Magnetar e a Novela Gráfica

Por esta altura, os textos da internet sobre banda desenhada em Portugal dividem-se em dois grandes assuntos: a antevisão do que será a 11.ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, e a discussão do conceito de novela gráfico.

Considerando que ainda tenho algum tempo para falar de Beja antes da inauguração do festival, aproveito hoje para regressar ao tema da novela gráfica, que tem sido discutido e aprofundado por ocasião da excelente coleção lançada pela Levoir e pelo jornal Público.

O contributo que hoje proponho trazer a essa discussão liga-se ao facto de, para mim, a diferente graduação que a expressão “novela gráfica” encerra estar mais ligada à ambição narrativa do que à “seriedade” ou “complexidade” da temática.

Um bom exemplo para ilustrar esta ideia é a (igualmente excelente e atual) coleção Graphic MSP, em que autores brasileiros foram convidados a realizar “novelas gráficas” a partir das personagens e universo criativo de Maurício de Sousa.

Magnetar, história do Astronauta realizada por Danilo Beyruth inaugurou a coleção. Vale a pena analisar esse livro para identificar as questões que o identificam como “novela gráfica”.

A primeira questão respeita ao uso dos cartuchos (legendas). Numa história em que há uma única personagem, é um recurso quase obrigatório. No entanto, é um recurso mais difícil do que parece: interfere no ritmo da leitura e na relação texto/imagem, e obriga a que o autor seja, também, escritor. Danilo consegue sair muito bem nesta utilização, encontrando uma voz interior do astronauta que não prejudica a leitura, decompondo visualmente os cartuchos de modo a integrar a imagem, e usando um tom que privilegia a eficácia sobre a exibição da escrita (reforçando a identificação do leitor com o protagonista). E é assim que Danilo consegue ultrapassar também a dificuldade que representa contar uma história (longa) em banda desenhada, com uma única personagem.

Depois, temos o espaço (que neste relato é, sobretudo, o Magnetar). Verdadeiramente é, ao lado do astronauta, a “outra personagem” da história, marcando o vazio (mais do que a nave) e reforçando a solidão. O espaço de Danilo é absolutamente credível porque se identifica com o espaço dos maiores autores de ficção científica: de Jack Kirby (muito presente na página 12) a Mézières, passando por Moebius. Esse é o verdadeiro espaço na BD, e Danilo mostra que conhece bem as suas referências.

A seguir, o astronauta. Nas primeiras páginas, Danilo afasta-se deliberadamente do astronauta redondo de Maurício. O astronauta de Danilo é – nas suas linhas – mais humano, contribuindo para a eficácia da história. Achei muito boa a sequência da escolha dos fatos espaciais, na caraterização psicológica da personagem. Desde 1963 que o Astronauta não está no espaço por castigo, mas por opção (com um preço de solidão e saudade, claro). É bom vê-lo rodeado de gadgets!

É com todos estes recursos que Danilo constrói Magnetar, obedecendo a uma planificação da história muito equilibrada, sem hesitar em recorrer a exercícios formais complexos (com destaque para o “Etc” das páginas 38 a 41), e sem abrandar nos impressionantes virar de página. A forma como utiliza o virar de página é o que mais me impressiona na técnica de Danilo, e é o que, verdadeiramente, faz de Magnetar uma história que dificilmente poderia ser contada, com o mesmo nível de qualidade e eficácia, em qualquer outra forma de linguagem.

Uma palavra para Cris Peter, que tem um trabalho notável que transmite a temperatura adequada, e um tom de modernidade técnica que é absolutamente necessária numa história de ficção científica que é, também, um projeto editorial ousado.

Único ponto menos conseguido: o flashback inicial, que surge tão isolado e descontextualizado, que sabemos que vai ser usado mais adiante, dando alguma previsibilidade a um relato pleno de surpresa. Na minha opinião, bastaria que esse flashback tivesse aparecido acompanhado de outros flashes do passado do astronauta, nomeadamente o passado com Ritinha, até porque a sequência das páginas 54 a 57 não é fácil para novos leitores (só aparecendo contextualizada no texto O Astronauta de Maurício de Sousa).

Tudo somado, é uma belíssima história, muito bem contada, desenhada e colorida, valorizando o património da banda desenhada. Muito bom cartão de visita para a linha Graphic MSP, e para o trabalho de Danilo Beyruth (e Cris Peter).
É inquestionavelmente uma novela gráfica, não tanto pelo que conta, mas sobretudo pela forma como conta.

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3 Comments

    1. says: Bruno Campos

      Eu ainda não percebi porque raio é que as edições especiais da Panini Brasil não vão parar às livrarias, ou pelo menos às supostamente “especializadas”.

  1. says: José de Freitas

    Vão poder apreciar um belo livro do Danilo como último volume da colecção da Levoir, num registo completamente diferente, a preto e branco, estilo western spaghetti no sertão com cangaceiros. A não perder!

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