Major Alvega: Velha Glória, Nova Nostalgia

As aventuras do Major Alvega, na edição fac-similada da revista Falcão #577, editada em conjunto com a revista Visão em formato coleccionável, recordam ao público leitor dos dias de hoje um herói que fez as delícias dos seus avós.

Esta edição é feita em parceria com o Clube Português de Banda Desenhada, que reeditará algumas icónicas e antigas revistas juvenis.

Iniciar com Alvega o redescobrir da Banda Desenhada juvenil clássica

Uma aposta que é claramente nostalgista, mas tem o seu valor. Recordo o exemplo da Ficção Científica, que evoluindo o género mantém constantemente viva a sua memória editorial, através de reedições e antologias que mantêm vivo o trabalho dos autores clássicos. Na BD, um dos problemas de revisitar constantemente as velhas glórias do passado é o não sentir que haja espaço, hoje, para algo semelhante mas adaptado à cultura contemporânea. Ou que talvez nos dias de hoje esse tipo de publicações já não se justifique, tendo em conta os novos panoramas mediáticos e o evoluir dos gostos do público.

Sobre os critérios de escolha, Pedro Cleto reflecte muito melhor do que eu o faria algumas dúvidas, especialmente no que respeita quanto aos títulos e edições escolhidos pela curadoria, ou o forte sentimento de sobreposição da vertente nostalgia à divulgação de história cultural. Tal como Cleto, também me pergunto qual é o racional por detrás da óbvia alteração ao formato original. Talvez a gráfica aprecie a normalização, mas como objecto que visa recuperar um lado historicista, esta alteração deixa algo a desejar. Sobre a colecção em si, já li por aí os expectáveis elogios1, e uma crítica alusiva à aparente falta de qualidade do aspecto gráfico, onde suspeito que haja por ali uma certa confusão entre reedição e edição fac-similada nos defeitos que são apontados. Onde se sente espaço para crítica negativa é na forma como as edições são apresentadas e contextualizadas na revista, ou melhor, a sua completa ausência. Percorra-se a revista Visão que inclui a Falcão e não se vê mais do que um curto parágrafo assinalando a edição. Nada sobre as escolhas, o historial da BD infanto-juvenil em Portugal, ou sequer dos personagens. Um vazio completo.

Apesar de extintas, estas edições não são assim tão raras. Podem estar mais acessíveis em bibliotecas a apanhar pó em hemerotecas, mas basta darem um salto a alfarrabistas ou à Feira da Ladra e encontram as revistas Falcão, Flash Gordon e outras ao quilo. O interessante da colecção é levar este revivalismo a um público que não é o habitual dos alfarrabistas ou convenções de banda desenhada. Recorde-se que a Visão tem abrangência nacional, chegando a zonas geográficas menos bem servidas pelo serviço público dos alfarrabistas. Neste aspecto, não é nada má iniciativa como forma de manter viva a história da Banda Desenhada.

Sobre a aventura de Alvega, personagem clássico dos comics britânicos centrado nas glórias da II guerra,  que regressa ao público leitor, não me pronuncio muito. Não tenho ilusões quanto à qualidade e pertinência, hoje, da maior parte das edições de cultura popular na Banda Desenhada, literatura, cinema ou televisão que fizeram palpitar o coração dos nossos antepassados. O tempo é-lhes cruel. A maior parte parece-nos hoje ilegível, patética ou excessivamente simplista, quando não indelevelmente contaminada por xenofobias ou misoginia. Os referentes culturais partilhados em que assentam desaparecem com a morte dos seus contemporâneos. Mesmo que documentados, parecem-nos sempre incompreensíveis à luz dos nossos referentes contemporâneos. A cultura popular envelhece mal, e são raras as obras que se aguentam com o passar do tempo. É uma das características da evolução cultural, e um prenúncio do que acontecerá às criações que hoje nos encantam. Dentro de trinta, cinquenta ou cem anos, quais serão os autores e personagens que ainda parecerão relevantes e mantidos vivos?

No que toca a géneros ficcionais, esta aventura é curiosa. Consegue misturar a aventura militar com um outro género de banda desenhada britânica para a juventude da altura, o desporto. Nos ares, Alvega bate-se contra o sinistro ás nazi Von Richter. Em terra, em amigáveis encontros de futebol e boxe, enfrenta um velho amigo e companheiro de armas, piloto dos bombardeiros que o ás luso-britânico tem de proteger. Vale o que vale, apesar do conhecedor de tecnologia aeronáutica da II guerra que há em mim assinalar que as ilustrações de caças Spitfire e Me109 ou bombardeiros Lancaster não estão nada más, e muito fieis às aeronaves originais.

Alvega, ou Battler Britton: um de entre muitos personagens que definiram um sub-género.

O género militarista foi uma importante força editorial nos comics britânicos dos anos 50 aos 80, dando origem a inúmeros personagens e publicações. Por cá, Battler Britton foi imortalizado na memória dos leitores de Alvega, mas o género incluiu criações tão díspares como Captain Hurricane, Rockfist Rogan, D-Day Dawson, Sgt Rock (mas não esse Sgt. Rock), Union Jack Jackson… e acho que percebem uma certa monotonia de exacerbar de visões patrióticas de gloriosos combates da  Finest Hour de uma Inglaterra em marcada decadência.

Uma temática que começou a quebrar com o realismo de Charley’s War, escrito por Pat Mills nos anos 70. Alguns destes personagens foram fugazmente recuperados por Alan Moore, Leah Moore e John Reppion em Albion. Das muitas publicações britânicas do género sobrevive, hoje, a clássica Commando.

Alvega é a tradução imposta para português de Battler Britton, criado nos anos 50 pelo argumentista Mike Butterworth e o desenhador Geoff Campion para a revista infanto-juvenil The Sun. O herói da II Guerra em terra, ar e mar cativou o público e depressa se tornou o principal personagem da publicação, posteriormente fazendo parte do lendário Lion e de outras publicações posteriores. Sobre este personagem e as suas aventuras, só consigo recomendar o trabalho de Garth Ennis. O argumentista irlandês tem tendência a travar o seu lado de extrema irreverência na reverência que sente pelas histórias de combate, especialmente as passadas na II guerra, com multiplas séries que exloram muito bem este género. Não esquece os personagems clássicos, e criou uma série excelente que revisita Battler Britton aquando da aquisição desta personagem pela DC Comics. A ilustração esteve a cargo de Colin Wilson. No cabeçalho deste artigo podem observar um dos exemplos da excelência gráfica desta série. A aviação militar e os personagens clássicos são temas queridos a Ennis, que os tem explorado em séries como War Stories para a Avatar Press, Johnny Red na Titan Comics ou o magistral Enemy Ace: War in Heaven, a partir do personagem homónimo de Robert Kanigher.

Alvega e as memórias do lusitanismo do Estado Novo

Por cá, o paladino de anglicidade Britton metamorfoseou-se no lusitano aristocrata Alvega graças às tendências de esmagamento cultural do regime do estado novo, que ainda o promoveu. Um puro-sangue luso a mostrar aos bifes o que é a valentia não poderia ser um mero capitão. Assim o obrigou a valorização de uma certa e estreita visão de identidade nacional. Os personagens importados tinham de ser adaptados para fingir que representavam aquele indómito espírito lusitano que o fascismo português tanto queria implementar. Um caso similar se passou com Mickey e Mussolini, que para impedir a influência nefasta deste popular personagem sobre os jovens italianos forçou a sua alteração para Topolino, como se a genialidade criativa tivesse nascido do fogo do logos fascista. São mistificações, típicas de regimes opressivos que se socorriam da propaganda em quaisquer meios para alicerçar pretensões de legitimidade do poder. Ironia das ironias: hoje, são artistas italianos os responsáveis pelos argumentos e desenhos das aventuras Disney.

Sincronicidades. No dia em que soube que a Visão estava a editar esta colecção, cruzei-me com um livro de aforismos de António Ferro numa daquelas bancas de livros que ocupam a via pública nas estações de metro. Nada contra estes negócios, tudo a favor, a carteira é que não agradece. Fiquei intrigado pelo prefácio, que apontava Ferro como um dos grandes nomes do modernismo literário português2, a ombrear com Pessoa ou Almada Negreiros. Fiquei surpreendido. Não sei o suficiente sobre história da literatura portuguesa moderna para contrapor, mas suspeito que haja ali muito exagero. Que até se compreende. Quando se é o responsável pelo Secretariado de Propaganda Nacional, organismo do Estado Novo cuja nomenclatura indica a função que serve aos mais despistados, pode-se dizer estas coisas que ninguém se atreve a contrariar.

lino
A estética de um revivalismo tradicionalista que foi explorado pelos ideólogos estéticos do Estado Novo

Quanto aos aforismos em si, eram as típicas banalidades moralizantes de um senhor de um regime, consciente da sua balofa importância. Escritos de uma figura cuja qualidade literária era inversamente proporcional à sua importância política, pouco melhores do que muitos posts de resmungo que pululam nas redes sociais de hoje. Deixei o livro na banca, recordando que devemos à estética de António Ferro e do SNP a Torre de Belém, a mitificação de uma visão folclórica do tradicional português no estilo arquitectónico de Raul Lino, a portugalidade bucólica, e o Portugal dos pequeninos. Um daqueles monumentos de visita de estudo obrigatória para as escolas que, tal como o Museu da Marinha, cujo nome ninguém sabe pronunciar correctamente. Aposto que não se aperceberam que é Portugal dos Pequenitos e Museu de Marinha. Enfim, resquícios culturais, que ficaram arreigados numa memória contemporânea que desconhece o seu artificialismo como constructos culturais legitimadores de um regime, tendo esquecido as raízes destas estéticas num período especialmente bafiento da história portuguesa. Por coincidência, o mesmo período focado pelo revivalismo desta colecção da Visão.

Já que mencionamos revivalismos, agora em voga quer com esta iniciativa da Visão/Clube Português de Banda de Desenhada quer com a reedição, restaurada e não em fac-símile, de Os Doze de Inglaterra pela Gradiva, porque não sonhar? Talvez com uma antologia da Visão, a revista inovadora de Banda Desenhada que Vítor Mesquita editou no calor dos anos 70 após o 25 de Abril.


  1. Link morto: http://agaragem2014.blogspot.pt/2016/03/o-falcao-n-577.html ↩︎
  2. Link morto: https://www.modernismo.pt/index.php/antonio-ferro-1895-1956 ↩︎
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2 Comments

  1. says: Pedro Mota

    Gostei desta crónica. Em especial, por revelar as vantagens que levaram o Clube Português de Banda Desenhada a manter a colaboração com a iniciativa, mesmo depois de a Visão alterar os titulos propostos para a coleção: “O interessante da colecção é levar este revivalismo a um público que não é o habitual dos alfarrabistas ou convenções de banda desenhada. Recorde-se que a Visão tem abrangência nacional, chegando a zonas geográficas menos bem servidas pelo serviço público dos alfarrabistas. Neste aspecto, não é nada má iniciativa como forma de manter viva a história da Banda Desenhada.”
    É isto que se pretende. Se a iniciativa permitir outras coleções mais ambiciosas, melhor. “Porque não sonhar?”
    Eu mantenho o sonho duma nova revista de BD, publicada com a Visão ou com outra publicação com a mesma abrangência.

    1. says: Artur Coelho

      ok, essa das dissensões não sabia. mas de facto é fácil para nós, que vivemos na órbita das metrópoles, esquecer que se nos queixamos de problemas de acesso à cultura que gostamos, há um imenso país onde isso nem sequer chega, apesar, de claro, internet e maior mobilidade das pessoas. Resta às bibliotecas escolares e concelhias, e muito fazem, mas temo que em termos de bd, com excepções, o paradigma ainda seja o astérix…

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