A BD no Feminino

Segundo a recente divulgação dos resultados de um estudo sobre o perfil do público dos festivais de música, este público é mais constituído por mulheres do que por homens, sendo que 80 por cento dos inquiridos vão ao festival acompanhados de amigos.

Os estudos existentes sobre o público do AmadoraBD resultaram da iniciativa de Helena Santos, professora da Faculdade de Economia do Porto. Centraram-se nas edições de 1998 e de 2005 do festival.

Apesar de todas as condicionantes deste tipo de estudos (e das muitas críticas que, em particular, os estudos sobre o público do AmadoraBD receberam), revelaram alguns indicadores interessantes.

Em primeiro lugar, a constatação de que dois terços do público do AmadoraBD vem dos concelhos da Amadora (25%), Lisboa (25%) e Sintra (20%).

Em segundo lugar, a importância do público feminino (quase 40% da amostra, com maior expressão ao nível dos visitantes pela primeira vez).

Finalmente, o dado curioso de que a deslocação ao AmadoraBD tem, na esmagadora maioria dos casos, uma relevante componente de grupo: a visita é feita na companhia de familiares ou amigos, para não falar das visitas escolares.

Da conjugação dos três indicadores referidos resulta que a visita ao AmadoraBD devia ser antecipada, pela Amadora, como um momento de convívio. Como tal, é necessário criar dinâmicas que vão além da existência de molduras nas paredes. Num exemplo simples, na edição de 2013 do AmadoraBD faltaram as mesas que criavam espaço de convívio em edições anteriores do festival. Tudo o que existia eram uns bancos corridos, que tornavam impossível uma conversa com toda a gente sentada.

E resulta também que não deve ser menosprezado o público feminino, importando saber como é que o festival pode ir ao seu encontro.

Em 2003, quando a mulher foi o tema do AmadoraBD, estiveram em destaque autoras e personagens femininas, mas não as leitoras. Num artigo publicado no fanzine Bizarro, Sara Costa afirmava o seguinte: “sendo mulher e aficionada da Banda Desenhada, foi com curiosidade que esperei pela abertura do Festival, a 17 de Outubro, para poder apreciar esta mostra da BD sem preconceitos. Felizmente, tive o bom senso de não me iludir com grandes expectativas.” Com efeito, apurando o saldo final do retrato da mulher na BD, Sara afirmava: “Nunca me considerei feminista, mas a verdade é que a BD é (e vai continuar a ser nos próximos tempos) um ‘clube de homens’ e, por muito boa vontade que esses ‘homens’ tenham, a nossa sociedade nunca permitiu que as mulheres entrassem em ‘actividades masculinas’ pacífica ou rapidamente.No entanto, escolher o tema ‘mulher’ para exposições e festivais é sempre mais um passo para a progressiva integração da mulher nas ditas “actividades masculinas” e, portanto, motivo de aplauso”. Questiono se esta perspectiva e constatação de falta de integração continua, dez anos depois, actual.

Em termos internacionais, a década de 60 do século XX veio legitimar outras abordagens temáticas e artísticas, revelando a banda desenhada como uma forma de linguagem atractiva também para as mulheres. No entanto, o desenvolvimento do underground, da BD de autor e da quase totalidade da banda desenhada realizada por mulheres, foi sempre algo de marginal, alternativo, muito minoritário.

Em Portugal, o alternativo é o mainstream, e esta diferença de escala pode esbater-se. Em 2013, foram duas mulheres as desenhadoras dos dois álbuns distinguidos pela Amadora com os Prémios Nacionais de Banda Desenhada para o Melhor Álbum Português (Joana Afonso) e para o Melhor Álbum Estrangeiro publicado em Portugal (Alison Bechdel).

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1 Comments

  1. says: David Soares

    Olá, Pedro.

    Tenho uma opinião algo heterodoxa no que diz respeito a esta questão e que, por extensão, atiro sobre o espectro mais alargado da literatura e da arte generalizadas: existirão mais homens artistas do que mulheres artistas (pelo menos, assim parece, porque não existem, creio, estatísticas apuradas quanto a isso), porque criar arte é algo que está directamente relacionado com uma forma infantil de observar o mundo e as mulheres, em regra, não são tão infantis quanto os homens. Tenho ideia de que as mulheres, falando na generalidade, possuem um carácter muito mais pragmático e “no-nonsense” do que os homens – que, mesmo depois de adultos, continuam autênticos rapazes (contra mim falo). Esse fascínio infantil pelo mundo é essencial para a criação artística: a interrogação, o deslumbramento, a ideia de que gastar dias inteiros de volta de coisas que não vão servir para nada de utilitário não é, de todo, uma perda de tempo. Nesse sentido, não apoio a tese de que o suposto sistema patriarcal da nossa sociedade cerceia os impulsos artísticos femininos: o que se passa é que existem, por comparação com os impulsos artísticos masculinos, muito menos impulsos artísticos femininos. Isto não significa que não existam mulheres artistas – significa apenas que esta diferença inata entre homens e mulheres concorre para que existam mais artistas masculinos. Bem sei que este raciocínio poderá ser indigesto para muita gente, mas quanto a factos não há argumentos: hoje, a neurociência está do lado das diferenças inatas entre sexos e não do lado pós-moderno da cultura opressora e dos padrões formatados pela sociedade que foram o cavalo de batalha em épocas menos esclarecidas do ponto de vista científico.

    Além de que, no caso da BD, ainda existe outra componente importante: o lado visual da BD.
    A maioria das mulheres está-se nas tintas para a componente visual: quer enredos para imaginar, não quer ver imagens já feitas. Isso é flagrante no modo como o erotismo masculino e feminino se diferenciam: o primeiro é exclusivamente visual – o homem quer ver: o segundo é sensorial – a mulher quer sentir. Não é à toa que os homens vêem pornografia e as mulheres lêem romances cor-de-rosa. Neste sentido, a componente visual da linguagem da banda desenhada torna-a pouquíssimo atractiva para a maioria do público feminino.

    A sociedade ocidental (e a maioria das restantes, provavelmente) sempre foi patriarcal, à falta de palavra melhor, mas é mentira que as mulheres tenham sido sempre oprimidas e postas de lado pelos homens. Há mais exemplos do contrário, até – e as versões miserabilistas da história terão, mais cedo ou mais tarde, de ser revistas. O grande período de misoginia da sociedade ocidental é muito recente e começou com a descoberta científica de como, realmente, nasciam os seres humanos: até à data, pensava-se que os seres humanos nasciam de duas ejaculações, a masculina e a feminina e que o orgasmo feminino era essencial para a procriação. AInda existem ecos desta velha ideia na noção fundamentalista de que uma mulher violada que engravida teve prazer na violação, porque se não tivesse não haveria gravidez nenhuma: é uma crença ainda generalizada na América do Norte e no mundo muçulmano. Independentemente disso, quando essa ideia foi desacreditada no ocidente, passou-se do oitenta para o oito: como o orgasmo feminino não era necessário à procriação, começou a considerar-se a mulher como mero receptáculo e, a partir daí, inútil. Mas reitero que esta visão misógina é recente e contracorrente ao molde de pensamento generalizado até à altura. De resto, só estou a lembrar-me de outro período misógino nesse feitio, que foi o período da Roma Imperial, no qual a mulher era propriedade do homem. Aliás, nesse período os nomes femininos significam todos «filha de…» (como Agripina: «filha de Agripa», etc.). A visão de que as mulheres foram sempre rechaçadas pelos homens é errada, assim como é errada a noção de que não existem mais mulheres em determinadas áreas, como as artes. Não existem mais mulheres em determinadas áreas, porque elas não têm tanto interesse nelas quanto os homens.

    Um abraço,
    David Soares

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