Lisboa (2014).
Apresentação da Autor e Exposição
por Sara Figueiredo Costa
Registos de viagens podem ser simples descrições de um espaço ou discursos mais complexos sobre a existência desse espaço na sua interacção com quem o visita. Ricardo Cabral, autor de banda desenhada e ilustração com várias obras publicadas, tem trabalhado o registo de viagens de um modo particularmente consistente, em livro ou histórias curtas, num traço que tem evoluído e sofrido as mutações do tempo sem nunca perder a identidade.
Assumindo uma primeira pessoa na narrativa e colocando-se enquanto personagem activa dessa mesma narrativa, ao mesmo tempo que assume parte dos seus livros (Israel Sketchbook e Newborn. Dez Dias no Kosovo) como relatos de viagem, documentais, Ricardo Cabral esbate a fronteira que define o pacto de leitura ficcional. E se esse esbatimento não coloca problemas nos dois livros referidos, as histórias curtas publicadas em volumes onde a ficção é presença explícita (Pontas Soltas, por exemplo) tornam mais complexo este edifício onde diferentes camadas de verosimilhança se sobrepõem.
O facto de os dois livros serem assumidamente relatos de viagem não os coloca, no entanto, no patamar da reportagem, e esse é um factor importante na leitura da obra de Cabral. Por um lado, sabemos que aquelas páginas resultam de viagens concretas e da vontade de dar a ver uma determinada realidade; por outro, não há no discurso de Cabral qualquer gesto que aponte para um processo jornalístico. Mais do que a reportagem, género jornalístico que tantas vezes se refere perante o trabalho de Ricardo Cabral, importa invocar o género diarístico, chamemos-lhe assim sem entrar, aqui, numa discussão sobre géneros e sub-géneros literários.
Associado ao relato de viagem, o diário incorpora características que se reconhecem nestas pranchas, do desabafo mais quotidiano à expressão de inquietações ou entusiasmos face ao que se vai encontrando, e sempre no registo da primeira pessoa. Tal como na reportagem, espera-se que um diário, sobretudo de viagens, não seja o resultado da invenção do seu autor, mas que tenha algum grau de contacto com aquilo a que chamamos realidade. Só que, ao contrário da reportagem, o diário não obedece a códigos jornalísticos, nem está de modo algum obrigado a manter com a pluralidade de pontos de vista, fontes e informações qualquer contrato ético, pelo que a sua liberdade para definir a narrativa é total. É assim que as narrativas de viagens de Cabral podem passar de um momento de descrição de um determinado espaço para uma digressão emocional sobre as emoções do narrador perante a
insegurança ou o medo.
Uma das particularidades dos livros de viagens de Cabral é a quase total ausência da sua autorepresentação, preferindo compor cada prancha como o resultado da sua observação, mantendo o ângulo e o ponto de vista. Temos, então, um narrador participante, mas que opta por manter a sua figura fora do campo da prancha (salvo momentos muito particulares, mas mesmo nesses, o mais comum é aparecer apenas uma parte do corpo, uma sombra, uma fotografia pouco nítida). O resultado é a ilusão narrativa que cria no leitor a possibilidade de ver o mesmo que o narrador, numa coincidência de pontos de vista que atravessa parte considerável dos registos de viagens do autor.
Um outro traço definidor do trabalho de Ricardo Cabral é o recurso à fotografia como parte essencial do processo de desenho. A cor utilizada nos seus livros de viagens resulta das fotografias que o autor tirou nos locais e que utilizou, posteriormente, para construir a paleta cromática com que trabalha, no computador. Este processo, que em Israel Sketcbook era sobretudo de aplicação da cor, evoluiu enquanto modo de registo e construção da narrativa, pelo que em Newborn. Dez Dias no Kosovo já vemos a fotografia incorporada no livro, criando sequências de vinhetas.
Nos livros de viagens de Ricardo Cabral, o tom é o da descoberta passo a passo, sem que se vislumbre qualquer receio de resvalar para a ingenuidade ou o espanto perante o que o narrador desconhece. Sem fingir dominar o terreno, recusando aquela sobranceria que faz de alguns relatos de viagens uma tentativa desesperada para recusar o papel de turista e assumir o de flaneur, o narrador de Cabral não teme esse papel. Em Newborn. Dez Dias no Kosovo afirma-o, aliás, com toda a naturalidade, quando regista à vista do Monte dos Mártires e assinala a estranheza de um grupo de crianças ao vê-lo naquele lugar: “Imagino que, por aqui, turistas perdidos como eu sejam raros.”
Apesar dessa humildade na caracterização do autor-narrador, o trabalho de Ricardo Cabral não se define pela mera estruturação de um itinerário ou pela divulgação acrítica das características dos lugares que visita, mas antes pela construção narrativa e imagética de um espaço, de vários espaços. Em Israel, no Kosovo, em Barcelona ou em qualquer outro destino, o olhar do autor é a ferramenta que permite criar um novo espaço, onde se reconhecem os elementos ‘reais’, mas onde os pequenos episódios, as observações momentâneas e as descobertas inesperadas erguem um novo lugar, tão único quanto inalcançável fora destas páginas.
No dia 31 de outubro realiza-se uma visita à exposição orientada pelo autor e a exposição permanece até dia 10 de janeiro de 2016.