A primeira edição do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, em 2005, revelou um segredo bem guardado: para além de um ou outro autor cujo trabalho, de vez em quando, aparecia em fanzines, havia em Beja todo um valioso conjunto de autores. A tribo da banda desenhada que pela primeira vez se deslocava à planície alentejana perguntava-se como seria possível que nunca tivesse ouvido falar em nomes como o de Susa Monteiro.
Para além de uma exposição coletiva, a organização do festival garantia que a descoberta não se iria perder na memória (geralmente curta) dos visitantes da tribo da BD, brindando-os com duas publicações onde os autores bejenses assinavam bandas desenhadas de grande variedade gráfica e temática. Uma das publicações, o Venham +5, era uma antologia de histórias curtas. A outra, identificada sob o signo da “Coleção Toupeira” permitia histórias mais longas.
A partir deste momento definidor do primeiro festival, os autores de Beja já não passavam despercebidos. Enquanto se lançavam sementes para outros voos (como a colaboração entre Susa Monteiro e José Carlos Fernandes), nesse mesmo ano de 2005, Susa Monteiro e Paulo Monteiro tinham originais expostos no Festival da Amadora, inseridos na mostra coletiva Nemo no Século XXI. No ano seguinte, a segunda edição do festival bejense dava conta do efeito da bem recebida primeira edição do festival sobre a produção local. Na exposição, lá estava a banda desenhada mais introspetiva de Susa e Paulo Monteiro, a imaginação sem limites de Véte, o universo pessoal de Maria João Careto, e os outros. O Venham +5 aparecia menos disperso. Na coleção Toupeira, Lam sucedia a Véte mantendo toda a energia do projeto.
Esta montra para a produção bejense, misturada com autores consagrados – nacionais e estrangeiros – de acordo com a fórmula de que falei na última crónica, sublinhava a identidade do festival de Beja. Recorde-se que na Amadora, a atenção para a produção local vive sobretudo dos concursos municipais de banda desenhada, promovidos junto das escolas do concelho, em que estamos num nível necessariamente diferente do que é a banda desenhada (profissional, no sentido dos prémios recentemente atribuídos) em destaque no AmadoraBD. A ligação de autores consagrados com a Amadora (José Ruy, José Garcês, Fernando Relvas, Jorge Miguel e outros) não é esquecida, mas não é uma das linhas de força da concepção e concretização do festival da Amadora.
Voltemos a Beja. Ao longo dos tempos, por questões diversas, a montra para a valiosa produção de Beja foi sendo desmontada. Num primeiro momento, a exposição coletiva sobre a atividade do atelier Toupeira e dos autores ligados a Beja, que fazia parte do festival, foi deslocalizada do palco central da casa da cultura. Acabou por deixar de integrar a programação.
Em dez edições de festival, a coleção Toupeira aguentou seis números e foi descontinuada. O Venham +5 conheceu sete números.
Quando, em 2010, Paulo Monteiro publica “O Amor Infinito que Te Tenho e Outras Histórias”, já não há qualquer articulação com o projeto editorial da Bedeteca de Beja, nem com a atividade do atelier Toupeira. Mesmo se Beja está presente neste premiado primeiro álbum do autor.
Numa nota para divulgação (bem) elaborada por Beja (acolhida também aqui no aCalopsia, ainda que sem qualquer indicação sobre as fontes das estatísticas apresentadas), diz-se que Beja “(t)em 23 autores de banda desenhada no activo, o que a coloca em terceiro lugar (depois de Lisboa e Porto), todos eles “formados” no ateliê Toupeira, o mais antigo do país, a funcionar desde 1996”. Pergunta-se: onde estão? O que estão a fazer?
O Festival de Beja deixou de o mostrar.
Haverá certamente muitas razões para esta perda de visibilidade para a produção de banda desenhada made in Beja, desde logo, arrisco-me a adivinhar, orçamentais. Não sei se foram equacionadas soluções alternativas (co-edição, parcerias). Mas o facto de o Festival de BD de Beja ter deixado de apresentar o “seu” coletivo de autores, no que era uma das mais extraordinárias vertentes do projeto da cidade em torno da banda desenhada, é o que menos gosto no festival.
Bem… depois desta, acho que vou ter de voltar aos “bonecos” 🙂 É verdade que o atelier foi perdendo fôlego até se extinguir, sendo que muitos dos autores já nem estão em Beja, e alguns já nem fazem BD. Muito já falámos sobre o assunto internamente, até mesmo em comparação com outros grupos de autores que despontaram internacionalmente, enquanto nós pelo contrário íamos “definhando”… há planos para republicarmos todo o catálogo do Atelier, e voltar à publicação de novas BDs,mas num formato indepentende e não em papel. Resta saber apenas se nos ficaremos apenas pelos planos, ou se os conseguiremos concretizar…
Olá Pedro!!! 🙂
Aquilo que tu menos gostas no festival de Beja é também aquilo que eu menos gosto. E também aquilo que eu menos gosto que aconteça no nosso país.
Os últimos anos foram difíceis… E se é difícil fazer face às adversidades em Lisboa, ainda é mais no interior (às vezes não há essa percepção). Da equipa existente nos primeiros anos do Toupeira a Maria João Careto foi a primeira a partir. Para Portimão. O Ricardo foi para Lagos. O Apolo foi para o Cacém. O Lam para Lisboa. O Vitor Cabral para o Brasil. A Rita para França. O Páscoa para Inglaterra. A última, o ano passado, foi a Inês Freitas. Também teve que fazer as malas e ir embora. Outros amigos, que não eram autores mas que gravitavam à volta do projecto, foram para a Suiça, para a Holanda. Outros ainda para os arredores de Lisboa. Viver no interior de Portugal não é fácil. O emprego nem sequer é precário. Simplesmente não existe.
Antigamente, há meia dúzia de anos, quando íamos beber café, éramos 13 ou 14. Juntávamos as mesas e era uma festa. Hoje somos dois ou três.
A vida em Beja é, sob muitos aspectos, maravilhosa: as pessoas são de uma gentileza incrível (não nasci em Beja, por isso não sou suspeito). A cidade é incrivelmente bonita. Os miúdos ainda brincam na rua e jogam à bola nas noites de Verão (até à 1 da manhã). No Verão, o cheiro que vem dos campos à noite inunda as esplanadas. Nos arredores é fácil ver as estrelas. E animais. E riachos, vacas, cegonhas. O campo está aqui mesmo à mão. Podemos andar na rua a qualquer hora da madrugada. As pessoas conhecem-se. São solidárias. Amigas. Mas não há empregos…
A Câmara faz o que pode para fixar os jovens: há teatro, cinema, exposições sobre dezenas de temáticas, desporto para todos e milhares de iniciativas (quase sempre a preços simbólicos). Mas não há empregos.
A verdadeira razia que se abateu sobre o Toupeira (e que levou a maior parte dos autores a partir) acontece um pouco por todo o interior, de Norte a Sul. Os mais jovens (e não só) precisam de se fazer à vida. E infelizmente vão embora. Mas sim, são 23 os autores de banda desenhada de Beja. A maior parte não está cá. Mas são! E temos ideias e projectos para o futuro!
Em 2012 passámos por imensas dificuldades para montar o Festival. Fizemos o Festival com 150 euros (não é segredo – nem gralha -, os números são públicos). Mas fizemos. Nunca equacionámos não fazer (e falo de toda a Câmara). Mas a falta de verba e a distância entre os vários autores do colectivo levou a que não se fizesse nem exposição nem fanzine. Em 2013 aconteceu o mesmo… Não conseguimos verba para a edição – mas há histórias “em carteira” 🙂
Quanto ao Toupeira, tudo o que posso dizer é que não morreu! Nem a ideia de dar a conhecer autores menos conhecidos entre a maior parte do público (de Beja ou não). O Prémio Geraldes Lino é disso um bom exemplo. Os ateliês semanais que damos ao longo de todo o ano na Bedeteca (e as centenas de ateliês que damos nas escolas) também vincam a preocupação em formar autores! E existem vários em Beja. Muito novos, ainda 🙂
Em relação ao colectivo Toupeira, a verdade é que estamos juntos (apesar do cepticismo do Véte 🙂 ). Estamos juntos, apesar das distâncias. Vamos fazer um número ainda este ano (ou talvez no próximo ano). E íamos fazer uma exposição este ano no Festival (que passou para mais tarde por motivos que mais tarde se explicarão).
O futuro está aí à porta. E as coisas têm que melhorar. Fizemos um intervalo, mas não nos fomos embora.
Quanto ao facto de termos feito algumas exposições do Toupeira, no Festival, fora do núcleo “principal” a Casa da Cultura, também não significa que haja exposições de primeira e exposições de segunda! Tratamos todos os autores da mesma maneira (este ano o Guido Crepax não esteve exposto na Casa da Cultura. E não é certamente um “autor de segunda”).
As exposições são colocadas nos locais que nos parecem mais adequados, apenas isso. Quanto ao meu livro não ter nada a ver com o colectivo. Bom… Todos temos projectos individuais que ultrapassam o colectivo (a Susa, o Véte, etc.). Mas um projecto muito querido em comum: o Venham + 5 🙂
Um abraço!!!
Ah, e esqueci-me de referir: grande parte das dificuldades que superámos (principalmente em 2012 e 2013), só o conseguimos fazer com o apoio de muita gente! E entre eles, tu, que foste sempre de uma generosidade sem limites!!! E ainda és!!! Basta ver o último Festival 🙂
Um abraço, Pedro!!!!
Tal como referi na crónica anterior a esta, o mérito da proximidade – que faz sentir que é possível colaborar ativamente em cada edição do festival -, é muito da equipa.
De qualquer forma, muito obrigado pelas palavras.
E no resto, muito obrigado (aos dois) por estes esclarecimentos adicionais. A preocupação da crónica era muito essa que abordaram: o que pode o município fazer quando lhe aparece um coletivo de autores? E o que pode fazer esse coletivo?
Foram coletivos de autores que estiveram – ao lado dos municípios – no nascimento dos festivais da Amadora e de Beja. Num caso como no outro, a dado momento, desapareceram os coletivos e ficaram os municípios.
Existe pouco que o municípios possam fazer se o mercado não cria condições para o desenvolvimento e sustentação financeira dos artistas, e neste caso não estamos só a falar da situação da remuneração pelo trabalho enquanto autores de BD. Como o Paulo mencionou, no caso de Beja existem outras condicionantes.
Aquilo, que os municípios podem – e devem fazer – é criar condições para a promoção dos trabalhos dos autores. Agora sem outras situações serem melhoradas, só os municípios não vão ser capazes de resolver as situações, e os colectivos vão continuar a aparecer e a desaparecer.
De salientar o Festival feito com 150 euros, se o Paulo Monteiro quisesse até podia ter inflacionado um pouco o orçamento, é que o tempo que os funcionários da Câmara despenderam e os espaços que foram utilizados foram alocados ao orçamento do festival para parecer que tinha havida um orçamento ou mais dinheiro gasto, já que os ordenados dos funcionários da Câmara foram pagos – embora até seja possível que tenha existo muita gente a trabalhar horas extras de borla.
Num país onde quando não existe dinheiro as coisas deixam de acontecer é de louvar não terem deixado morrer o festival por causa disso. E esta para mim é a principal lição, e aquilo que os municípios devem fazer: ceder espaços e proporcionar as condições para a criação e manutenção de eventos. Obviamente que um festival como o de Beja, merece um orçamento condigno!