Devo confessar que me surpreendi ao sentir um sorriso nos lábios quando terminei a leitura deste livro. Bolas, pensei, é só um livro de banda desenhada para crianças. Não deveria ser algo tão extraordinário que toque na empedernida alma de quem já conta com um certo peso do tempo e muitas leituras, e que ficou de pé atrás quando leu a expressão Cantinho à beira-mar plantado. A metáfora nacionalista pacóvia do país jardim à beira mar causa-me sempre alergias. Tontices, eu sei. Mas não espirrei, e sorri, porque o livro deixou um gostinho encantador.
Com argumento de Aida Teixeira, desenhos de Carlos Rocha e cor de Rá Taniças, O Espirro do Dragão é uma simpática aventura com amigos inesperados e um dragão alérgico à sua comida favorita. Não é um livro perfeito, apesar de conseguir encantar. O argumento cede à tentação de ir buscar muitos elementos do fantástico para uma história curta, perdendo com isso alguma coerência. Nota-se também alguma indecisão entre o contar de histórias para entreter e encantar e o contar com fins didácticos. A mensagem sobre o poder da amizade e entreajuda que este livro encerra é marcante e bem conseguida, mas o sub-texto sobre ecologia sente-se um pouco mais forçado. A história soa àquilo que suspeito ser: o tipo de história que uma mãe conta ao seu filho, amálgama de leituras e influências que vale mais pelo carinho nela colocada do que pelas possibilidades de um tipo de narrativa que tem sido muito explorado.
Por outro lado, sublinhe-se que este é um livro destinado ao público infantil. No fundo não interessa perceber a fisiologia da alergia do dragão, se a menina humana capaz de ver dragões e criaturas da floresta tropeçou mesmo numa realidade oculta ao olhar humano danificado pela sua desumanidade ou sofre de alucinações, ou se o feiticeiro mau é mesmo mau ou está apenas a projectar traumas do passado como forma de pedir ajuda para o seu sofrimento interior. Não são esses os caminhos deste livro. O objectivo é entreter com toque pedagógico, e da leitura que fiz diria que o conseguiu muito bem. Não é uma obra perfeita, nem tem que o ser. Viver num país onde o substracto cultural é reduzido e no que toca ás culturas de género ínfimo tem destas coisas. Todos os álbuns de BD têm de ser excelentes, as antologias literárias revolucionárias ou os romances obras primas. Como não o são, ficamos desiludidos ou ignoramos as falhas e salientamos os elogios. Mas numa cultura vibrante há espaço para o excepcional e para o mediano. Posso não considerar este livro um pináculo de excelência, mas não deixo de o achar bom. Fez-me sorrir, inesperadamente, recordam-se?
Se há área cultural onde a abundância reina é a da literatura infanto-juvenil, mercê do investimento educativo e projectos como o Plano Nacional de Leitura. Algo comprovável nas livrarias, onde se pode reparar na quantidade de escolhas. Já o haver diversidade é que é mais discutível. Encontramos algum romance fantástico, muita chic-lit para pré-adolescentes, os tradicionalmente pedagógicos livros que explicam bem explicadinho as coisas da vida, da ciência e de tudo o resto, e histórias de encantar com deslumbrantes ilustrações. Em muitos dos casos tão deslumbrantes e com estilos tão marcados que me pergunto sempre se foram criadas para agradar às crianças ou aos adultos. Há editoras especializadas neste mercado, algumas a investir apenas no melhor do que se faz no género, há prémios, há comunidades de prática que reúnem autores e ilustradores, há reconhecimento oficial. As escolas são um público cativo para dezenas de escritores, alguns de qualidade duvidosa, que se equilibram no limite entre promoção da leitura e auto-promoção mercantilista.
Só não encontramos neste mundo literário infanto-juvenil livros de banda desenhada. Claro, encontramos algumas traduções infanto-juvenis, há as Disney da Goody, e pouco mais. As bibliotecas escolares acumualam cópias gastas das edições do Astérix pela Meribérica e pouco mais. Albuns originais, criados por artistas portugueses, é coisa que rareia. Não resisto a cair no lugar comum de apelidar este livro como corajoso nesta vertente. Atreve-se a contar histórias aos quadradinhos às crianças, sendo original sem ceder aos vanguardismos do cânone vigente de ilustração para crianças. Um vanguardismo que, sublinho, é belo e pertinente mas parece mais interessado em cativar adultos do que o seu público alvo apregoado.
Isto leva-me à ilustração, outro ponto muito interessante do livro. O trabalho de Carlos Rocha é classicista, reflecte a estética antropomórfica da Disney clássica ou dos cartoons de Tex Avery e da Warner. É um estilo de identificação imediata, nostálgico e encantador, que está entre o simplismo do desenho a metro do cartoon industrial e a ilustração experimentalista com cunho pessoal de autor. O trabalho de linha de Rocha é bem complementado pelos rasgos vibrantes de cor de Rá Taniças, ilustradora que para além de possuir um nome (ou pseudónimo) fascinante dá ao livro um belíssimo carácter de ingenuidade infantil com a sua paleta de cores vivas e vibrantes.
O Espirro do Dragão é uma leitura divertida, encantadora e muito bem ilustrada. Adequado ao seu público alvo, é um livro que ficará tão bem na mesa de cabeceira de uma criança como nas estantes das bibliotecas escolares.
[box title=”Ficha técnica” style=”noise” box_color=”#f2ecdd” title_color=”#353535″]O Espirro do Dragão
Autor: Aida Teixeira, Carlos Rocha, Rá Taniças
Editora: Kingpin Books
Páginas: 44, capa dura
PVP: 11,99 €[/box]
Se lhe arrancou um sorriso, já valeu a pena.
E sim, utilizei o “canteiro à beira mar plantado” de propósito, nós, os mais crescidos, sabemos o que significa a expressão, mas as nossas crianças não sabem, e eu quis que soubessem que a acção se passa num jardim deste “canteiro”, sem lá colocar o nome do país.
Muito obrigado pela critica objectiva, e já agora aproveito para agradecer à Kingpin por, pela segunda vez, acreditar que editar BD infantil é um investimento no futuro. Assim se criam futuros leitores de BD.
Aida Teixeira
O “cantinho à beira mar plantado” é embirração pessoal minha. Felizmente quando espirro não pego fogo a nada… 😉
Não me deixa indiferente, pelo contrário, até me dá um gostinho especial, quando fazemos bd para miúdos e agradamos igualmente graúdos. Um forte abraço, amigo Artur Coelho.