A Amadora Fora da Galáxia XXI

À 25.ª edição, o AmadoraBD corrige alguns dos seus vícios mais crónicos.

Existe agora uma assessora de imprensa, uma descentralização eficaz fora da Amadora (a descentralização dentro da cidade continua sem grandes resultados), o projeto de arquitetura é, particularmente no piso superior, muito bem conseguido, e voltaram os espaços de convívio (ainda que colocados em lugar demasiado próximo das filas para os autógrafos).

Ainda não foi desta que se corrigiram outras situações, como a falta de publicação dos trabalhos premiados nos concursos.

A aposta forte do evento mantém-se nas exposições. Há opções discutíveis (apresentar a exposição de cartoon de Henrique Monteiro no Fórum Luís de Camões em vez da mostra comemorativa dos 70 anos de carreira de José Ruy, por exemplo), mas a qualidade média das mostras é positiva. Há exposições verdadeiramente imperdíveis, como a dedicada aos 75 anos de Batman (com a excelente ideia da recriação de capas clássicas por desenhadores portugueses) ou Jim Curioso (a melhor exposição do AmadoraBD 2014), mas também há exposições menos conseguidas como BDLP (que merecia outro tratamento de forma) ou a exposição central Galáxia XXI – O Futuro da BD é Agora (que não convence em muitos dos conteúdos).

Esta exposição central merece alguma reflexão (que é, de resto, o que propõe). Não pela qualidade da seleção (qualquer exposição com originais de Edmond Baudoin é motivo para elogios), mas pela filosofia que lhe está subjacente. Olhando para os comissários da mostra, eu acrescentaria que mais pela parte Sara Figueiredo Costa do que pela parte Luís Salvado.

Sara Figueiredo Costa tem ideias muito definidas sobre banda desenhada, e, sobretudo, defende-as muito bem (e é muito profissional na abordagem). Isso não está em causa. O que se passa (e já se tinha passado quando ela, por ocasião do 20.º aniversário do AmadoraBD, escreveu a publicação comemorativa) é que aquilo que Sara Figueiredo Costa defende não é o que o AmadoraBD tem defendido. Basta ver a estrutura da exposição Galáxia XXI e a proposta de reflexão sobre a atualidade do universo da BD que propõe, e depois passar a ver a atualidade do universo da BD tal como é apresentada no resto do festival. Estamos, claramente, a viajar por duas galáxias diferentes, cada uma com indiscutíveis méritos e defeitos.

E ainda deve ser considerada uma terceira galáxia, já que, se na Galáxia XXI o futuro da BD é agora, na Exponor o presente da BD chega já amanhã, com a Comic Con Portugal.

Entre estes dois galáticos, é tempo de a Amadora fugir à condição de buraco negro. Mas em pleno AmadoraBD fica a prova evidente de que falta um verdadeiro projeto de banda desenhada à cidade da Amadora.

Depois de, nas últimas décadas, o festival ter levado a banda desenhada à Amadora, é a altura de se levar a cidade à banda desenhada, como imagem de marca e factor de identidade de algo que é jovem, moderno e que constitui ponto de encontro entre diferentes culturas (umas de substrato e outras de superstrato). O executivo camarário tem anunciado algumas medidas importantes para que a população ganhe consciência de que está na cidade da BD. No entanto, fala-se de aspetos sobretudo formais, faltando definir o que é, verdadeiramente, a BD na Amadora, e, mais concretamente ainda, saber se ainda há BD na Amadora para além dos dias do festival. É que para levar a cidade à BD em vez de levar a BD à cidade, o projeto tem de ir além do AmadoraBD, para passar a integrar os diferentes programas e vertentes da política municipal.

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6 Comments

  1. Pedro,

    se tivesse lido este teu texto a tempo, teria aproveitado o último fim de semana para te questionar ao vivo, que é sempre a melhor maneira de conversarmos, mas a internet tem esta vantagem de poder servir de fórum, por isso vou aproveitá-la.

    Discutir ideias e pontos de vista é sempre bom, mas para que tal aconteça é necessário que se perceba claramente o que é dito pelo outro. Ora, li e reli as tuas palavras e não tenho como discuti-las, na parte que me diz respeito, porque não encontro os argumentos que lá deviam estar. E ou sou eu que estou sem capacidade analítico-textual, ou não explicaste aquilo que queres dizer. Vejamos.

    Dizes que a exposição merece reflexão, e eu fico à espera dessa reflexão, mas o que encontro são duas afirmações que, por si só, dizem pouco. A primeira diz que a exposição “não convence em muitos dos conteúdos”, mas não diz em quais conteúdos, nem explica por que motivo(s) não convence. Repara que é perfeitamente legítimo que alguém diga apenas isso sobre esta exposição, ou sobre qualquer outra coisa, mas se numa conversa de café eu posso limitar-me a dizer que não gosto de uma coisa porque não, num texto tornado público a propósito de um tema no qual acredito ter alguma espécie de credibilidade perante uma dada comunidade, é preciso dizer mais do que isso. Eu gostava, sinceramente, de discutir esses conteúdos contigo, mas sem saber quais são e o que te parece errado neles, não consigo.

    A outra coisa que dizes é que aquilo que eu defendo não é o que a Amadora BD tem defendido. Uma vez mais, estamos a falar de quê? O que é que a Amadora BD tem defendido? O que é que achas que eu defendo (e que sentido tem personalizares o meu trabalho a propósito de uma exposição assinada por duas pessoas, mas sobre isso falarei no fim)? Sem explicares estas duas coisas, volto a não poder debater nada contigo, porque não percebo do que falas.

    Bem sei que a seguir vem uma frase, introduzida como uma ilustração do que disseste antes, mas eu não consigo deslindar a relação (se calhar é defeito meu, e toda a gente percebeu tudo muito claramente, mas se a ideia era haver debate, então terias de explicar melhor). Eis a frase: “Basta ver a estrutura da exposição Galáxia XXI e a proposta de reflexão sobre a atualidade do universo da BD que propõe, e depois passar a ver a atualidade do universo da BD tal como é apresentada no resto do festival.” Ora, o que a Galáxia XXI propõe, tal como está escrito logo no texto introdutório por outras palavras, é um olhar sobre a bd actual a partir do ângulo dos modos de editar, imprimir, distribuir, dar a ler e criar mercados de diferentes dimensões e expectativas. Creio que o argumentário teórico para essa leitura é claro no texto do catálogo (que obviamente nem toda a gente vai ler) e que o seu resumo está bastante claro nesse texto de abertura e nos pequenos textos que acompanham cada núcleo. O que se apresenta no resto do festival até tem muito a ver com essa leitura sobre diversidade de modos de editar, distribuir, dar a ler, criar mercados. Por exemplo, o BDLP é um bom exemplo de um trabalho feito por várias pessoas, que circula num espaço transnacional e que tira partido da internet (que facilita contactos e envio de material com muitos gigas, algo que não acontecia com a facilidade de hoje há uns 15 ou 20 anos). É um projecto capaz de ilustrar a importância da net nos projectos colectivos envolvendo gente de vários países, bem como a edição com acabamentos profissionais e aspecto mais do que vendável a poder ser feita por qualquer pessoa. As exposições do Batman e do Surfista Prateado, ambas merecedoras de várias visitas, são bons exemplos da pujança e da dimensão de enormíssima escala do mercado dos comics norte-americanos, ao qual dedicámos um núcleo da nossa exposição. A exposição dedicada ao trabalho de Osvaldo Medina, desenhador de mão cheia, integra os trabalhos editados pela Kingpin, editora que referimos no texto do catálogo a propósito das possibilidades dos novos modos de editar, distribuir, comunicar e vender e que podia integrar a exposição como exemplo disso mesmo (está lá a El Pep, mas como dizemos no catálogo, podia estar a Kingpin ou a Polvo; as três não poderiam estar, porque o espaço não chegava). Voltando à linha inicial desta conversa, não consigo, mesmo, perceber o que dizes, num caso porque não dizes (o primeiro), no outro porque o que dizes me parece contraditório (este segundo). Tenho pena, porque podia ser produtivo trocarmos duas ou três ideias sobre o assunto. Afinal, também é para isso que se fazem exposições.

    Paralelamente a tudo isto, estranho o modo como claramente te focas no meu trabalho, descartando o Luís de uma exposição que foi feita e muito discutida pelos dois. Ora, em nenhum espaço da exposição ou do catálogo há conteúdos assinados apenas por um de nós, o que significa que a autoria é de ambos, para o mal e para o bem. Fico sem perceber se descartas o Luís porque te queres focar em mim por algum motivo que me escapa, ou se o descartas porque achas que ele não teve responsabilidades na exposição. Em qualquer dos casos, parece-me desrespeitoso para o trabalho dele e não queria deixar de o dizer, porque não gosto de meias palavras ou de não-ditos.

    Até breve,
    Sara

    1. says: Bruno Campos

      Eu tenho um bocadinho de asco pela terminologia “comercial” e “alternativo”, mas vou utiliza-la para simplificar a conversa.

      Quem ler o Beco das Imagens ou Caldeirão Voltaire (para não falar de outros textos) fica com uma clara ideia de que preferes (a nível estético e narrativo) enquadra-se dentro daquilo que por norma é classificado por “alternativo”. O Amadora BD, sua matriz, sempre foi um festiva “comercial”, sendo precisamentente um dos motivos porque algumas pessoa não gostam do festival “é muito comercial”.

      Quando existiam os Salões de Lisboa e Porto um dos pontos de diferenciação desses Salões e do AmadoraBD era precisamente a matriz “alternativa” dos Salões e o matriz “comercial” do ABD.

      Nos útimos anos o festival tem vindo a perder essa matriz em particular porque está a ficar desligado do realidade do mercado. Este ano temos o exemplo das duas exposições mais “populares” ou, se quisermos, de cariz “comercial”: Batman e Surfista Prateado.

      Ambas as exposições estão desligadas do mercado, apresentam poucas ou nenhumas obras editadas em Portugal, e apresentam autores sem obra editada em Portugal – e é por isto que termos como “comercial” e “alternativo” são algo patéticos – sendo exposições/autores que representam gostos mais populares, não são “comerciais” nem promovem o comércio porque não servem para promover ou incentivar o desenvolvimento do mercado, das obras editadas, umas vez que os autores que essas exposições não trazem autores com obra publicada em Portugal.

      (E eu, já estou a usar isto um bocado para desenvolver pontos de vista, que não dava para esplanar quando estava a entrivistar o Nélson Dona! Mas que se lixe!)

      A presença da El Pep na Galáxia XXI é redundante, o João Sequeira e o Pepedelrey também tinham trabalhos expostos na exposição dedicada ao Nuno Duarte, e quer os autores quer a editora teriam ficado melhor servidos se o espaço que lhes foi concedido na Galáxia XXI tivesse sido transformado num espaço extra da exposição do Nuno Duarte. Deste modo existão perdidos no meio de dezenas de autores quando poderiam ter tido uma sequência de trabalhos num só local.

      Esta duplicação de autores por diversos núcleos não é um exclusivo da Galáxia XXI, é um problema mesmo do festival.

      Existem demasiadas exposições temáticas, demasiados autores, com 2 ou três pranchas e por vezes só uma. Isto acaba por ser prejudicial para a promoção dos autores já que o trabalho que existe para avaliar é uma amostra, muito limitado dos seus trabalhos.

      O tema da exposição é – à falta de melhor palavra – absurdo! Aquilo que a exposição propõe: “um olhar sobre a bd actual a partir do ângulo dos modos de editar, imprimir, distribuir, dar a ler e criar mercados de diferentes dimensões e expectativas”, é aquilo que o festival se deveria propor todos os anos.

      Ninguém, mas mesmo ninguém é capaz de fazer uma exposição que seja realmente um reflexo completo dessa realidade (diversidade da BD) numa única exposição, uma vez que aquilo que está a tentar capturar é um visão de (diversos) mercados, que são vastos, com ínumeras obras, autores, e modos de publicar, isto deveria ser o objectivo do festival todos os anos centrando-se em obras e autores específicos.

      A Polvo também acaba por estar presente na exposição central devido à edição lesta do Cachalote… estas presenças não adicionam muito (porque estão diluidas numa avalanche de nomes desconhecido do público e com uma quantidade de trabalhos diminuta, e teriam mais sentido em exposições mais especificas, que já existiam ou que poderiam ter sido concebidas.

  2. says: Pedro Mota

    Antes do mais, muito obrigado pelos comentários.
    Há aqui dois pontos distintos a responder.
    O primeiro, diz respeito aos conteúdos da exposição, e até que ponto convencem. É um ponto que eu não desenvolvi na crónica (até pela dimensão que ela costuma apresentar). De qualquer forma, a observação refere-se a dois tipos de situações: a representatividade dos exemplos (vejo mais o gigante norte-americano na exposição do Batman do que na Galáxia, por exemplo, e nalguns casos nem sei se o que está exposto é BD) e a (mais subjetiva) qualidade de alguns dos materiais expostos (sobretudo na parte do trabalho coletivo) que me parece prejudicar o balanço final da exposição.
    Quanto ao segundo aspeto, que é aquele em que se centra a crónica, importa desde logo sublinhar que não há qualquer intenção (e se o resultado é esse, lamento sinceramente) de desrespeitar o trabalho do Luís. O que acontece é que o AmadoraBD tem (para o bem e para o mal) uma linha editorial. É uma linha editorial que tem procurado uma abordagem generalista (e não apenas comercial – não concordo aqui com o Bruno) da BD, que procura centrar-se no livro, particularmente na edição em português, e é também uma linha que assenta num certo nível de qualidade (sobretudo em termos de estética), entre outros factores.
    É aqui que eu acho que a exposição central e o resto do festival estão a falar em linguagens diferentes. A exposição beneficia sensibilidades estéticas, dinâmicas, formas de acontecer. Eu diria (e é um elogio) que se enquadra no critério editorial do Festival de Beja. O AmadoraBD, num sentido completamente distinto, beneficia conteúdos, celebrando livros ou temáticas (mesmo quando visita o universo de um autor) e consagrações. Mais uma vez, basta correr o resto do festival para verificar isto.
    Talvez outro exemplo para tentar transmitir melhor o que quero dizer: Baudoin, Sfar ou Shanower serão (excelentes) exemplos de exceções nos mercados franco-belga e norte-americano. O festival da Amadora tem mostrado a regra como regra e a exceção como exceção. A exposição valoriza a exceção face à regra.
    Quanto ao alternativo, respondendo ao Bruno, também reconheço que a linha editorial do festival não permite livre trânsito. Mas, em 25 anos de AmadoraBD, houve grandes exposições de autores alternativos (sobretudo espanhóis e ingleses).
    Porque é que eu acho que é possível distinguir o contributo Sara do contributo Luís? Porque nos diferentes núcleos da mostra, eu reconheço (admitindo estar completamente errado, como é lógico) batalhas antigas de cada um: Os Grandes Mercados é mais Luís, Regresso às Origens é mais Sara, A BD para além da BD e O Colosso franco-belga têm um tratamento 50/50, Novos suportes é mais Luís, Editar e distribuir ao alcance de todos é mais Sara, Trabalho coletivo é mais Sara, e BD no cinema é mais Luís.

    1. says: Bruno Campos

      Eu aconselhava à utilização de “comercial” e “alternativo” entre aspas. A linha editorial do Festival de Beja pode ser mais alternativa, mas ele consegui este ano ser mais comercial e estar em maior sintonia com o mercado do que o AmadoraBD.

      Número de exposições relacionadas com novos lançamentos era superior em Beja, número de autores estrangeiros com obra publicada em Portugal era superior em Beja, mesmo a nível da Galáxia XXI, os novos métodos de edição: a presença de David Lloyd (V for Vendetta) foi nesse âmbito, focado (obviamente) no Aces Weekly e teve um vertente claramente comercial que o Lloyd e o Carlos Páscoa estiveram lá o fim-de-semana todo a “vender o peixe deles” do mesmo modo que estariam numa feira (convenção americana ou inglesa).

      Já agora, o Festival de Beja consegui ter autores da Chili e da Disney (Goody), que desmostra bem o ecleticismo e como é possivel um evento ter um equilibrio e entre o comercial e o alternativo apresentando trabalhos que para alguns são completamente antagónicos. Sendo que estas são duas das editoras presentes em Beja que não estão presentes no AmadoraBD.

  3. Ora bem, assim já é possível conversar.

    Linhas editoriais não são coisas estanques. Podem mudar, com o tempo, como tudo. De qualquer modo, a linha editorial não sou eu que defino; limito-me a fazer aquilo que sei, falando, pensando e dando a ver aquilo que conheço bem e sobre o qual tenho algum trabalho feito, esforçando-me por fazer isso da melhor maneira e procurando fazê-lo a pensar num público generalista e não apenas especializado. Se continuo a fazê-lo na Amadora, talvez seja porque quem programa o festival acredita que aquilo que faço tem algum sentido para o festival. Este ano, pude fazê-lo com o Luís e creio que isso enriqueceu qualquer exposição que pudesse ter feito sozinha. Se a Amadora chegar à conclusão de que afinal a sua linha editorial não mudou e que o meu trabalho não tem razão de ser naquele contexto, irei fazer o que sei para outro lado. Sem dramas nem ressentimentos.

    Direi algumas coisas sobre o festival, então. O facto de se exporem obras que não estão editadas em Portugal não tem de ser mau; pode, até, ser uma função muito lógica num festival, na medida em que pode contribuir para estimular a edição dessas obras (foi o que aconteceu precisamente com o Cachalote, que não teria sido publicado agora se não tivesse sido escolhido para integrar a exposição, tal como explicou o seu editor aquando do lançamento do livro). Eu diria mais: o público de um festival constrói-se ao longo do tempo e o facto de haver equilíbrio entre géneros, linhas, temáticas, escolas diferentes pode ser a chave para se manter o interesse desse público e atrair outros visitantes

    Para além de tudo isto, talvez um festival com a dimensão e os pergaminhos deste tenha, também, uma vertente pedagógica, que não se deveria esgotar nas visitas das escolas. O que quero dizer, entendendo a pedagogia sem paternalismo, é que podemos aprender coisas quando saímos das nossas referências habituais. Pensar o mundo sem estarmos sempre agarrados ao nosso modo de o ver costuma ter bons resultados e isso também se faz vendo outras coisas, diferentes das que costumamos ver. Ora, para o grande público, isto é capaz de ser importante (e não gostando de gabar trabalho próprio, posso dizer que esta exposição foi visitada por alunos que estudam edição, que vieram ao festival por causa disso e que acabaram por gostar de ver outras coisas que não conheciam porque não são leitores habituais de bd). Há mais gente no Amadora BD para além do público bedéfilo e abrir os horizontes é capaz de ser importante, digo eu. Não quero com isto dizer que acho que a Amadora se devia transformar num festival unicamente para pessoas com gostos diferentes dos que habitualmente lá marcam presença, quero dizer que a Amadora talvez tenha a ganhar em ter exposições fora desse âmbito. Nos últimos anos, várias foram as pessoas que visitaram o festival pela primeira vez, ou que lá regressaram depois de muitos anos de ausência, para ver exposições que não são apenas as que “beneficiam conteúdos, celebrando livros ou temáticas (mesmo quando visita o universo de um autor) e consagrações” e que, imagine-se, apesar disso conseguem levar pessoas até à Brandoa. Se pudermos ter o Cosplay, os lançamentos, as exposições sobre autores consagrados e obras publicadas em Portugal, mas também a apresentação de autores menos conhecidos, a reflexão sobre temas que andam a dar trabalho a investigadores das mais diversas áreas por esse mundo fora e que podem, e devem, ser pensados também a partir dos territórios da banda desenhada, obras que questionam os próprios limites da bd, e tudo isto misturado com as pipocas, os miúdos mascarados de super-heróis e a Turma da Mónica, não vejo que daí venha mal ao mundo. Mas isto é o que eu penso sobre um festival que, parece-me, quer chegar ao grande público e não apenas ao dito especializado. No entanto, e uma vez mais, não sou eu que programo o festival. E de qualquer modo, isto é um comentário sobre o festival no seu todo e aquilo que me diz respeito enquanto co-comissária é apenas uma exposição.

    Se achas que esta exposição tinha sentido em Beja, não entendo por que não o terá na Amadora. Reconheço a mesma inteligência aos potenciais visitantes de ambos os sítios e nunca me agradou a ideia de só podermos mostrar coisas que as pessoas já estão carecas de ver apresentadas da mesma maneira (sei que não seria essa a tua intenção, mas a mim lembrou-me o discurso dos programadores televisivos, que gostavam muito de oferecer outros programas mas o público, coitado, gosta é disto).

    As escolhas que fizemos são exemplos dos modos de editar, imprimir, distribuir, dar a ler que definimos como linhas do nosso trabalho. Está lá o Baudoin e está lá o Astérix, precisamente para, no espaço que tínhamos disponível nesse núcleo, mostrarmos aquilo que chamas de regra e aquilo que chamas de excepção. O caso do mercado norte-americano tem o Shanower, mostrando o filão das publicações que privilegiam os chamados jovens adultos (na gíria do mercado editorial), e tem o Daniel Maia e o Filipe Andrade como exemplos de duas coisas: a mega-indústria dos comics, com as duas grandes empresas a dominarem o mercado, e o facto de essa mega-indústria já não ser preenchida apenas por autores norte-americanos, algo que também é possível graças às mudanças que se operaram nas indústrias editoriais nestes últimos anos. Podíamos ter mais autores, que fossem norte-americanos e que desenhassem para esse mega-mercado? Podíamos, mas não nos pareceu imprescindível. Até porque no núcleo dedicado ao digital estão lá três historias da Marvel e uma da DC Comics que podem suprir essa falta. Não são originais, pois não, mas queríamos mostrar outras coisas para além de originais, algo que decorre da estrutura que concebemos para esta exposição e onde o digital era essencial. O caso japonês, por exemplo, é onde admito desfalque, porque não nos foi possível ter originais de mais autores (bem sei que não apontaste este facto, mas aponto-o eu, porque vejo aí um desequilíbrio que não me importo de assumir). De qualquer modo, o Tamura é um bom exemplo daquilo que queríamos mostrar, pelo que não creio que ninguém fique envergonhado (nós não ficámos). Quanto ao trabalho colectivo, nenhuma resposta a dar. Achas que algumas das pranchas que lá estão não têm qualidade e eu acho precisamente o contrário. Podemos ficar aqui até ao próximo ano e nunca estaremos de acordo, ainda que isto não seja apenas uma questão de ‘eu gosto, tu não’. A qualidade é uma coisa complicada e que vai muito para além do gosto (há livros de que não gosto e aos quais reconheço muita qualidade), inserindo-se a sua valoração numa complexa conjugação de cânone, época, linhas de leitura, enquadramento teórico, etc, etc. Sendo a bd um território mais complexo do que outros que se afirmaram mais cedo, o cânone é uma coisa escorregadia e os processos de legitimação, então, são mesmo pantanosos e muito mais diversificados do que em áreas clássicas, chamemos-lhes assim, como a literatura ou a pintura, por exemplo. Para resumir, digamos que tendo em conta o meu universo de referências teóricas e analíticas relativamente à banda desenhada, a qualidade daquelas pranchas não está em causa. O que mostram de experimentação, questionamento da estrutura da prancha, diálogo com a contemporaneidade é mais do que meritório.

    Agora para o Bruno, não creio que a presença da El Pep seja redundante. Admito, sim, que o facto de haver trabalhos de autores da El Pep noutra exposição se torna estranho e se deve ao nosso desconhecimento, até bem perto do início do festival, de que isso aconteceria. De qualquer modo, mantenho o que disse sobre a não redundância da El Pep no contexto da nossa proposta.

    O que dizes sobre o festival dever reflectir, a cada ano, a diversidade de modos de editar, distribuir, dar a ler, parece-me ter todo o sentido, ainda que isso não aconteça (e é pena, sim). Se isso tiraria, caso acontecesse, o sentido desta exposição, creio que não. Podíamos fazê-la de um modo muito diferente, isso sim, mas pensar, neste momento, a diversidade de modos de editar, o contexto em que se desenvolvem, o modo como constroem públicos em diferentes escalas e a relação de tudo isso com a evolução tecnológica, as mudanças que têm marcado as livrarias e os modos de vender, as alterações de estatuto das figuras do autor e do editor, tudo isso está na ordem do dia em diversas frentes de pensamento e discussão, e não apenas no universo da bd, pelo que me parece importante abordar o assunto.

    Já agora, uma correcção, sem importância nenhuma para esta nossa conversa: o blog chama-se Cadeirão Voltaire, tal como se lê no cabeçalho, e não Caldeirão. Já o Beco, fechou há algum tempo, estando os textos sobre bd e ilustração inseridos no Cadeirão.

    Obrigada a ambos,
    Sara

    1. says: Bruno Campos

      Quando a presença de autores sem obra editada é a regra num festival, e não a excepção, isso é negativo para o mercado em que está inserido e não contribui para uma promoção do livro, ou para o crescismento de um mercado que é débil, como é caso do Português.

      A edição do Cachalote, como o Rui Brito fez questão de salientar, foi precipitada pela vinda do Rafael Coutinho e não devido à vinda do Rafael Coutinho. A obra estava nos planos editorias da Polvo, o Rui não “descobriu” a obra derivado à exposição. Foi fruto da sentido de oportunidade do editor e do facto de ele conhecer uma gráfica de confiança, algo que é mais excepção do que regra. Existem várias obras que já falharam datas de lançamento por atrasos na gráfica e com prazos muito superiores aqueles que o Cachalote teve.

      Um festival não pode estar desligado do mercado em que está inserido. Caso contrário torna-se irrelevante para esse mercado, e quando existe uma abundância de autores estrangeiros sem obra editada está-se é a promover sessões de desenhos para o boneco dos autores convidados e na melhor das hipóteses, a estimular mercados externos a venda de obras importadas.

      O grosso dos convidados desta edição do festival vêm a propósito da Galáxia XXI, Rafael Coutinho é o único editado, e derivado à prepicácia e eficiencia do editor, mesmo assim a nível de comunicação do festival, é um autor da “Galáxia XXI”, tal como os restantes convidados isto não é promoção dos autores ou das obras é de um exposição, quando as exposições deveriam ser um factor de promoção das obras.

      Ao longo dos anos tem existido inúmeros autores que ninguem conhecia, sem obra editada em Portugal que passaram pelo Festival? Quem se lembra deles? Deixaram para trás mais algumas coisa do que desenhos em folhas de papel soltas?

      Esta edição do Festival não tem nomes consagrados, até o Nelson Dona reconhece isso, Grindberg e Staton são autores conhecidos num nicho: super-heróis, e até faziam, na minha opinião mais sentido no âmbito da Galáxia XXI no contexto em que o trabaho deles actualmente é tiras e webcomics, nomeadamente Dick Tracy e Tarzan.

      Como o director do festival chutou esta pergunta para canto para os comissários, fica (já agora) a minha questão: Grindberg e Staton não faziam mais sentido no âmbito da Galáxia XXI?

      E sim, a exposição está bem eclética tem lá Astérix e tem lá Budoin, é um pouco como as tapas, tem lá de tudo até se pode gostar mas no fim já nem nos lembramos exactamento do que comemos. Isto facto por si não seria probemático se o festival não estive cheio de tapas e redundâncias.

      Nuno Duarte, Baile, Joana Afonso não dava para fazer um 3 em 1 ou só duas individuais, é que a bem dizer é um álbum a dar origem a 3 exposições.

      – Não é a El Pep que está em duplicado, é os autores: Pepedelrey e João Sequereia, que para além de serem autores da El Pep também colaboraram com o Nuno Duarte e por isso tinham trabalhos na retrospectiva do argumentista. Existia mais algum autor da El Pep presente? O facto de a presença da El Pep não ser redundante na vossa proposta é para mim irrelevante. O que me irrita na redundância da Presença do Pepedelrey e do João Sequeira em duas exposições – assim com outras redundâncias – é por existir uma completa descontextualização da obra, em que a exposição já não serve para promover uma obra (ou autor) mas para ilustrar um ponto de vista, teório abstracto e programático quando as exposições de BD deveriam servir para promover as obras e os autores.

      – Daniel Maia é piada! Sim, não gramo o Maia, mas não é isso que está em causa, para além de ser um autor mais conhecido pelas oportunidades que desperdiça do que pelas que aproveita (uma) no catálogo o trabalho que surge é uma peça de porfolio, não é trabalho publicado. Podemos sempre considerar que é representativo dos autores que fazem trabalhos de portofolio para colocarem online e exibirem em exposições. Mas depois temos a redundância temática: Batman. Não bastava ter uma exposição de Batman é necessário ter mostras de trabalho de porfolio com Batman numa exposição colectiva?

      – Filipe Andrade – redundancia de autor, presente na exposição Batman, Ano 75.

      – Yoshiyasu Tamura, redundancia temporal de autor não publicado em exposição em anos consecutivos. Em 2013 esteve no AmadoraBD e teve uma exposição individual, não tinha obra publicada em Portugal e agora continua sem ter. Tamura é um autor assim tão relevante da BD japonesa para justificar a presença em dois anos consequetivos? Em particular continuando a ser uma autor inédito em Portugal… Ao menos as pranchas eram diferentes ou eram as mesmas do ano passado?

      Para mim a questão mais caricata de tudo é o facto de se falar muito de a exposição ser um convite à “reflexão”, contudo temos presentes autores que não vêem promover obras, que estão em 90% dos casos a fazer desenhos em folhas brancos ou cadernos de autógrafos – não existe promoção efectivo do livro, ou mercado nacional – e depois, bem, depois não existe qualquer tipo de debate com os autores onde seja possível ao público ficar a conhecer as suas ideias sobre o tema qual se pretende reflectir.

      Não existindo obras a promover, não existindo debates, qual é necessidade da presença destes autores? É que no meu ponto de vista, no fim do dia entram simplesmente para a longa lista de nomes que marcaram o festival sem que exista um real contributo para o desenvolvimento do mercado. Isto não seria problemático se fosse a excepeção, contudo é a regra. Isto não seria problemático se não existessem obras a serem editadas no mercado com autores com qualidade e diversidade, contudo existe esse mercado, existem obras, existe diversidade, mas não está representada no festival.

      A exposição Galáxia XXI não é o problema, é o sintoma. O título do Pedro Mota foi muito bem apanhado, porque sendo a exposição central, aquela a que é dado mais destaque, mais espaço, mais divulgada, a que justifica a presença de um maior número de autores, é uma exposição desligada da realidade do mercado nacional, assim como a maioria do festival, até porque um dos eixos fundamentais do AmadoraBD é as exposições de vencedores dos PNBD – um olhar para o passado. Já agora, quando temos autores presentes que nasceram em 1960, já não estamos a falar exactamente em novas tendências, mas em autores com nome firmado nos mercados em que editam e por vezes em outros.

      Desculpa lá ter confundido o Cadeirão com um Caldeirão, foi uma gralha. Eu já tinha conhecimento de que o Beco encerrou, mas o textos continuam online, e era só para salientar que é fácil traçar um perfil de gosto, de concepções, para alguém que expões as suas ideias e concepções sobre BD à mais de uma década.

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